No seu livro, as origens do totalitarismo, escreveu a filósofa Hannah Arendt, a tortura é mais agoniante quando ainda reside na vítima a esperança de ela escapar. Ou seja, enquanto sobrar na vítima a ideia de libertar-se, o medo de ela não resistir à dor física torna-se maior, agudizando, assim, a agonia. Por isso, como explicou Frantz Fanon, no livro Os condenados da terra, o torturador, antes de tudo, tinha de persuadir a vítima que lhe daria a liberdade, se cooperasse, sem essa condição, o torturado se entregava resignadamente à morte sem revelar o segredo. Deste modo, onde há esperança, as visitas da ansiedade são frequentes e, quando a esperança nasce duma promessa dada, a ilusão toma o controlo das decisões.
É em torno do último cenário “a ilusão” que o conto notícias do salário nos fala dos males de esperar pelo prometido. Baltazar é um personagem “vítima” da esperança gerada pela promessa de aumento do salário no seu sector laboral. Tal promessa fá-lo contrair dívidas para realização da festa de aniversário dos seus filhos gémeos sob o apoio da sua esposa Malmequer, tomando assim o aumento salarial como uma coisa garantida e o futuro como se fosse um tempo previsível e inabalável.
Entretanto, a infalibilidade e a certeza nunca foram propriedades intrínsecas do futuro. O futuro sempre foi duma natureza volátil e imprecisa, ainda que permita previsões que se devam entender como probabilidades, mas jamais certezas. A desilusão sofrida pelo casal Baltazar e Malmequer corrobora nesse sentido como uma prova loquaz. O aumento salarial esperado no final do mês não chegou a acontecer. E porque a esperança tem o poder de erguer um castelo de certezas na nossa mente, a sua ruína, amiúde, não é súbita e rápida perante o impacto duma realidade contraproducente. Muitas vezes, o esperançado leva algum tempo para cair na realidade. Foi preciso mais um mês para Baltazar finalmente conformar-se da falta do tão almejado aumento.
Com a falsa promessa do aumento salarial, o casal experimentou três estados de espírito engendrados pela esperança, tal como esquematizou Arthur Schopenhauer: primeiro o desejo, de seguida o tédio e, por fim, a angústia.
“O mês findou, a notícia de aumento não chegou a ser facto. Para Malmequer, foi como o fim do mundo. Ficou uma semana sem falar e com um olhar de quem estava (a) pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. (Lineu, 2023: 53).
A esse descalabro, o casal chegou devido à cega esperança que o levou a tomar o futuro como garantido. Depois dessa experiência negativa, era suposto que o casal fosse mais cauteloso com os tentáculos da esperança. Porém, a doçura intensa da promessa muitas vezes faz da nossa memória curta. A empresa onde Baltazar é trabalhador voltou a prometer um aumento salarial por duas vezes, e nenhuma dessas vezes tal promessa se cumpriu.
Sendo assim, quando há uma falha contínua de promessas feitas, o que naturalmente acontece no coração de quem é prometido é uma conversão degenerativa da esperança em cepticismo. Do espírito ingénuo, Baltazar passa a guiar-se pelo espírito de dúvida um tanto radical na medida em que chega a influenciar não só o seu modus vivendi, mas as suas relações interpessoais.
“Ao ensinar (os) filhos, agia como se tivesse mais dúvidas do que os meninos. Quando eles falavam dos seus sonhos, aconselhava-os a se deixarem ser guiados pela vida, aí não se decepcionariam com nada. No trabalho, tornou-se mais escrupuloso, não pelo zelo, (mas) para ter a certeza de não ter surpresas indesejáveis. Várias vezes, acordou à noite, e deixou a esposa preocupada, por achar não ter dado conta de algum ofício” (LINEU, 2023: 55-56).
Desse excerto, pode-se presumir que o estado de espírito do Baltazar se mostrava menos sadio. Um cepticismo que nos proíbe de sonhar e tentar, obrigando-nos a estar num estado de alerta e desconfiança do mundo afigura-se um mal para realização da nossa existência. E, de facto, não há uma inovação substancial ou um acto extraordinário que se possa esperar dum espírito demasiado céptico.
Mediante o dilema entre guiar-se pela esperança ante um futuro que se mostra impenetrável e guiar-se pelo cepticismo num mundo que exige atitudes firmes, é possível uma sobressaída que não tenda nem para um polo nem para outro. Tal sobressaída configura-se o espírito de incerteza. Diferente da convicção que cega advinda da esperança e da desconfiança que tolhe os passos gerada pelo cepticismo, a incerteza é um estado livre de optimismo e pessimismo. A incerteza não significa obviamente certeza nem desconfiança, mas reunião de ambas possibilidades. Ou seja, a incerteza significa assumir na mesma proporção as hipóteses de que as coisas podem dar errado, assim como podem dar certo, e mesmo assim seguir adiante. Uma pessoa guiada por incerteza difere-se duma pessoa indecisa ou hesitante e, da mesma forma, se difere duma pessoa convicta. É uma pessoa sem esperança nem desespero. Parafraseando, uma pessoa de incerteza trata-se de uma pessoa sem certeza, mas que não se desespera por conta disso. Nisso, reside a sua sabedoria tal como declarou o filósofo Immanuel Kant: uma alma inteligente prova-se pelo número de incertezas que consegue suportar.
Apesar de o Baltazar ter adoptado o cepticismo exacerbado, em algum momento, passou a gozar duma relativa tranquilidade quando já não tinha esperança do aumento salarial, ajeitando-se desse modo com o que tinha. E foi quando menos esperava que se lhe deu uma feliz surpresa: o aumento salarial, finalmente, se tornou um facto. A família regozijou-se, desta vez, com algo concreto. Algo presente e não vindouro. Entretanto, porque na vida, nada dura para sempre, a alegria do Baltazar foi deveras fugaz, quando soube da esposa que o aumento do salário de nada valeu, pois, o custo de vida também havia paralelamente aumentado.
Mas o que dizer, definitivamente, da lição deste conto? Talvez que tudo na vida, muda num sopro. Nada está fadado a eternizar-se. E se nada se eterniza e tudo se altera constantemente, a melhor forma de mover-se pelo mundo é abster-se tanto da esperança e do cepticismo exagerados e aprender a conviver com a incerteza, pois ela não ilude nem aprisiona, torna-nos livres e abertos para lidar com qualquer situação que vier.
Hélder Tsemba
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