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“Fazer música é um equilíbrio entre o talento e a ciência”

Muito novo, Hélder Gonzaga decide tornar-se instrumentista. Primeiro aprendeu a tocar guitarra. Depois, apaixonou-se pelo baixo, deixando para trás o seu interesse pela bateria. Quando se apercebeu que o caminho por si escolhido não tinha volta, viajou para África do Sul, e lá se formou em Música. Hoje, o baixista que encarra a música como um equilíbrio entre o talento e a ciência, é dos mais solicitados em Moçambique. Nesta entrevista, Gonzaga fala do seu percurso artístico e do que lhe prende na música.

 

Descobre a guitarra aos 16 anos de idade, graças a um amigo seu. Quase um ano depois, já com alguma convicção, inicia a sua carreira musical. Qual foi a importância de Jaime Macucule nesse princípio?

Devo muito ao Jaime Macucule porque foi ele que me meteu nesta área. Na altura ele era meu vizinho e eu sempre o via a tocar no muro. Curioso, eu e muitos meninos íamos ter com ele. Aí apaixonei-me pela guitarra e pedi-lhe que me ensinasse a tocar. Ele tocava, depois passava para mim, explicando como é que eu tinha de fazer. Assim foi durante meses. Ficávamos a tocar até às 3 da manhã. Lembro-me que a minha mãe sempre gritava. Um dia alguém passou pela minha rua com uma guitarra. Perguntei-lhe se estava à venda. O moço disse-me que não, mas eu pedi-lhe que me vendesse e ele aceitou. Fui ter com a minha mãe. Na dúvida, ela acabou comprando e aí tudo continuou. Passei a praticar mais com o Jaime ou sozinho. Estava sempre com a guitarra. Em menos de seis meses, estava a fazer o meu primeiro show ao vivo, numa banda de rock. Toquei com Paulo Chibanga e Dino Miranda. Nós formávamos um trio e juntos fazíamos shows ao vivo.

 

Sem o episódio com o Jaime, acha que teria se tornado baixista?

É difícil saber. Talvez não, talvez sim. Na verdade, eu nem queria me tornar baixista. Comecei tocando guitarra, mas o que eu queria mesmo é ser baterista. Mas bateria é aquele instrumento que nos obriga a carregar muita coisa. Então o Jaime me disse que o baixo era o instrumento mais próximo à bateria. Não me pareceu boa coisa no princípio. Ele mostrou-me, porque também toca baixo, eu experimentei e foi amor à primeira vista. Daí não parei mais.

 

Foi esse amor ao primeiro toque que o leva a estudar música em Cape Town?

Sim, e isso calhou numa altura em que muitos dos meus amigos estavam a sair para estudar fora. Fiz o exame de admissão, que correu bem, e decidi seguir essa aventura.

 

O que o conhecimento científico adicionou à sua arte?

O conhecimento é sempre muito bom. Como diz um amigo meu, só de talento o artista fica lento. É sempre bom termos as duas vertentes: talento e ciência. Portanto, para mim, fazer música é uma espécie de equilíbrio entre o talento e a ciência. Casos há em que vêm músicos de fora e querem trabalhar connosco. Se não temos o mínimo de conhecimento, não conseguimos interpretar uma partitura. Há músicas que não devemos tocar apenas com o coração, devido à sua complexidade.

 

Como descreve a oportunidade que tem de tocar com vários músicos, de diferentes géneros?

É uma experiência muito positiva, porque aprendo sempre. E acho que a minha simplicidade me favorece.

 

Existe um género musical que o excita mais?

Os artistas não se devem fechar a um único estilo, sobretudo os músicos de sessão. Temos de estar abertos e ouvir muita variedade de música. Temos de ser ecléticos, mas confesso que gosto mais da fusão de ritmos, o world music. Eu identifico-me mais com esse género.

 

Tem tocado com diversos artistas. Por exemplo, Jimmy Dludlu, Moreira Chonguiça, Stewart Sukuma, Paulo Flores, e etc.. Quem foi o mais difícil de acompanhar?

Tocar com Stewart Sukuma continua a ser um grande desafio porque o estilo dele é muito moçambicano, com mistura de ritmos nacionais. Além dele, também é um desafio acompanhar Moreira Chonguiça, que é uma pessoa um pouco maluquinha. Temos de entender o que ele quer e tem sido um desafio que vale a pena.

 

O que é determinante para que entre num projecto com outros músicos?

Eu gosto muito de saber com quem vou tocar, para saber como me vou comportar musicalmente. Até porque já tive dissabores com alguns músicos. Segundo, não gosto que me condicionem, porque isso me tira a autenticidade, a minha identidade.

 

Estúdio ou palco?

Sou mais de palco. Até porque eu estudei performance. No estúdio tens mais pressão e não podes te espalhar muito. O palco é onde nos expressamos e sentimo-nos mais à vontade. Eu gosto de sentir as pessoas. Por isso, sem as pessoas, é difícil ter motivação. Mas estou habituado às duas realidades.

 

No seu caso, como é fazer música em Moçambique?

É um desafio. Na altura em que saí para estudar fora era ainda mais complicado. Por isso saí. Agora está muito melhor.

 

O que melhorou?

Temos mais opções de estúdio, festivais e estamos a crescer.

 

Fez parte do Tucan Tucan. Que lembranças guarda desse período?

Foi um grande aprendizado, com Frank Paco como líder da banda. Aprendi muito com ele e um pouco do que eu sou hoje é graças a ele. Tocar com Tucan Tucan foi dos grandes desafios da minha carreira. Foi uma grande experiência.

 

 Além de tocar, tem interesse na área da pesquisa, concretamente no que diz respeito à preservação do património cultural. Quer argumentar?

Sem dúvidas. Creio que, em 2009, em Copenhaga, na Dinamarca, apresentei um estudo sobre a marrabenta, a convite de Deodato Siquir. Na altura tivemos que apresentar as particularidades do ritmo. Os dinamarqueses não faziam ideia do que é marrabenta e perceberam que é um ritmo difícil, ate para nós, músicos moçambicanos.

 

Como está a ser este período de isolamento para si?

Está a ser difícil porque não podemos expor os nossos trabalhos. Por isso tenho optado em fazer trabalhos de estúdio a partir de casa. É em momentos como este que sentimos que não somos valorizados. Quem está em casa tem entretenimento, escuta-nos e etc., mas nós não ganhamos nada com isso. É um cenário triste para nós que vivemos da música.

 

Em que aspectos gostaria de sentir a valorização dos músicos pelos moçambicanos?

Não devemos sempre arranjar culpados. Nós, os músicos, também devemos lutar por essa valorização. Temos a Associação dos Músicos, por exemplo, que eu acho que precisa de ser reestruturada. Há muita coisa que não está bem lá dentro.  

 

Há dias, numa reportagem exibida na Stv, António Marcos disse que, sem concertos, está a ponderar abrir uma sapataria. O que isto significa?

É muito complicado. Para quem vive apenas de música, é um momento catastrófico.

 

O que lhe prende na música?

A paixão que tenho por esta arte.

 

Se dependesse de si, o que adicionava ao universo artístico em Moçambique?

A primeira coisa que iria adicionar seria a educação musical. Aqui temos muito talento. Se nós tivéssemos o mínimo do que África do Sul possui, estaríamos num grande patamar.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro o álbum Echoes from the past, de Jimmy Dludlu, e o filme Resgate, da Mahla Filmes.

 

PERFIL

Hélder Luís Gonzaga nasceu a 25 de Outubro de 1979, em Maputo. Em 2006, licenciou-se em Música pela Universidade de Cape Town, na África do Sul. Foi um dos membros da banda Tucan Tucan e actualmente faz parte das bandas The Moreira Project e Stewart Sukuma & Banda Nkhuvu, tendo actuado com vários músicos, como de Jimmy Dludlu, Manu Dibango, Lura, Nancy Vieira, Ivan Mazuze, Deodato Siquir, TP50, Tito Paris, Paulo Flores, Ghorwane e Isabel Novella. Também é professor particular de música: guitarra, baixo e piano.

 

 

 

 

 

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