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Irmão do Universo

Quando fui ao seu encontro para a aprazada entrevista de vida, que me propusera fazer no roteiro de os Habitantes da Memória, e que concluí em duas longas tardes, em sua casa em Maputo, ele tinha justamente o dobro da minha idade: 46 anos. Comunicador exímio, homem de escrita, de rádio e de televisão competentíssimo, cronista instigante e polemista mordaz, dramaturgo, actor e locutor, possuía uma vasta e poderosíssima cultura. Era, não tenho dúvida em afirmá-lo hoje, de longe, a maior figura no nosso espaço mediático. Dominava todos os meios em que actuava com uma proficiência notável. Também era dos poucos pensadores na nossa comunicação social. Em Agosto de 1990, quando o visitei, não tinha ainda editado o seu primeiro livro de poesia, de título Irmão do Universo. A despeito, era já um dos mais altos nomes da nossa lírica. Escrevera um dos mais belos textos da lírica moçambicana da década de 80: “Lamento”.

Leite de Vasconcelos: “Cantei-te serenatas em noites de cetim/ com timbilas e violinos/preparei-te um jantar de ushua e lagostim/com cebola e pepinos. // Falei segredos a búzios da Macaneta/ e mandei-tos pelo correio/ aluguei à semana o estro de um poeta/ e fiz um verso à curva do teu seio. // Colhi flores de madrugada nas Barreiras/ abri uma machamba em Matutuíne/ disse-te amor em trinta línguas estrangeiras/ passeei-te no bazar em Xipamanine. / Comprei um anel de pêlo de elefante/ um disco de sungura/ um sofá, uma cama e uma estante/ um fato azul e um garrafão de sura. // Levei-te às farras das noites de sábado. / À sombra das acácias/ contei-te lendas de um tempo passado. / Deixei de ter notícias/ e o fluir da tua ausência não se estanca. / Namorado, só, itinerante / busco-te nas ruas, encontro-te na Franca/ perdi-te em casa dum cooperante.”

Este é, seguramente, um dos mais belos poemas de amor que se escreveram, entre nós. Recordo-me ainda hoje da emoção, da intensa e incontida emoção, que senti quando o li, pela primeira vez, publicado na “Gazeta de Artes e Letras” da revista Tempo, em Outubro de 1985. Num texto, fatalmente pueril, que redigi sobre poesia moçambicana (“A Viagem da nossa poesia”), em Janeiro de 1987, referi-me a este poema e isso foi motivo para que o Leite de Vasconcelos me convidasse para uma conversa sobre literatura. Ele era Director-Geral da Rádio Moçambique, meu director por conseguinte, pois na altura eu debutava na profissão justamente na RM, onde entrara em 1983. Essa conversa foi exultante. Eu, um miúdo de 19 anos, à beira dos 20, estava ali perante uma grande figura do nosso jornalismo e da nossa literatura, da rádio e da televisão, que ele chegou a dirigir por dois anos. Tínhamos empatia. Quando me propus a entrevistá-lo, anos depois, tinha as seguintes linhas-mestras para o diálogo: a sua trajectória inicial, a sua participação no 25 de Abril, os primeiros anos de jornalismo pós-independência e a escrita literária.

Teodomiro Leite de Vasconcelos nascera a 4 de Agosto de 1944 em Arcos de Valdevez, em Portugal, e viera cedo para Moçambique. Crescera na Beira, numa família humilde, o que assumia sem pejo nenhum. Começou a ler muito cedo. Lembrava-se da influência profunda que uma obra de Roger Martin du Gard provocara em si: O Drama de João Barois. Ou O Pão da Mentira de Horace Mackoy. Acrescentava a estas leituras os americanos dos anos 50: Ernest Hemingway, Erskine Caldwell, John Steinbeck, entre outros. Só muito tarde, lera os portugueses e referia Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro. Mas lera de tudo: ficção científica, policiais, romances de todo o género, poesia. Praticava, em termos de escrita, vários géneros: poesia, teatro, contos.

Na Beira, aos 18 anos, fundara, com um grupo de amigos, a Associação dos Jovens de Moçambique, que logo seria interditada. Ainda encenaram uma peça de teatro, mas a seguir as autoridades dissolveram a associação, persuadindo-os a juntarem-se à Mocidade Portuguesa, o que eles recusaram. No entanto, a rádio tinha sobre ele um grande fascínio. Era o meio que chegava ao seu estrato social. Não vivia na cidade, mas sim no interior, ela chama-lhe mato. Entre 1964 e 1968, foi estudar ciências sociais a Portugal e, no regresso, ainda teve uma breve passagem pelo Banco Standard Totta. Uma experiência atroz, dizia. Não muito tempo depois, abriu um concurso para locutores na Rádio (tivera uma experiência no Aeroclube da Beira, com um programa de rádio, promovido pela tal associação, que duraria brevíssimos 4 meses), concorreu e foi admitido. Em finais de 1972, a sua voz estava banida em Moçambique e decide ir para Portugal. Colaborou no arranque do semanário “Expresso”, mas, mais do que isso, ele e o Manuel Tomás – que era sonorizador no Rádio Clube de Moçambique e resolvera também sair, com o Eugénio Corte Real, na mesma altura que o Leite -, com mais um angolano, que era profissional de rádio e ainda um funcionário do Instituto Português do Café, na Guiné-Bissau, compraram um espaço de antena na Rádio Renascença e fundaram o programa “Limite”. O programa – que tinha um escol importante de colaboradores, que o faziam pro-bono – arregimentou audiência e afirmou-se imediatamente. Tentavam ir até ao limite do que a censura permitia. Iam para o ar entre a meia-noite e as duas da manhã. O Movimento das Forças Armadas haveria de escolhê-lo para emitir a “senha” do golpe. Leite de Vasconcelos leu, antes de passar, a “Grândola, Vila Morena”, os versos da canção de Zeca Afonso. Ficavam assim, ele e o Manuel Tomás, dois jovens oriundos de Moçambique, ligados à história da Revolução de Abril. Entre Agosto de 74 e Abril de 75, permanece, sob sugestão da FRELIMO, em Portugal, a colaborar na delegação do Rádio Clube de Moçambique, em Lisboa.

Entre Maio e princípios de Junho de 1975, acompanha a viagem de preparação da Independência, empreendida pelo então primeiro-ministro do Governo de Transição – Joaquim Chissano. Tem o contacto com vilas e povoações, com população e com os dirigentes da FRELIMO. Já os contactara, em Lisboa e em Londres, mas este contacto em Moçambique foi marcante. Também seria marcante a cobertura da viagem triunfal do Rovuma ao Maputo, iniciada em Dar-es-Salaam por Samora Machel. Viveu empolgado essa fase. Machel seria, aliás, a figura que o marcaria para sempre. Sem o mitificar, referindo que poderia ter tido provavelmente atitudes discutíveis, via no seu “daltonismo” – não via cores na sociedade moçambicana, em termos raciais, sublinhe-se! -, na sua extrema inteligência e velocidade de raciocínio para encontrar e discernir sobre fenómenos e acontecimentos muito complexos, o eixo essencial das questões. Para Leite de Vasconcelos, Samora Machel vivia no vértice da História.

Cronista e polemista nos jornais, locutor de rádio, produtor e apresentador de televisão, tornar-se-á, nos anos 80, a mais insigne figura do nosso espaço mediático. Acompanhei, com entusiasmo, as polémicas em que interveio, entre elas, uma sobre a língua portuguesa, na qual esgrimiu argumentos contra Moura Vitória, que tinha, em relação à língua portuguesa, uma concepção bastante redutora, sendo que Leite de Vasconcelos via – e com razão – uma língua que haveria de se diferenciar pelo uso dos seus falantes em Moçambique. Mas houve várias outras polémicas, seria fastidioso contabilizá-las todas aqui.

Disse-me, em relação, à prática de jornalismo, na primeira República, algo que constituiu uma confissão dilacerante, mas sincera: a nossa informação tinha praticado – e ele assumia-o – actos de auto-censura. No entanto, asseverava: não tinha mentido deliberadamente, mas sim omitido. Omitira factos, acontecimentos e processos. Tinha sobrevalorizado o papel do Partido no poder, ou do próprio Estado. Isto é importante para perceber a trajectória dos intelectuais, intelectuais orgânicos na generalidade, em Moçambique. É preciso dizer que vivíamos num contexto de monolitismo político. Achei corajosa esta confissão do Leite de Vasconcelos e admirei-o ainda mais por isso. Por admiti-lo, num contexto de mudança que então se operava, e não proceder a uma metamorfose camaleónica, como se nada tivesse a ver com o passado. Não era pessimista, nem catastrofista, mas assumia que, em relação aos primeiros 15 anos da Independência, que era o tempo que nós estávamos a escrutinar, havia que discutir e tirar ilações dos erros que se haviam cometido. Tinha receio de uma tendência que se afirmava que estava a passar uma espécie de esponja sobre o passado recente. Falámos da tragédia da guerra, do país devastado, do drama social, de progressos na Educação e na Saúde, não obstante, da pobreza, da experiência do Leste, que estava a conhecer o ocaso, da literatura, dos livros que sonhava publicar, dos escritores que o haviam influenciado. A esta distância, queria ter a benesse da sua análise e da sua sensibilidade arguta, sobre o tempo presente. Creio que haveria de ser testemunha de uma brilhante análise.

Eu lera o original do seu Irmão do Universo (1994) e estava convencido de que este livro o colocaria na primeira linha da nossa lírica. Este e o ulterior – Resumos, Insumos e Dores Emergentes (1997), publicado postumamente, confirmaram-no em absoluto. Dele também constariam: Pela Boca morre o Peixe (Crónicas, 1999), As Mortes de Lucas Mateus (teatro, 2000). Foi realizado, em 2001, por Fernando Vendrell, um filme com base em um argumento seu: O lento gotejar da luz. Uma co-produção Portugal-Moçambique, na qual participam como actores moçambicanos, a jovem Alexandra Antunes e o político veterano e actor estreante Amaral Matos, de saudosa memória. , Em 2004, seria dado à estampa A Nona Pata da Aranha e outros Contos que revela um constista primoroso.

Tínhamos uma referência literária em comum: Rui Knopfli. Ele colaborara na revista Caliban. Apreciava a atitude poética de José Craveirinha, reconhecia António Gedeão e Jorge de Sena como tendo alguma influência na sua poesia. Sobretudo Fernando Pessoa. Outros poetas cuja influência não sabia aferir, mas que eram importantes para a sua formação poética: Camões ou Bocage. Era um declamador exímio, começara por fazê-lo na Associação Africana. Dizia poemas do José Craveirinha, da Noémia de Sousa, do Rui Nogar e do Rui Knopfli.

Eu entrara, em 1983, na Rádio – já o disse -, onde o conheci, para fazer teatro radiofónico, onde ele pontifica como uma das suas figuras exemplares: adaptando peças, escrevendo outras tantas, interpretando-as, produzindo-as outras vezes. Lembro-me da sua voz, dizendo poemas e contos na rádio, lembro-me da sua voz e da sua figura imensa na televisão, lembro-me sobretudo do seu alto sentido ético e estético na intervenção que fez no nosso espaço público naqueles anos primordiais a seguir à Independência. Lembro-me da sua cultura exuberante e da sua proficiência intelectual. Da sua arguta inteligência. Lembro-me das reuniões ou assembleias gerais da AEMO, das suas intervenções informadas e equilibradas, da sua experiência vasta, do seu bom senso, da sua estatura, da sua grande estatura como homem de letras e como cidadão moçambicano. Recordo-me do conversador fascinante que ele era. Gostava de o ouvir. Viveu muito pouco, aos 52 anos uma impenitente doença profligou-o, estava-se a 29 de Janeiro de 1997 – passaram vinte um anos. Há duas semanas, quando redigia esta breve nota, seria tolhido pela morte de Hugh Masekela. Tive de postergar a homenagem ao Leite de Vasconcelos. Aqui fica o meu reconhecimento àquele que era, indubitavelmente, o nosso maior publicista na primeira República e nos primórdios da ulterior. Hoje praticamente deslembrado.

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