Muito sangue jorra entre as matas da terra que abriu caminhos para a independência. Afinal, o primeiro tiro ou a sua história viriam a amaldiçoar um povo? Ao celebrarmos a independência, construímos histórias triunfalistas, epopeias de um povo entusiasmado pela vitória. Desenhámos no imaginário colectivo heróis cuja experiência atravessaria gerações e fortificaria a guarda da nossa pátria pela eternidade. Mas quando mal se perdia o eco do grito da vitória, as muralhas tornavam-se tijolos soltos e sem arquitectura, denunciando a nossa frágil força combativa. Amaldiçoados por todos os males, vivemos 16 anos de guerra, com seca, cheias e muita fome à mistura.
No princípio da década 90, o arco-íris brilhou com a assinatura dos Acordos de Paz, em Outubro de 1992. Sol de pouca dura saboreámos. Docinho roubado na boca, antes mesmo do tacto ou a sensação do adocicado emergir. A tão almejada democracia tornou-se uma banheira de pólvora. Em cada ciclo eleitoral, o povo mergulhava e enfrentava a artilharia de guerra da Renamo, que agitava as águas em protesto contra os resultados proclamados, e até mesmo pela vaidade de exibição da sua musculatura militar e táctica de guerra. De intervalo em intervalo, experimentámos a paz emprestada a prazo incerto.
Calejados deste sofrimento, a história quis poupar-nos e silenciou as armas da Renamo, mas não nos disse que era apenas um intervalo e que novos engenhos viriam, subitamente, em nossa direcção a partir de Cabo Delgado. Seis anos passaram-se e o que se augurava passageiro fez morada e habita tranquilamente entre nós, semeando luto e dor entre os moçambicanos. Os sistemáticos ataques terroristas deixam uma trilha de destruição e desespero e desfazem o futuro de comunidades.
O Governo, reconhecendo a gravidade da situação, aceitou ajuda de forças estrangeiras, porém os resultados têm uma positividade instantânea.
Vivendo em constante estado de terror, os inúmeros episódios traumáticos levaram a que milhares de vítimas desabrigadas procurassem amparo em terras vizinhas, como Nampula e Quelimane, e um pouco pelas demais províncias do país. Mas quando os terroristas fingiram fragilidade e deram uma pausa estratégica, impingiram-nos, precipitadamente, a ideia de vitória e de controlo da província. Ansioso por retornar às origens, o povo migrante de Cabo Delgado foi, aos poucos, testando essa tese, mas tramou-se. Novos ataques colocaram a nu esta fantasia e esvaiu-se a esperança com o agudizar do conflito nos últimos dias.
Um novo episódio de drama humanitário avizinha-se. Esta semana, mais de 20 mil pessoas do distrito de Chiúre, em Cabo Delgado, saíram em pânico à procura de abrigo seguro. Muitos seguiram para o distrito de Eráti, em Nampula, percorrendo cerca de 60 km a pé em busca de socorro, um socorro que não veio. A equipa da STV trouxe aos olhos da audiência a lamentável situação de abandono a que estavam sujeitos. A qualidade de resposta do Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres é um autêntico desastre.
Passaram-se 24 horas sem que esta equipa de emergência percebesse a emergência em que mais de cinco mil crianças e cerca de 15 mil adultos estavam. É inadmissível a insensibilidade do Governo para com um povo que vive calejado de dor e em permanente crise, há mais de seis anos. É dever do Governo garantir o bem-estar dos cidadãos e ajuda humanitária, quando necessária, tal e qual a situação exigia. Mas não! O que ouvimos foi que a população se precipitou ou mesmo que ela deveria produzir e não ficar infinitamente à espera de apoio. Palavras que os padres, na sua humilde interpretação, consideram inocentes e oram pelo perdão de quem as profere. É lamentável. Cometemos erros com uma arrogância fútil e fugimos da realidade com extraordinária insensatez. O apelo à produção, indubitavelmente, não foi oportuno.
Largados à sua própria sorte, quando o ronco da fome soou mais alto, muitas famílias se lançaram à estrada e, debaixo de um calor escaldante, percorreram quilómetros de estradas para sobreviver, entre o risco da morte por bala ou catana e a hipótese de prover alimentos e escapar à morte por fome. Guiados pela lei da sobrevivência, com crianças ao colo, estes vão, naturalmente, desenvolver novas crenças e ressignificar as suas vidas. É a lei de esforço invertido que agora lhes fará sentido.
Ignorar o sofrimento deste povo é igual a esquecer que as pessoas que sofrem com acontecimentos traumáticos e se superam a si próprias traçam novas filosofias de vida. Neste caso, o Governo pode tornar-se parente distante e os terroristas, mais próximos. Estamos órfãos, órfãos de pais vivos, e quem nos está a adoptar são os terroristas.
Moçambique, SURGE ET AMBULA. Ainda há tempo.