Num célebre, penetrante, inquietante e, indubitavelmente, polémico texto, que tanto estimulou (apesar de ligeiras discordâncias) a minha juventude literária, Eugénio Lisboa socorre-se de uma ingente definição de poesia, estabelecida pelo poeta mexicano Octavio Paz, num ensaio luminoso intitulado “Poesia e poema” que introduz o seu notável e incandescente livro O Arco e a Lira, para proceder ao inventário da poesia moçambicana. Tenho o livro do celebérrimo poeta mexicano sobre o tampo da mesa e os dois volumes da viperina Crónica dos Anos da Peste, publicadas em 1973 e 1975 por Lisboa. Lembrei-me destas referências bibliográficas quando relia a poesia de José Craveirinha e pensava no maniqueísmo patriótico ao qual ele foi exilado. Craveirinha tem poemas belíssimos e versos definitivos, muitos dos quais estão longe dos textos que são normalmente referidos quando citamos o seu jubiloso nome. Creio, inclusive, que o melhor Craveirinha reside aí, na sua poesia menos conhecida, com autênticos achados, privilégio dos eleitos. Mas queria chamar à liça o ensaio balizador do poeta mexicano. Começo por reler este texto, que é uma soberba lição de poesia. Creio que todos os aspirantes a poetas – e mesmo os poetas estabelecidos e/ou consagrados – deviam lê-lo e cogitar longa e detidamente sobre ele. Esta definição pungente de poesia permite-me explicitar o meu raciocínio sobre a poderosa obra poética de José Craveirinha.
Octavio Paz: “A poesia é conhecimento, salvação, abandono: Operação capaz de mudar o mundo, a actividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Oração ao vazio, diálogo com a ausência: alimentam-na o tédio, a angústia e o desespero. (…) Arte de falar por forma superior; linguagem primitiva. Obediência a regras; criação de outras. (…) Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo (…) Analogia: a poesia é um caracol onde ressoa a música do mundo. (…) Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos eleitos, palavra do solitário.”
Por circunstâncias que relevam da História, ao poeta José Craveirinha colou-se-lhe o epíteto de “voz do povo”. O que em si não constitui um dislate. Mas quem insiste na espécie de exercício taxinómico deixa obnubilado o seu verdadeiro génio. Quem o lê saberá que, sim, a sua voz se confunde com os anseios e as aspirações mais lídimas do povo moçambicano e que ele as soube interpretar e dar expressão. Mais do que isso, ele lutou por esses ideais, tendo sido preso por causa disso. O que pretendo hoje aqui afirmar é que Craveirinha, sobretudo, cabe também no segundo escol – “língua dos eleitos” -, e que, provavelmente, neste território, onde ele está por descobrir, reside a sua mais assombrosa inventiva poética.
Craveirinha é um grande poeta – toda a gente o diz. É a mais alta manifestação da poesia moçambicana. Creio não ser esse o pomo da discórdia. Adiro, sem reserva, a tal proclamação. As minhas reticências estão nos argumentos usados. A grande arte de Craveirinha está por descobrir. Os mais belos poemas de Craveirinha são aqueles que são menos lidos ou quase desconhecidos. Craveirinha é um poeta soberbo, sim, porque a sua arte fala de forma superior, como queria o poeta mexicano. Porque ele revela o mundo e cria um outro. A definição que acima citei é um amuleto importante para entrar no universo da poesia de José Craveirinha. Estou convencido de que um texto com citações de seus poemas menos exaltados daria um ensaio surpreendente. Vou ao longo desta breve homenagem socorrer-me de versos e de poemas menos marcados para iluminar esta minha conjectura. Começo com versos do poema “Primavera” do livro Karingana Ua Karingana.
José Craveirinha: “Estamos sentados. / E nefelibatas bebemos coca-cola/ nas públicas cadeiras da praça. // E/ sobre as envenenadas acácias/ andorinhas geometrizam o azul do céu/ e despercebidos passarinhos africanos/ contam nos verdes braços vegetais/ de um parque de cidade moçambicana/ onde jovens discutem as pernas de Brigitte Bardot/ e abúlicas mãos tamborilam/ no tampo da mesa fúteis dedos. // Mas um grupo de estivadores/ vem do cais vestindo/ serapilheiras/ e passa a três metros e meio/ das cómodas cadeiras da praça/ enquanto/ cocacolizados/ odes cantam nos ramos os bilo-bilana/ e na surdina das tímidas meias-palavras/ e subentendidos silêncios/ ansiosos todos esperamos/ indolentes as flores/ da nossa comum Primavera!”
Sublinho: “Estamos sentados. / E nefelibatas bebemos coca-cola/ nas públicas cadeiras da praça.” Aqui está a voz de um eleito, quem escreve e diz isto é um poeta sublime, é a voz da transcendência. Prossigo, em estratégia de citação de alguns versos, para dar boa nota do meu espanto. Poema “A minha geleira”: “Amarrada/ a tiras de trapos/ minha geleira a prestações/ é uma branca figura de retórica/ no centro da cozinha.” Isto é absolutamente extraordinário. Texto “Os privilegiados”: “Como único privilégio/ os poetas usufruem a própria morte/ para viverem ainda mais a sua pátria”. “Não sei se existe Deus. / Mas se Deus existe/ Ele está com toda a certeza/ a comer comigo esta farinha/ no mesmo prato”. Ou o “Poema do alfinete mágico”: “Com um inofensivo alfinete mágico/ nós os miseráveis sonhadores moçambicanos/ de cerrados maxilares invocamos os desejos/ e suspendemos os corações nas janelas/ donde a lua e o sol quando entram/ entram gradeados.” Notável este poema escrito com alfinete num papel higiénico. “O meu preço”: “Mas se é para me vender/ vendo-me mas vendo-me muito caro.// Ao preço incondicional/ de quanto me pode custar este poema.” “Lustro”: “Velha quizumba/ de olhos raiados de sangue/ serve-me os rins da angústia/ e a dentes de nojo/ carnívora rói-me a medula infracturável do sonho” (…) “E a vida/ a injúrias engolidas em seco/ tem o paladar da baba das hienas uivando/ enquanto no dia lúgubre de sol/ os jacarandás ao menos ainda choram flores/ mas de joelhos o medo/ puxa lustro à cidade”. Só um grande poeta escreve isto. Estes excertos são de poemas do livro Cela 1. Acrescento-lhes este poema, intitulado “Metamorfose”.
José Craveirinha: “Nas noites/ minha mão escultural/ é um pensamento despido. // Em dois anos/ meus dedos metamorfoses/ de Sofia Loren e Cláudia Cardinale/ voluptuosamente só traíram/ a minha ex-querida Ava Gardner/ outro nome que não digo/ e minha esposa Maria.”
Reitero o sublinhado: “Nas noites/ minha mão escultural/ é um pensamento despido.” Notável. Esta imagem, e a poesia é o reino das imagens, é surpreendentemente bela. Atente-se, ainda na obra Cela 1, ao poema “Reflexões no dia dos meus anos”: “Não expirado o prazo da minha ausência/ no meu bairro da Munhuana/ no preciso dia do meu aniversário/ lá com certeza o dia amanheceu/ todo assoado de nuvens.” Craveirinha é uma voz assombrosamente solitária e solidária. Um poeta lírico, sobretudo. Um poeta indignado. Um poeta revoltado. Os seus poemas são de ausência e de solidão, poemas de um lutador “inclandestino”, poemas de um “prestidigitador emérito”. Do livro Xigubo são reconhecidos os textos recitados nos saraus como “Grito Negro”, “Poema do futuro cidadão”, “Hino à minha terra”, “Manifesto”. Talvez seja o livro onde mais se aproxima à definição de “voz do povo”. Este é um livro de afirmação. Tem poemas longuíssimos, que não caberiam aqui, mas não resisto ao belíssimo “Mulata Margarida”.
José Craveirinha: “Eu tenho uma lírica poesia/ nos cinquenta escudos do meu ordenado/ que me dão quinze minutos de sinceridade/ na cama da mulata que abortou/ e pagou à parteira/ com o relógio suíço do marinheiro inglês.// Mulata Margarida/ da carreira do machimbombo treze/ de cabelo desfrisado com ferro e brilhantina/ fio de ouro com medalha de um misericordioso/ Deus Nosso Senhor do patrão/ e tu Joaquim chofer do táxi castanho/ sabem que eu sou bom freguês/ três dias apenas depois do fim do mês. / E corpo moreno de mulata Margarida/ é vestido de náilon que senhor da cantina pagou/ é quinhenta de chá/ arroz e molho de amendoim/ de Zeca Macubana que herdou olhos azuis/ das românticas noites/ de jazz/ nos bares da Rua Araújo/ enquanto a cinta elástica suspende/ o ovário descaído. // E eu sei poesia/ quando levo comigo a pureza/ da mulata Margarida/ na sua décima quinta blenorragia.”
Rui Knopfli contava-me que, nos tempos em que ambos faziam a “ronda crepuscular do cio”, pela baixa da antiga Lourenço Marques, quando o “aligeirar das roupas nas raparigas” acordava neles o “mesmo latejar das virilhas” nos “arrastados e emolientes fins da tarde”, ele (Knopfli) terminava a jornada em casa a trabalhar nos poemas e nos livros que haveria de publicar, enquanto (supunha, ele) o Craveirinha se demorava ainda no “olhar sorna de crocodilo agachado no canavial”. Isto para explicitar a arava obra publicada então por Craveirinha. Vale a pena ler o poema “Disparates seus no Índico”, do Rui Knopfli, nas Mangas Verdes com Sal. A propósito, Craveirinha tem estes versos notabilíssimos: “Minha mais amada por mim do que as frívolas/ raparigas de provocantes fémures desnudos”, escreve no poema “Maria. Salmo inteiro” (livro Maria).
Poeta arrebatado e arrebatador, dos largos e enlevados versos. Aliás, o poeta ficaria célebre por este tipo de poemas, muito afeitos à declamação, com refrões que faziam parte do nosso imaginário. Poesia socialmente empenhada, como queria o Rui Nogar, radicada na “dolorosa experiência quotidiana”. Poesia de indignação, disse-o, poesia de protesto, sempre, poesia que nos interpela. “Hino à minha terra”, “Quando o José pensa na América”, “Manifesto”, “Ao meu belo Pai ex-emigrante”, “Sia-Vuma” ou “Maria. Salmo inteiro” fazem parte dessa poesia descrita naquela frase iluminada de Nogar. Para além disso, alguns dos seus versos ficaram no imaginário popular, principalmente aqueles que subsumiam de poemas declaradamente instrumentais da causa libertária. Creio estar perto da verdade se asseverar que José Craveirinha foi mais citado do que lido. “Eu sou carvão” do poema “Grito Negro”, “Vim de qualquer parte/ de uma Nação que ainda não existe” do “Poema do futuro cidadão” ou “Quero ser tambor” são exemplos paradigmáticos de versos, estrofes e mesmo poemas ditos, por muita gente que não leu e não conhece verdadeiramente o poeta. Urge que o leiam e que descubram o assombroso poeta que ele é.
Não gosto apenas dos aforismos. Há poemas de grande fôlego e que são igualmente notabilíssimos. Cito pouquíssimos exemplos: “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi morar em Robben Island”, dito muitas vezes e bem pelo Tomás Vieira Mário, nos Msahos do Jardim Tunduro, nos melancólicos anos 80, ou as celebérrimas “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, que o Gulamo Khan exprimia com uma inclemente autenticidade: “Serão palmas induvidosas todas as palmas/ que palmeiam os discursos dos chefes?/ Não são aleivosos certos panegíricos excessivos de vivas?/ Auscultemos atentos os gritos vociferados nos comícios./ E nas repletas “bichas”? São ou não são bizarros/ os sigilosos sussurros?”
Ou “Mundial de Futebol no México (em directo)”: “Será boato meus beiços a babarem os verdejantes relvados mexicanos/ enquanto o povo gasta os dentes em subjectivas bolas de farinha?/ Ou no México são reais as roliças nádegas de um Diego Maradona/ o presunto mais caro do mais recente futebolismo internacional?” (…) “Mas porquê esta fortuita indigestão de futebol de dólares/ saboreados nos olhos via satélite e nas enfermarias/ o drama das ampolas de penicilina que não temos?// Quem autorizou o hirsuto “stopper” da semântica em riste/ a agredir impunemente o triste indefeso Luís de Camões?”
Veja-se-lhe a mordacidade de ambos. A audácia da língua. A zombaria. Craveirinha foi o mestre da ironia. Sem complacência. Críptico, muitas vezes. Hermético, algumas. Soberano, sempre. Craveirinha foi um prodigioso criador de imagens. Em 1997, o poeta incumbiu-me da grata e irrecusável tarefa de lhe apresentar aquando do lançamento de Babalaze das Hienas. Livro de denúncia, livro de indignação, outro livro com versos estelares, livro contra a guerra: “Eméritos felídeos à solta/ cometem sumárias obstetrícias/ variando cesarianas/ à facada.” Este livro é de uma tremenda virulência, como foi violenta a guerra que serve como seu libelo. “Uma voz virilmente indignada”, chamou-a Eugénio Lisboa.
Eugénio Lisboa: “Há em Craveirinha – é mesmo esta uma sua característica nuclear – este gosto, este gozo sensual, esta posse, direi mesmo: esta alucinação, da palavra. Craveirinha morde a polpa das palavras, tacteia-as amorosamente, fá-las vibrar no poema, encoleriza-as… Craveirinha – por isso é poeta – faz amor com as palavras. “
José Craveirinha, leiam-no atentamente, é um grande cultor da língua, soberbo na arte poética, dono de um pungente discurso social, inclemente contra a dolorosa miséria do quotidiano, escritor do passado histórico ignóbil, revela a realidade duríssima dos espoliados do seu destino, o lusco-fusco da Rua Araújo, denuncia as metralhadoras de Sharpeville, ou as tâmaras azedas de Beirute, fala nostálgico da Vila Borghesi, ou cultiva uma longa, interminável e fissurante elegia à Maria.
Por último, queria dizer: vejo exacerbada, nas notas biográficas ou nas apresentações que se fazem, depois de 6 de Fevereiro de 2003 – o pretexto próximo desta minha canhestra evocação, agora que passam 15 anos sobre a sua morte -, sobretudo, a sua condição de herói mais do que a sua condição de poeta. Nunca percebi esta estratégia de afirmação. Na placa da sua rua, não se fala do poeta, alude-se o herói. Nas notas de contracapa das edições recentes, enuncia-se: “Os seus restos mortais repousam na cripta da Praça dos Heróis, em Maputo, Capital de Moçambique”. Para além do mau gosto desta formulação funéria, esta forma de o apresentar contribui para o anátema e para o desconhecimento.
Por mais de 15 anos, convivi de perto com José Craveirinha. Frequentei a sua casa da Mafalala. Ouvi muitos episódios da sua longa e inspiradora vida. Li poemas inéditos, falou-me de personagens históricas, falou-me das pessoas do seu quotidiano, muitas delas que lhe batiam à porta para contar os seus infortúnios, histórias que se transformaram em poemas muitas delas, viajei com ele, fomos a Lisboa, estivemos juntos em Lisboa quando eu lá vivia, fomos, com o Rui Nogar e o Rui Knopfli, a Sevilha, estivemos em Londres com a Noémia de Sousa, fui companheiro e fui, de certo modo, legatário da sua geração. Deixou-me conhecer os seus mitos privados, as suas assombrações, as suas idiossincrasias. A sua solidão habitada. Dele aprendi o exemplo, a probidade. Revejo-me, aliás, nesta geração e não tenho pejo em afirmá-lo.
Sou leitor e cultor de José Craveirinha – creio que todo o poeta que se preze em Moçambique deveria sê-lo -, contudo não estou convencido de que a sua obra, a sua grande obra, embora seja reeditada e seja revelada a inédita, tenha merecido suficiente atenção e o trânsito devidos pela sua qualidade, importância e relevância. Muitos são os que dizem enfaticamente da sua importância, mas sabem pouco ou nada dela, não a leram, não a estudaram. Por estes dias, ao relê-lo pensava nesta espécie de ironia que cobre como um manto espesso a sua obra: ser-se imensamente conhecido e, provavelmente, reconhecido, pela pátria, mas ser injustamente ignorado. Porque o vejo proclamado, mas pouco ou nada lido. Dir-me-ão: a pátria não lê ninguém. Pobre pátria, não lê nem os seus próprios heróis!
Muito haveria a dizer sobre José Craveirinha, muito por evocar, invocar, convocar ou mesmo celebrar. O José Craveirinha cumpriu nobilissimamente o seu destino de vate. Cumpre-nos agora a nós fazer o nosso papel de leitores e, sobretudo, de o colocar no devido lugar de co-fundador e o seu papel na formação e afirmação da literatura e cultura moçambicanas, ultrapassando esta bizarria de o deixar prisioneiro à condição de herói. Não seria caso único no mundo de poetas a merecerem a honra de panteão. Mas lá onde estes outros alcançam essa condição são lidos e as suas obras circulam entre os seus concidadãos. Ora, não ler um poeta, mesmo que colocado numa cripta, parece mais defenestrá-lo do que celebrá-lo. No poema “A Minha Complacência”, diz o poeta: “Podeis homicidar-me com vossos vitupérios. / Meu inato orgulho vai quase à timidez insociável./ O que mais amo não me obceca./ Sou um cobarde do servilismo”. Este poema extraordinário termina com um verso ainda mais notável. “Traição é saber escrever e não escrever nada.” Estavam avisados os obnóxios, as quizumbas que o rondavam. Termino, plagiando-o: traição é sabermos ler e não lemos José Craveirinha.