Quarta-feira, 29 de Novembro. Vinte e três crianças moçambicanas embarcam numa viagem que teve como ponto de partida a zona da KaTembe, na cidade de Maputo, tendo como destino a província de KwaZulo-Natal, na vizinha África do Sul. As primeiras informações postas a circular nas redes sociais referiam-se a tráfico de menores, mas o apuramento que fizemos no terreno sugere tratar-se de uma viagem consentida pelos pais e/ou familiares dos menores, que inclusivamente pagaram o serviço de transporte aos chamados “delivers”, os transportadores que fazem a entrega de encomendas ao domicílio, tanto em Moçambique como na África do Sul.
“O motorista tinha de vir levar-me em casa, mas ele não pôde, não sei porquê”, introduz um dos rapazes, de 15 anos, que saía de KaTembe para Durban, cidade mais importante de KwaZulo-Natal onde vive a mãe. Acabou saindo para a paragem, pois sabe que é o ponto de partida dos transportes para África do Sul. “Quando cheguei à ponte da KaTembe, já havia outras pessoas”. Refere-se a crianças prestes a viajar, algumas acompanhadas por adultos e tantas outras não.
Pedro, como identificámos o nosso entrevistado para ocultar a sua real identidade, descreve a viagem da KaTembe até às proximidades da fronteira que separa Moçambique e África do Sul. “Durante a viagem, encontrámos outras crianças. O encontro era nas paragens, depois encontrámos um carro de caixa aberta, dupla cabine, que levou as nossas pastas. Tinha também um outro carro de marca Toyota Noah, de onde saíram outras crianças”.
O pequeno rapaz, esperto e inteligente, tem a memória viva do trajecto. “Chegámos a um ponto onde todo o mundo que não tinha passaporte tinha que descer. Os que tinham passaporte podiam passar da fronteira. Nós entrámos no mato. Durante a caminhada, encontrámos uma casa abandonada e ficámos alguns minutos. Depois daí, caminhámos e atravessámos as redes”.
Estava feita a travessia ilegal. “Sei que havia crianças muito pequenas. Quem as ajudou a atravessar a rede?”, Questionámos ao Paulo. “Quando chegámos àquela casa, na mata, encontrámos uns senhores que nos guiavam. Mostravam-nos como poderíamos passar”, respondeu.
Já no território sul-africano, apanharam duas carrinhas de caixa aberta, onde estavam também alguns adultos, que por sinal viajavam sem passaportes. Foram deixados em frente a uma escola e permaneceram com dois jovens à espera que chegasse o mini-bus que os levou da KaTembe até às proximidades da fronteira. No entanto, a espera foi algo longa, até que alguns sul-africanos desconfiaram tratar-se de crianças traficadas, avaliando pelo número, idades dos menores e presença dos dois jovens no grupo.
“Apareceram uns tios que estavam naquela escola. Aqueles dois moços descobriram que estavam a ser desconfiados e fugiram. Aqueles tios desconfiaram que fomos roubados e chamaram a polícia”, descreve outro rapaz, de 13 anos, que saiu do bairro de Chamanculo, na cidade de Maputo, onde vive com o pai e os irmãos.
A conversa com os petizes foi no Posto Policial da Ponta D’Ouro, última sexta-feira, onde decorria o processo de entrega dos menores aos familiares.
A Polícia teve que contar com a colaboração do motorista do mini-bus e de outro jovem que permanecem detidos. Eles falam de uma relação de confiança, através da qual moçambicanos que estão na África do Sul a viver ou a trabalho solicitam-nos para transportar os filhos para irem passar férias, sobretudo neste período do ano. “A confiança dos pais é porque nós fazemos o trabalho de transporte de mercadoria e entrega ao domicílio. Então, conversaram connosco para levarmos as crianças e dissemos que há um sítio por onde podemos passar com elas até ao destino”, contou.
Tráfico ou migração ilegal? Parentes das crianças esclarecem as dúvidas
Num dos corredores do Posto Policial da Ponta D’Ouro, desenrola-se a conversa entre a nossa equipa de reportagem e a irmã do menino de 13 anos que o citamos na página anterior. Ela é que levou o irmãozinho de Chamanculo, onde vivem, para KaTembe, onde pegou o transporte para embarcar naquela viagem ilegal ao encontro da mãe, que vive na África do Sul. “O erro foi de não termos dado nenhum papel a dizer que consentíamos a viagem de Moçambique para África do Sul”, reconhece e sublinha que não era a primeira vez.
O mesmo ouvimos da mãe do menino de 15 anos que também o citamos nesta reportagem. Chama-se Ofélia e está a viver em Durban. “Não é a primeira vez que ele fazia esta viagem, pois não?”, questionámos em chamada telefónica. “Não”, respondeu e desenvolveu: “A primeira vez veio com a minha irmã”. Quando procurávamos saber o valor que ia pagar pelo serviço, a chamada caiu, por, dificuldades da rede. Todavia, soubemos que o valor ronda em torno de 400 rands, mais ou menos 1 600 meticais por criança. Esse valor, geralmente, é pago à chegada ao destino.
Em termos concretos, não há indícios nem provas fortes que sustentem a conclusão de estarmos em sede de tráfico, fazendo fé aos depoimentos das vítimas, dos familiares e do motorista, todavia, o porta-voz do comando da Polícia na província de Maputo, Fernando Manhiça, falou em conferência de imprensa, na sexta-feira, e disse tratar-se de tráfico, para além de ter dado informações imprecisas sobre o caso. “A Polícia da República de Moçambique, a nível da província de Maputo, neutralizou dois indivíduos que traziam uma viatura pesada e, do trabalho feito, foi constatado que estavam lá 22 indivíduos, desses, 15 crianças e outros adultos, com idade compreendidas entre cinco e 32 anos de idade”, avançou Manhiça.
Referindo-se aos dois indivíduos detidos, o oficial de comunicação da polícia precisou que “esses indivíduos estavam a ser traficados para África do Sul, com o intuito que até agora não se sabe o que iam realizar. Havia também raparigas, o que nos deixou numa situação de procurarmos perceber cada vez mais onde é que iam aquelas menores”.
No entanto, Ricardo Moresse, advogado e presidente da Comissão dos Direitos Humanos na Ordem dos Advogados de Moçambique, juntamente com o advogado Rodrigo Rocha, estiveram no terreno a fazer o apuramento factual do caso e não encontram, por enquanto, indícios de se tratar de tráfico, mas sim migração ilegal.
Seja como for, não esconderam a indignação pela facilidade com que esses casos acontecem e pela exposição ao risco a que estão sujeitas muitas crianças moçambicanas.