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José Pastor

Viera de Cuba, a ilha de Fidel e da revolução mítica das Caraíbas, quando o conheci. É preciso dizer que, naquela época, o vocábulo “revolução” não se dissolvera ainda no alvoroço, no tumulto, no turbilhão, na voragem, no remoinho, no vórtice de uma sociedade que transitou da utopia do comunismo para a quimera do capitalismo ou do seu simulacro. Ele era um homem de uma energia contagiante, um conversador empolgado, arrebatado, empolgante, culto e sensível. Punha paixão no que fazia e no que dizia. Nascera em Nampula, a 29 Julho de 1954, no interior da burguesia colonial, por assim dizer, mas declinara os privilégios do passado e renegara a herança portuguesa. Ficara moçambicano. Fora professor, activista cultural, encenador de teatro, poeta e contista. Praticava o ofício da escrita com denodo, com desenvoltura, e usava pseudónimos como Si Silva ou Broeiro Duarte São Pedro. Não o fazia para dissimular o que quer que fosse. Pareceu-me, antes, que recusava qualquer tentação de exibicionismo. Ou talvez até fosse mesmo por timidez. Apesar de ser um homem com um discurso e com gestos marcados por um expressivo ímpeto, queria resguarda-se. Sempre o fez. Mas exultava quando lhe reconheciam o dom, a mestria, a vocação.  Por vezes, também assinava Duarte Silva. De seu nome de registo, José António Pastor Duarte Silva, publicou em vida pouquíssimos contos e um punhado de poemas, que assinou como José Pastor, e que denunciam um escritor admirável. Hoje ninguém fala dele. A pátria revê-se no ominoso esquecimento dos seus, sobretudo os melhores. Este ano passam 25 anos sobre a sua morte, que ocorreu a 26 de Agosto de 1993. Queria aqui lembrá-lo, sabendo que não o salvarei do olvido nem da desmemória que fazem parte da ufana e moçambicana desatenção.

Foi o Guilherme Mussane, que estudara em Cuba e andava, à época, como eu, no meio do teatro, que me falou dele. Iniciei a minha plumitiva vida como actor de teatro, de teatro radiofónico, sublinho. Foi na Escola da Rádio, onde fui acolhido, com entusiasmo, pelo saudosíssimo Né Afonso, onde pratiquei os rituais de iniciação na arte de comunicar. Ali, cruzei-me com muito boa gente. O tempo dispersou alguns, matou outros tantos. A vida parece ser mais a arte da disjunção do que o seu oposto. O Mussane falou-me com entusiasmado ardor do seu professor José Pastor e exarou a sentença: tinha de o conhecer! O nosso primeiro diálogo praticámo-lo no Guicalango, ali na provecta Mao Tsé Tung. Acontece que eu senti que estava diante de um amigo longevo. Não parecia que estávamos a encetar a nossa conversa preambular. Já nos conhecíamos sendo que nos encontrávamo-nos pela primeira vez. Isto parece um paradoxo? A empatia é capaz desses prodígios. O assombro tomou conta de ambos e discreteámos sem ocultar a fascinação das palavras. Mais tarde, outro amigo-irmão, de saudosa e grata memória, o António Pinto de Abreu, que se apartou de nós faz um ano, também acrescentou ao depoimento do Mussane a afeição empolgada que tinha pelo José Pastor.

Naquela conversa fizemos os prolegómenos de uma viva tertúlia literária. Há décadas nós cultivávamos amizades literárias. Encontrávamo-nos, amiúde, para falar de livros, de escritores, exultávamos, discordávamos, partilhávamos. As nossas zaragatas eram, por conseguinte, afectivas e não aflitivas. A sua matéria era o júbilo que nos animava, o amor imperecível pelos livros. Há dias, remexendo em antigos álbuns de fotografia – hoje desapareceu também essa prática, as fotografias abandonaram as velhas liturgias e habitavam facilmente as pantalhas dos nossos telefones móveis – encontrei fotografias de uma tarde em que passámos na casa do José Pastor na Matola. Estamos: Eduardo White e Olga Pires, Marcelo Panguana, Sérgio Tique, Ana Juliana e eu próprio. De costas parece-me ser o Ungulani Ba Ka Khosa, mas não tenho a certeza. Esta fotografia data de 25.09.88. Para mim foi um dia inescurecível.

Eu coordenava, nessa época, a “Gazeta de Artes e Letras” e discutia, por vezes, muitas vezes, com o José Pastor, ideias e trabalhos para a secção literária da revista Tempo. Também publiquei poemas e um conto dele. Ele foi sempre foi um autor escasso, avaro. Mas um conversador tenaz.  Ele falava-me da excelente literatura cubana que eu, na altura, desconhecia. Um dos autores, de que era indefectível: Alejo Carpentier (1904-1980), sobre quem escreveria uma belíssima nota sobre Concerto Barroco. Escreve então sobre Carpentier o meu amigo Duarte Silva (foi assim que assinou) na “Gazeta” de 31.07.88: “Sua maestria técnica se demonstra não somente na perícia estrutural das suas obras como num estilo muito próprio cheio de riqueza, complexidade e beleza singulares. Seus temas centram-se no enfrentamento do homem com a sua realidade circundante, especificamente no âmbito do “real maravilhoso” das Caraíbas, do qual é notável mestre e exemplo”.  Quando me entregou as laudas sobre Concerto Barroco para a “Gazeta”, ofereceu-me, na ocasião, um exemplar da obra. Tenho esse livro ainda comigo. Ele falava-me com entusiasmo quase infantil deste escritor e de outros que admirara em Cuba.

Nos finais dos anos 80, vivíamos uma experiência penosa da guerra e José Pastor um dia publicou um poema laborioso sobre aqueles tempos funestos. É um dos poemas mais consternados sobre a guerra. Agora que fizemos desse passado inclemente exéquias pressurosas, ler o poema do José Pastor é um tónico para a memória. Quem me lê, sabe da minha quezília em relação à memória. Esta altercação que temos com o tempo pretérito não augura nenhum bom porvir. Como podemos habitar despreocupadamente, o território da amnésia? Ler o José Pastor ajuda-nos, em parte, no arbítrio contra a desmemória. Comecemos pelo extenso título: “A pessoa de Josefane ficou no massacre de Maluane, mas seu corpo veio a Maputo para pôr velas”. Sempre que passo por Maluane penso neste poema virulento e na realidade violenta que ele testemunha. Nunca compreendi por que razão intentamos nós, hoje, postergar ou procrastinar a História.

José Pastor: “Uma rajada de metralhadora/e ele caiu do camião. / Rachou-se o cóccix. /Coaxaram as rãs do rio vizinho. /Cócegas no sangue dele. /O primeiro grito foi/ o canto plangente do cisne. // As árvores deliravam/ ruídos de harpa. A morte, / com a sua foice aguerrida, / saqueou-lhe todo o sangue baboso/ e levou-lhe a cruz ao calvário/ doloroso da fossa comum. // O rio de lágrimas secou / na roda dentada da vid. / A moagem do coração parou. / Os açudes que represam o sangue/ das veias desmoronaram-se. // No seu organismo/ só ficaram gemidos de grilo, / primeiro; / pilares de coruja, / depois; / e o silêncio sepulcral dos vermes, / por último. // A morte encafuou-se no seu ninho. / E lá, dentro do Josefane madrugador/ ficou quentinha e satisfeita/ a pôr seus ovos de cotovia. // E um louva-a-deus/ foi o primeiro ser vivo/ a pousar seu corpo morto. // Eu vi!, com o coração aos pirilampos…”

Coligi este e outros poemas na antologia que co-organizei com a Fátima Mendonça, Antologia da Nova Poesia Moçambique, que seria publicada em 1993, pela AEMO. Quando organizei a antologia Nunca Mais é Sábado, anos mais tarde, para a D. Quixote, em Portugal, voltei a sufragar parte significativa dos poemas que editara naquela colectânea. Para além disso, José Pastor era um belíssimo contista. O conto que incluí na antologia As Mãos dos Pretos, inicialmente publicado na “Gazeta”, “A Abastança de Fundos de Zefania”, disso faz prova cabal. Dedicado ao autor destas linhas, a Ana Juliana, ao João António, a Marina e ao Genas, é dos poucos registos que ficaram da sua obra ficcional. A sua morte, em 26 de Agosto de 1993, está na origem do desconhecimento que encobre a sua parca e notável obra. Nunca percebi por que razão a obra do José Pastor não chegou a conhecer a luz do dia em forma de livro. Entre 1990 e 1995, vivi fora do país, mas sempre que retornasse a Maputo encontrava-me com ele e sabia do desejo que ele tinha de publicar. Não tendo deixado descendência, na época tive conhecimento de que os inéditos estavam confiados a um amigo. Até hoje perdura um ensurdecedor silêncio deste escritor cujo nome foi também marcado pelo decesso.

Na nossa última conversa, semana antes da sua morte inesperada, percebi que estivera com um homem angustiado, consumido pela inquietude, pela amargura, provavelmente atormentado, mas nada faria prever aquele desfecho trágico.  Quando li, anos mais tarde, o livro Antes que Anoiteça, do cubano Reinaldo Arenas (1943-1990), pensei muito no José Pastor. Aquele pungente livro que releva da experiência duríssima de Arenas teria dado, entre nós dois, um debate longo e perseverante. Pastor, um implacável defensor de Fidel Castro, que opinião teria desta obra e do dissenso deste autor? Gostava de ter falado com ele de Lezama Lima (1910-1976) ou de Virgilio Piñera (1912-1979). Gostava de ter falado com o Pastor sobre o suplício de alguns destes escritores – uns por serem homossexuais, outros por divergirem do regime. Gostava de ter discutido com ele sobre Cabrera Infante (1929-2005) e os seus livros sobre Cuba e do seu exílio – redijo este texto em Londres onde ele morreu proscrito da sua Cuba impenitente -, ou sobre Pedro Juan Gutiérrez (1950), que vive e escreve em Cuba. Falámos dos óbvios: de Nicolás Guillén (1902-1989), de José Marti (1853-1895), que ele admirava de forma inabalável. Não falámos de Herberto Padilla (1932-2000), não falámos de tantos outros. Conheci, anos mais tarde, a belíssima escritora cubana Karla Suárez  (1969), conheci o grande Leonardo Padura Fuentes (1955). Ouvi Zoe Valdés (1959).

Um dia, à mesa, na Póvoa de Varzim, Leonardo Padura, que eu conhecera na primeira edição das Correntes d´Escritas, há duas décadas, um escritor incrível, mas incrivelmente modesto, contou o seu quotidiano em Cuba e de Cuba e nós ficámos siderados, perplexos, atordoados. Foi há dois anos esta conversa. No entanto, estava ele mais esperançado do que nós: Cuba abria-se ao mundo, Barack Obama distendera e ajudara a fazer o degelo na complexa relação entre os Estados Unidos e Cuba. Contei-lhe que assistira, em Joanesburgo, na homenagem a Nelson Mandela, em Dezembro de 2013, ao célebre aperto de mão entre Raúl Castro e Barack Obama, que foi o primeiro sinal de mudança. Como seria conversar sobre tudo isto com o meu amigo José Pastor?

Por vezes, ao longo destes anos, falei dele com o António Pinto de Abreu e, muito pouco, com o Guilherme Mussane. Lamento que o nome dele esteja esquecido e que a sua literatura seja amplamente desconhecida. Quando fundei a Marimbique foi dos nomes que me ocorreu editar, mas nunca consegui chegar aos seus manuscritos. Gostaria de poder fazê-lo em homenagem à sua curta, mas ingente existência e com isso intentar um tributo à nossa amizade e à admiração que sempre nutri por ele. Talvez não tenha feito todos os esforços para tal. Neste mês, Agosto, assinalam-se 25 anos sobre a sua morte. Talvez seja uma boa altura de promover a publicação da obra deste notável escritor desaparecido prematuramente aos 39 anos. Pessoalmente, guardo dele a grata recordação de um amigo atento e sensível, culto e inteligente, afável e solidário. Vejo-o a afagar a sua barba enquanto falava, os seus olhos piscando, ele entregue à graça e ironia, à inteligência e à cultura. Precisamos de fazer algo para o retirar do sepulcro, do olvido, da negligência, da omissão, do descaso e do alheamento. A desonra e o opróbrio da desmemória não podem continuar a vexar o nosso destino individual e colectivo, nem a conspurcar o nome deste escritor e de tantos outros que sofrem o agravo, a ignomínia e a indignidade do desconhecimento e da pátria.

 

 

 

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