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Gincanas em busca de Samora

Por: Tony Amurane

 

A aurora ainda nem estava pronta para a sua majestosa aparição, prometendo um novo dia cheio de realizações e brilho infindo. Os galos aqueciam seus papos para despertar os madrugadores daquela atmosfera invernal. As árvores sentiam o frio naquelas bandas densamente povoadas da cidade, onde os arquitectos e urbanistas se esqueceram de passar para a desenhar e, as pessoas com seus instintos foram desenhando seus albergues sem padrão nenhum. À noite, a missão de todos é vigiar sua conquista do dia. Movimentos estranhos são sempre audíveis nas longas noites de vigia dos moradores de Namutequeliua. De dia, as histórias das noites podem compor um best-seller.

Naquele momento, Andarusse já estava com a mota do seu patrão para mais muitas gincanas pelas artérias da cidade de Nampula, seu local de trabalho de taxista. Depois de verificar, pela terceira vez, o cómodo que estava a arrendar naquela casa, de alvenaria de bloco de cimento e areia, não rebocada, deu graças a Deus por não ter sido visitado pelos amigos do alheio. Empurrou o veículo para fora da edificação. Saiu pela porta velha quase em pedaços do quintal do complexo e accionou a manivela da mota. Quase em simultâneo ao som do motor, ouvia-se o chamamento para a reza matinal nas diversas mesquitas que existiam pela unidade comunal Amílcar Cabral. A luz da motorizada era fraca, mas a sua perícia e conhecimento daqueles labirintos sem fim do bairro, o fizeram chegar sem problemas de maior ao local sagrado. Pelas voltas que dava ao longo das ruas da cidade, conhecia seus (des)encantos como o leão domina seu território. Deixou o veículo no sítio reservado para tal. Depois de um banho frio em casa, as abluções foram como o derreter da manteiga no maior sol do Verão de Tete. Deixou suas sapatilhas na entrada e dirigiu-se ao salão de orações. A mesquita estava com poucos crentes. A madrugada, de cerca de 13 graus Celsius, não convidava muitos para o culto.

–  Assalama Aleikum – cumprimentavam-se uns aos outros

Os Aleikum salams de resposta ecoavam pelo salão como anjos cantando.

De saída da casa sagrada, olhou para o amontoado de calçados à porta. Ficou estupefacto quando não encontrou os seus. Revirou os calçados na companhia de outros crentes, não tendo encontrado os seus. O pânico dele ia subindo de escala que ultrapassou a altura baixa do seu corpo franzino. Finalmente rendeu-se aos factos: alguém furtara suas maravilhosas nikes da calamidade acabadas de comprar no mercado da descida, no bairro de Carrupeia. Caminhou velozmente para a mota e a meio do caminho teve uma paragem repentina.

– Aiiiiiiiiiiiii – gritou olhando para os céus, como que perguntando por que razão era aquela penitência naquele período. Acabava de pisar uma pedra pontiaguda que estava perdida por ali.

Furioso, ligou o veículo e foi a casa para ver se encontrava umas pantufas para a jornada daquele dia.

Os primeiros raios solares já começavam a dar o ar da sua graça. Os becos já tinham algumas pessoas com afazeres mais cedos. As lâmpadas exteriores das casas iam-se apagando, anunciando o despertar dos moradores.

Andarusse chegou aos seus aposentos com cara de poucos amigos. Suas feições estavam visíveis. No dia anterior, antes de ir à casa fez a barba, deixando somente a parte inferior, para não fugir muito ao recomendado aos praticantes da religião muçulmana. Estacionou a mota fora do quintal, entrou para o recinto e viu que a maior parte dos outros inquilinos ainda estavam a dormir. O frio convidava para mais um tempinho na cama.

– Allah ajuda quem cedo madruga – disse para si mesmo em voz quase muda, lembrando uma novela brasileira que anteriormente assistia na casa do vizinho antes de se mudar para ali.

Foi ao seu cómodo, escolheu umas sandálias e saiu às pressas. Já havia algum movimento nas estradas daquela cidade rodeada de montanhas. Estava atrasado para as boladas na via. Saiu às pressas para não perder nem mais uma.

– Como vai, Anda? – perguntou seu vizinho Artur que gostava muito de correr nas manhãs ao longo da avenida Eduardo Mondlane – Peço boleia para a via.

– Na poa, mano – Seu sotaque era marcadamente macua – para quê brecisas te poleia, se vais tchimar?

– Chuva de ontem deixou todos caminhos com água, mano. Ajuda-la um gajo. As sapas já estão encharcadas.

Sapes que xtou a facer daxi, paca-la alcum alco aí.

– Depois, sem stress. Também teu patrão não vai saber, se eu não pagar.

Sopi-la. Chá estás a me atrassar.

Num salto atlético, Artur subiu no veículo e foram pelos becos conversando sobre diferentes assuntos. Chegaram a avenida Eduardo Mondlane, próximo do anterior estádio 25 de Setembro, Artur desceu.

– Hoje está muito pouca gente a correr.

– Estão a namorar. Não é você que nem conseque aquela muthiana.

– Muaija ainda vai ser minha.

Chá me fisseste perter muito dempo. Adé mais loco.

Andarusse saiu calmante daquele local, tentando não perder de vista possíveis passageiros.

– Táxi, táxi – falava sempre que avistava uma pessoa caminhando pela estrada.

Uma senhora com trouxas de hortícolas o chamou e pediu para a deixar no mercado dos Belenenses, bairro de Muhala. Foi ter com ela com velocidade de antílopes. Entre o prédio Lopes e a biblioteca Marcelino dos Santos, adentrou no bairro de Muhala com destino ao local de venda. Aquela viagem foi rápida e ganhou os seus primeiros meticais do dia. Foi abastecer logo a sua moto, pois já estava com muito pouco combustível. A receita e o dinheiro de combustível tinha deixado em casa do seu patrão. Por falta de bombas de abastecimento por perto teve de o fazer nos revendedores informais que existem um pouco pelas ruas da cidade. Daí foi à sua praça, Escola Secundária de Nampula.

Andarusse estacionou a motorizada e começou a reflectir. Mil e um pensamentos passavam pela sua cabeça. Tirou o gorro verde da cabeça e colocou no bolso da camisola que trazia consigo. Parecia que queria a brisa matinal suavizando aquele turbilhão de ideias. Divagava sobre os acontecimentos daquela manhã ainda muito tenra; sobre a passagem da mota à sua pertença depois da jornada laboral do dia, porque assim ditava o contrato verbal com o seu patrão; O que faria com o veículo: alugava ou arranjava alguém para fazer táxi para si; como estaria sua amada naquela manhã. Um sorriso leve começou a desenhar-se nos seus beiços. De repente, seu telefone celular tocou.

– Alô – pom tia.

– Bom dia. Tudo bem? Olha, podes vir levar-me aqui no campo do Sporting? Quero chegar ao Hospital Central.

Tuto pem. Posso sim, poiss.

– Quanto será?

– São 150 paus, patrão.

– Logo de manhã já queres me matar? Baixa isso, jovem.

– Ok. Como você és meu pois, paca-lá 130.

– Já estou pronto. Conheces minha casa.

– Estou a vir. Se Poiss me tissesse falado onde esse momento já estaria aí.

– Até já. Não acabe meu crédito, senão pago 100 samoras.

Andarusse colocou-se pelas ruelas adentro do seu bairro, disputando espaços com peões, sempre tentando não levantar as águas ali estagnadas em milhares de poças.

***

O dia ia calmo. Os raios solares tímidos mostravam algum ar da sua graça. As pessoas caminhavam frenéticas pelas ruas em busca da concretização dos seus objectivos. Sempre que Andarusse cruzava seu olhar com um potencial cliente, fazia um gesto com seu dedo indicador, dando a entender que perguntava se precisava dos seus serviços.

– Táxi? – perguntou um peão.

– Sim, poiss. Para onde vamos?

– Chegamos à Faina. Estou com urgência. Quero levar umas peças.

Sobe, patrão. – Seu coração batia acelerado. Cada cliente representava mais receita para o dia

O taxista colocou as duas rodas do seu veículo sobre o asfalto em direcção à Avenida do Trabalho.

– Como tem sido a vossa actividade de táxi?

Acora já não vai muito pem.

– Como assim?! Mas por quê?

– Já dem muitos jovens a fazer dáximota.

– Pois. Parece que todos os dias tem mais motas nas estradas.

– Sim. E mesmo quem não é daxista, quando alguém percunta se está a fazer dáxi, vai tizer que está. E as praças estão a aumentar dotos os tias.

– Mas, vocês não têm uma organização, uma associação para controlar isso? O município não faz nada a respeito?

– Existe uma associação, mas ainda não se faz sentir muito.

A conversa terminara por causa da necessidade de concentração que precisava para manter o foco na estrada. O movimento na Avenida do Trabalho era intenso. Carros, motas, pessoas, bicicletas cruzando e disputando espaços. Chapas de muitas rotas se cruzavam, se ultrapassavam em busca de mais passageiros. Era um caos. Serpenteando as viaturas, Andarusse ia ao seu destino.

Depois de levar as peças na loja, seu passageiro regressou à motorizada e começaram a voltar para o centro da cidade, enfrentando mais uma vez aquela confusão.

O cliente indicou para irem em direcção à padaria Nampula. Na zona do gato preto, pediu para entrarem no bairro de Namutequeliua para irem à oficina deixar os componentes automóveis. Sinalizando a mudança de sentido de marcha, Andarusse ficou a aguardar a passagem de um camião. De repente, um carro que estava a ser perseguido pela polícia tenta contornar a motorizada, acabando por bater nela violentamente. Os dois passageiros foram projectados para o asfalto e a mota para debaixo do camião. Houve uma enchente repentina de pessoas, perguntou ao seu passageiro se estava bem, tendo respondido que sim. Sem ferimentos graves, olhava dorido e cabisbaixo para os pedaços da sua futura mota.

 

 

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