O País – A verdade como notícia

Japone Arijuane: desmontar para montar a plenitude da vida

O livro mais recente de Japone Arijuane é constituído por três cadernos: todos escritos num ritmo próprio. Ferramentas para desmontar a noite é o título do livro do poeta, lançado pela Fundação Fernando Leite Couto. De acordo com o autor, a sua segunda obra literária é um exercício que, ao desmontar o que é maléfico, propõe-se a montar o amor e a plenitude da vida.

 

Mais uma vez a noite é um pretexto para a produção de um livro de poesia. Já tínhamos a noite, por exemplo, na escrita de Armando Artur e, mais recentemente, de Júlio Carrilho. Agora, também está retratada no seu segundo livro. Porque a noite?

No processo de produção deste meu segundo livro, pensei na noite como a metáfora do abismo e das trevas que enfrentamos enquanto povo e nação. É esse elemento da agonia que eu fui trabalhando. E este livro acaba sendo a síntese dessas noites todas. Se calhar, já agora, essa noite vai passando de geração em geração porque ainda não amanheceu. Nós ainda não despertamos ou estamos muito longe da aurora. Então, a noite continua a ser essa machamba onde vários poetas vão trabalhando, porque existe muita coisa oculta, muito misticismo.

 

Sendo a base do seu segundo livro, a noite é uma condição complexa, daí ter precisado de ferramentas para a desmontar?

Pois, é um elemento muito complexo, de tal forma que a noite vai-se metamorfoseando. Nós passamos por várias noites que são cobertas pela grande noite. Por isso as ferramentas vêm para a desmontar. Na verdade, este livro é uma proposta para conseguirmos nos libertar daquilo que nos fecha o horizonte ou que nos impede de vislumbrarmos o futuro. No fundo, o livro é essa proposta, esse convite para que as pessoas consigam vislumbrar o que o horizonte tem ou o que o futuro nos pode dar a partir da poesia.

 

 A partir da acção de desmontar a noite, na verdade, o que os sujeitos poéticos pretendem, no seu livro, é reconstruir. Pode argumentar?

Desmontar traz a ideia de que alguma coisa não está bem. Para que nós consigamos atingir algum plano bom, temos de desmontar para montar. Ou seja, o meu livro propõe desmontar o que não está bem para se montar o que se pretende ou poderá vir a ser o bem. Na verdade, este é um livro que desmonta o ódio, o nepotismo, a corrupção, a má governação, as agonias individuais das pessoas para montar o amor e plenitude da vida.

 

Será por isso que o sujeito poético exige um momento de pausa, ou seja, a certa altura, temos o seguinte verso no Ferramentas para desmontar a noite: “Não posso desmontar a noite com o motor a roncar”. Roncar aqui sugere algum movimento. Parece que a pausa é indispensável para si.  

Precisamos de ir ao fundo dessa noite, para que possamos arrancar o mal pela raiz. Esta paragem ou olhar para as coisas de forma desapaixonada, distante, vai nos permitir com que nós consigamos atingir ou resolver o problema de forma estrutural. Essa pausa é mesmo necessária para que as pessoas olhem para o exterior e o interior de modo que se perceba o que está a falhar.

 

Parece que o que alimenta este livro é a visão do poeta, ser existencial, em relação aos factos que se passam no seu plano concreto. Como se conectam estas duas vertentes?

Este livro foi criado em três momentos distintos. Por isso temos três cadernos. Durante os seis anos que fiquei sem publicar, eu fui produzindo vários projectos. A certa altura, fui visitar os textos e notei que existia uma certa intertextualidade entre os mesmos (muito voltada à vanguarda). Portanto, começo a produzir o livro a partir desse ponto, de tal forma que alguns textos vou busca-los à minha infância, com introspecção. Ora, no livro há textos extremamente actuais e poder-se-á dizer que também há textos futuristas. A ideia mesmo foi criar poesia com o que nos é dado no dia-a-dia. Por exemplo, o que nós observamos.

 

E o que se fez com o que não se consegue observar?

Isso fica nas entrelinhas. Se as pessoas conseguirem entender o livro, vão perceber o que não está dito, o que não se pôde dizer, mas que se pode sentir. Acho que aí está a graça da poesia. O que não se diz com as palavras, pode-se fazer chegar através de outros sentidos. O livro propõe-se a isso: a mostrar o que está, o que não está e o que pode estar. No primeiro caderno, discuto muito questões existências e o sentido da vida. No segundo, interessou-me mais com o amor personificado na carne, mas que vai além disso. Já no terceiro momento, aparece o amor às coisas, ao outro à natureza. Penso que este livro consegue fazer o casamento do amor que eu mais admiro: o amor de Platão (que consiste em estimarmos aquilo que não temos), de Aristóteles (que consiste em apreciamos aquilo temos e somos) e o amor segundo Jesus Cristo (ao próximo).  

 

 Considerando a sua missão e a complexidade do processo de produção da poesia enquanto manifestação da linguagem, como pode considera esta escrita um “inutensílio”…

Considero-a “inutensílio” na medida em que para transformarmos a poesia numa coisa útil, temos de ir muito ao fundo da palavra. Nós trabalhamos os elementos do dia-a-dia com muita nuvem em volta e sensibilidade. Ou seja, a poesia não vai transformar as pessoas sem elas se transformem para receber a própria poesia.  

 

Se lhe dissesse que à imagem do seu livro de estreia, neste Ferramentas para desmontar a noite o silêncio é o grande pretexto para o surgimento da própria palavra, concordaria ou discordaria?

Concordaria até certo ponto. Tenho uma paixão pelo silêncio. Não sei explicar porquê, mas o silêncio é deveras arrebatador. O silêncio não é ausência de respostas, pode ser uma corrente de respostas que se pretende. E, em alguns casos, o silêncio até pode ser um barrulho ensurdecedor. Admito que trabalho as várias facetas do que o silêncio nos proporciona.

 

E na sua poesia há um outro elemento na manifestação do amor: o tempo.

Que às vezes perde o verdadeiro sentido do seu significado. Desestruturo o tempo…

 

Tem estado à procura de um eu que lhe habita.  Acredita num encontro absoluto?

Não, não vai haver um encontro absoluto. Nesta busca pela poesia sinto que ainda não cheguei à perfeição. Por exemplo, no trabalho ligado aos elementos intrinsecamente do ser humano – aquelas questões que, independentemente do ser humano ou do lugar onde se encontra, vão contribuir para a pessoa sentir a minha poesia. Quero que os moçambicanos que forem a nascer em 2050 e além disso possam se identificar com a minha poesia. Este é o meu grande desafio. Tornar a minha escrita além do tempo e do espaço, de tal modo que ao ser traduzido para o mandarim, o chinês se reveja na minha escrita. Portanto, o meu grande desafio é tornar a minha poesia universal.

 

Quando é que percebeu que Ferramentas para desmontar a noite estava a começar e quando é que teve a certeza de que estava a acabar?

Essa é uma certeza que eu nunca tenho. Até o último dia, quando me pediram o aval para impressão, eu queria alterar coisas.

 

Há sempre uma insatisfação na satisfação?

Exactamente isso. Os livros nunca terminam. É sempre uma continuidade.  

 

Agora, aquela velha pergunta: por que continuar a escrever?

Porque me concebo melhor escrevendo e a poesia.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Asas da água, de Nelson Lineu, e Matéria para um grito, de Álvaro Taruma.

 

Perfil

Japone Arijuane nasceu na Zambézia, a 29 de Maio de 1987. Estudou Gestão de Marketing e Publicidade na Escola Superior de Jornalismo. É Copywriter, guionista e jornalista. É autor de Dentro da pedra ou a metamorfose do silêncio e Ferramentas para desmontar a noite.

 

 

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos