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“Guardeis para mais tarde a dor”

Por volta de 1995 tinha eu já a idade de homem, embora fosse o mais novo de casa e fosse vivo nessa altura o meu pai. As aldeias que nos circundavam, as quais entrávamos como suspeitos de algum crime e saíamos como se voltássemos de uma festa, tinham um aspecto à primeira vista silencioso, porém de pândega para quem olhasse com olhos de ver; mesmo que nos rostos de quem os habitasse vivesse pendurada uma lágrima. Destas lágrimas preguiçosas para cair. Anos mais tarde – era eu uma espécie de rato de biblioteca – vim a saber que aquele bairro que nos circundava – e que se encolhia ao nascente e se reanimava ao sol poente – era, afinal, um campo de refugiados. A guerra já havia terminado, é verdade. A paz nem tanto. Cada um daqueles habitantes que vinham à distância de dias e noites intermináveis tinha algures um morto por enterrar e, quem sabe, um pecado inconfessável.

As manhãs começavam com música na casa do meu pai. A menininha trazia água numa bacia metálica e pousava-a sobre a mesa. Quem me dera se eu lembrasse o seu rosto. A garotinha de idade pouco maior que a minha, mas demasiadamente inferior à do meu irmão mais velho, mesmo que só dois anos nos separassem, era solícita e vívida. Sob suas mãos, o chá escorria quente e fumegante para dentro da chávena que retinha o olhar do meu pai. A menina havia entrado pela porta de casa agarrada pelo ombro de minha mãe, que a havia encontrado algures vagamundando.

Eu podia esquecer de tudo, menos o cheiro de um pão. O cheiro da menininha esqueci, como esqueci o cheiro da casa, a cor daquele mar particular que eu via da janela, a areia que se deixava antever de longe e as palavras que pronunciavam os bêbados nos seus circos nocturnos, esquecidos da sede da matança e da fruição do medo. Sucedeu, porém, que por razões que até hoje ignoro, e que eram ainda mais confusas ou banais na altura, a meninha punha-se sempre a chorar quando fosse pontualmente dezassete horas. Daí a trinta minutos chegaria o meu pai, mão tomada por um cigarro e outra ocupada por um novelo que escondia um cesto de peixe, reclamando da severidade das ondas e da palidez que o legava a água do mar. Nunca me acostumo a essa vida – dizia. Mas no minuto seguinte era eu quem fungava e jurava aos deuses não ser capaz de tocar um fio que fosse da menininha. Não importa, o jantar estava servido. A minha mãe voltava do mercado puxando pelo braço do meu irmão. Havia sempre mais um jantar sobrando para mim.

Como eu frequentasse as aulas no período da manhã, passava toda a tarde em casa com a menina, brincando de ajudar nas tarefas domésticas. Antes de descascarmos a batata doce ou pôr de molho as folhas da aboboreira, fazíamos viagens em batéis de lata de atum, nadávamos no mar raso das folhas das mangueiras e baloiçávamos na imaginação de um dia poder vir a ter baloiços. No entanto, mal o começasse o sol a por-se e, meticulosamente calculado, a menina desatava ao choro, apontando-me com o seu indicador todas as culpas. A princípio não percebi nada, como na verdade nunca cheguei a perceber. Por dias longos, chegava o meu pai as dezassete e trinta, a mão tomada pelo cigarro e na outra o chinelo cantava.

Em “Talpa” de Juan Rulfo extraído de “El Llano en llamas”, a Virgem do Santuário de Talpa é um símbolo religioso destinado a curar os enfermos e outros problemas. Natália aventurar-se-á para aqui, guiada por um peregrino, para cumprir uma promessa. Tanilo está doente e é a ele que interessa salvar. Entretanto, é enterrado ali, com a sepultura cavada à mão, sem que ninguém ajudasse. A viagem é em suma um pesadelo, contudo Natália não derrama uma única lágrima. Talvez não a afligisse o luto, mas chegados a Zenzotla, percorridos dias e léguas de viagem, ao ver a mãe Natália despontou a chorar como se precisasse de algum consolo.

Não me cabe a mim – hoje – reflectir acerca do infortúnio de Natália ou sobre a narrativa de Juan Rulfo. Nossa terra ainda carregava a cor de chumbo. A menininha podia ser tão vítima quanto vilã, como mais tarde descobrimos em Talpa. O que sei, porém, é que um dia a minha mãe regressou mais cedo e pôs-se em tocaia algures próximo de casa. Claro, que desconfiava que alguma coisa não ia bem. Não tardou que as aves se pusesse em direccão ao sol poente e a menina ligasse a corda do seu choro, eram precisamente cinco da tarde. O choro durara os exactos trinta minutos até que no ar flutuasse o fumo de tabaco do meu pai. A minha mãe no camarote assistia àquele ensaiado ballet de lágrimas. Quando o chinelo ia começar outra vez a cantar…

Os meus pais estavam envergonhados, acreditaram por longos dias que eu tivesse violentado a menina, que fora o infantil carrasco, quando eram lágrimas de invenção. Se calhar ela não se sentisse confortável separada da sua família ou tivesse, quem sabe, motivos piores. Ninguém conhece a verdadeira dimensão da dor. A precisão com que a garota domesticava o choro, a sua duração matemática, a arte de compadecer o outro. Isso me fez acreditar que não há nada tão efémero como a felicidade, porque por mais que pudéssemos inventá-la nunca nos sairia tão perfeita e duradoira como a tristeza daquela pequena actriz da vida. Os refugiados de guerra retornaram cada um à sua maneira e nunca cheguei a vê-los chorar.

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