“As grandes qualidades do homem vêem-se quando está sozinho. Mas também os grandes perigos. O isolamento, no entanto, é essencial.”
Gonçalo M. Tavares
É hora de te escrever, meu amor. Dobro as mãos, sujas de solidão e alongadas de frieza, sobre o peito deste laptop esquartelado e ajeito palavras para te escrever. Os teclados parecem que escondem as letras aos meus dedos e os números são os únicos que saltitam e recordam-me que faz muito tempo que não estás aqui. Escrevo e paro para vasculhar uma letra que não vejo. Do nada o “a” escondeu-se. Parece que sumiu neste conjunto de letras solteiras e presas em pequenos quadrados pretos; levanto-me, estico a coluna, deslizo a cortina e todos objectos molham-se pelo sol que se adentra pela janela. Uma rede com teias de aranha, filtra a gordura do sol antes de entrar. É um sol tenso e preso num formato circular que só cabe no seu brilho. Volto ao teclado e o “a” continua fugitivo. Faço um corta-mato e escrevo “mor”. Sim, escrevo “mor” porque o “a” parece que se afundou no estômago desse computador.
Escrevo-te neste dia que a cidade acordou com o rosto amarotado de nuvens cinzentas e com cicatrizes de chuva nos pés. Escrevo-te com as mesmas mãos que conhecem a gramática vital do teu corpo; as mesmas mãos que te carregavam nas escadas, que te colavam o corpo de cócegas, as mesmas que trocavam a lâmpada enquanto tu enchias-te de medo do escuro nos lençóis, as mesmas que te trancavam os atacadores das sandálias quando tinhas receio de esgotar a beleza inclinando, as mesmas que se uniam, formando uma pá escavadora, e carregavam-te do sofá até ao quarto; e tu toda diluída no sono.
Escrevo-te apressado pelo desejo de querer escrever-te sem nenhuma pressa. Pressiono as letras, no teclado, e do nada elas surgem uma a uma ordenadas por um sentido que não percebo. As letras surgem neste pequeno ecrã com muita rapidez; parecem erva daninha em tempo de chuva. Mas, estas palavras, estas letras não cheiram o suor da chuva e nem a cor do sol que derrete todos objectos aqui na sala. Estas palavras cheiram as pegadas de distância que hoje nos separam. Escrevo como um atleta, porque controlo o tempo no canto do ecrã e vejo a energia que me ainda resta para escrever e pensar em ti.
Esta sala, sem ti, virou um espaço amontoado de vazio e com pilares de silêncio nos cantos. A única coisa que se ouve, neste momento, é o ruído que o teclado provoca e a respiração asmática do meu peito nu. Não há sinal de vida sem ti nesta sala que deixou de ser um local de estar. O calendário pendurado pelo pescoço dum ano qualquer no prego da parede conta os poucos dias que me restam. E porque tenho poucos dias escrevo-te, “mor”. Continuo escrevendo “mor” porque o “a” ainda se esconde dos meus dedos. Maldito “a” que me obriga a diminuir o nome completo da paixão amadurecida. A nossa fotografia colada nas costas da porta do nosso quarto parece que acompanha o ritmo do relógio sem pilha: parou. O relógio precisa de pilha para continuar a sua marcha circular e eu? Eu preciso, tal qual a nossa fotografia, de uma mínima presença tua para voltar a vida e habitar o meu lugar em mim.
O Atlas, o nosso gato de pelos brancos, decidiu desaparecer. Também já não aguentava viver com os pelos sujos de solidão nesta casa. Lavava-se os pelos com a língua, mas a solidão corria atrás dele e por isso decidiu, pela janela, tomar novos caminhos. Era a única companhia que fazia sentido nesta casa. Era a única criatura que cruzava o corredor comigo, que sabia vir acordar-me com mios sempre que passasse a hora de despertar. Agora que decidiu arrumar os mios na sua barba e desaparecer fiquei a sós. Pela manhã a única coisa que me desperta são os meus próprios roncos e vezes infinitas esqueci-me dormindo. Cruzo o corredor com a minha própria sombra colada a parede, vestida de um casaco preto e sem rosto fácil de identificar.
Escrevo-te porque ainda tenho a sensação de sentir o que penso e o puro engano de que ainda posso ordenar alguma coisa. Se nem a minha própria vida não consigo ordenar, como posso organizar os meus pensamentos? O azulejo da cozinha só tem as minhas pegadas, a torneira, que deixou de se fechar, fala-me gotas no escuro, pinga e compete com as minhas lágrimas. Eu também pingo lágrimas como a torneira da cozinha, porque já não sei fechar os olhos sem sentir o peso da sua imagem.
E amo-te como quem entorna palavras com sílabas de beijos numa outra boca. É isso que me faz escrever-te agora. Neste instante. Amo-te aqui neste poço de solidão onde me encontro; onde a única coisa que me tira, como água, é o vento que sopra da janela. Paro de escrever. Deito as mãos sobre o teclado e as letras murcham, desordenam-se e começam a correr na pista branca do ecrã. Vou continuar a escrever. Suo o corpo inteiro. Levanto-me e descasco o suor na pele com a toalha que ainda conserva gotas do teu cheiro. Recordo-me do último banho que aqui fizeste. O último banho que te limpou o corpo e ensaboou, a mim, de solidão. Saíste descalça da casa de banho, picando o chão com as pontas dos pés e dedilhando gotículas sobre o chão todo com os teus cabelos. Cantavas uma música misturada com a escova de dentes na boca. A toalha circulando a sua cabeça era turbante daqueles árabes comerciantes dos filmes da Hollywood. Saltitavas como um coelho e molhavas o frio que se tinha deitado ao chão. Eu, entulhado no sofá, metia os olhos no ecrã da televisão e tu vieste despertar-me a atenção tocando-me o pescoço com a mão dentro duma luva de água. Saltei do sofá. E os teus abraços abertos foram o meu lugar de sossego.
Amo-te neste pedaço de dizer alguma coisa que ainda tenho. Amo-te com toda a força que a tua presença roubou-me; amo-te na esperança de não poder mais te amar. “Mor” ainda não vejo o “a” no teclado e ainda não vejo local certo para tê-lo. Talvez tenha de pegar numa lâmina, recortar todos os “as” das revistas e colá-los em todas frases onde eles fazem falta.
Sou capaz de te escrever sete anos sem parar para poder ter-te de volta. Jacó conseguiu a Raquel trabalhando durante sete anos, mais sete para Labão. E eu sou capaz de te escrever sete anos sem parar. Vou terminar por aqui, minha querida. Devorei todas as palavras possíveis que ainda tinha. Fosse eu Davi armava-me de todas as pedras que tenho debaixo desta solidão e matava o Golias do tédio que me espreita a cada gesto. E nem sou Noé para arrumar todas as trouxas de vazio numa arca e partir com elas para onde valem ouro ou muito dinheiro.
Em criança sentava-me na cadeira mais grande de casa e gotejava os pés para tocar o chão. Hoje, sento-me na cadeira mais grande, encolho os pés na caixa do peito, e os enrolo com a camisa para não tocar a falta e solidão que vigiam o soalho.
Amo-te na tua presença disfarçada de falta; amo-te nesta carta que não te chegará porque não sei onde estás, mas sei que metade da tua carne apanha sol nesta missiva. E tu sabes que esta sala virou-me as costas desde que partiste. Vivo na sombra que as costas destas paredes fazem-me. Vou juntar as mãos e terminar este texto. Acorrentar os dedos, unir as unhas e colar as caras das mãos para ter a certeza que as mãos cuspiram todas as palavras que tinham. Vou sentar-me nas escadas farejando nos degraus a cor do último passo que deste quando saíste. E os objectos todos desta sala, molhados pelo sol, sangrando sombras no chão, ouvirão o concerto da solidão guiado.