Nesta zona do Chipepfane teve lugar um evento que muito teve de insólito pela sua natureza e por ter dado tanto que falar que até envolveu a Polícia, o Exército e a Pide-DGS. Fora aquela a primeira vez que em todo o subúrbio ocorria semelhante fenómeno. O caso passou-se assim:
Na Avenida Craveiro Lopes havia uma paragem de autocarros que era notória pelo seu movimento. Situava-se precisamente no início da rotunda que conduzia ao Aeroporto Gago Coutinho. Era o ponto de cruzamento das populações, a caminho do bazar do Adelino, ou do bairro de Mavalane, e – pois então?! – de clientes que vinham à procura de novas sensações nos compondes de prostitutas, crescidos nas proximidades dos escritórios do que se chamava “Urbanização”. Aquele homem destacara-se daquela multidão, proveniente donde não se sabe, carregado de um cesto de verga, no qual transportava uma mercadoria devidamente camuflada. Postou-se na paragem, tal como outros passageiros, para aguardar pela chegada do autocarro. A hora era das dezassete e trinta, e o movimento de gente nos passeios crescia; ora eram estivadores que deveriam pegar a faina às dezoito, trabalhadores das redondezas, vendedeiras do mercado e “mulheres da vida” madrugadoras a sonhar com ganhos avultados nos cabarés da Rua Araújo. O autocarro finalmente chegou. Um a um, os passageiros foram embarcando ordeiramente. O homem do cesto fez o mesmo, sempre a segurar com visíveis cuidados a carga que lhe pesava nas mãos. Ocupou o banco traseiro e aí permaneceu embora com evidente nervosismo. Terminado o embarque, o cobrador deu sinal para se retomar a viagem.
Mas eis senão quando, precisamente na paragem defronte à loja do Chilepfane, um galo resolveu exibir as suas habilidades canoras com um sonoro có-có-ró-côôô!… que emergiu do cesto daquele passageiro, para espanto e gáudio dos passageiros. A tripulação do machimbombo não quis crer que aquele canto fora emitido do interior do veículo. O cobrador deu sinal de paragem imediata: havia clandestinos a bordo, e um deles era um galo! Nada lhe custou identificar a proveniência do problema, visto que o galináceo repetiu o canto, desta vez mais sonoro e prolongado. Ao cobrador não restava outra alternativa senão convidar aquele passageiro a abandonar o autocarro. Ao que este fez ouvidos de mercador.
“Será que você não sabe que é proibido embarcar animais nos autocarros? Faça o favor de sair imediatamente”.
Silêncio e imobilidade foi a resposta do interpelado. Então teve lugar aquele jogo de empurrões, uma escaramuça movimentada entre ambos; o passageiro a reivindicar direitos de fazer-se transportar naquele autocarro na companhia dos seus animais que, depois apurou-se, eram cinco frangos, um coelho e um pato. Como a refrega atingissse proporções que o cobrador era incapaz de superar, o motorista abandonou o volante e intrometeu-se na luta como uma reserva de força. A batalha ganhou dimensões por ninguém imaginadas. Já no passeio, o passageiro largou a encomenda, para disponibilizar as mãos à luta. Derrubou o cobrador no chão, e esmurrou-o com violência ao ponto deste deixar verter o saco das moedas das cobranças que até ali fizera. Foi outro pandemónio. Passageiros que iam embarcar esqueceram-se da honestidade e envolverem-se num tumulto em que cada um queria apanhar o maior número possível de moedas. Uma barafunda!
Os passageiros já a bordo estavam a ficar agastados com o atraso. Os estivadores, que eram a maioria, levantaram os seus protestos. “Eh, estamos a atrasar. Vamos embora. Temos que pegar no serviço às dezoito, senão vamos arranjar problemas com os chefes. Vamos embora!”
Dito e feito: um homem corpulento destacou-se de um banco do meio e, com modos de salvador, ocupou o lugar do motorista. Daí a retomar a marcha ao veículo foi questão de um minuto. Quando o verdadeiro motorista se apercebeu de que o autocarro já levava a dianteira gritou ordens em plenos pulmões, numa tentativa de fazer o machimbombo parar. Este avançara mais de duzentos metros na estrada, e assim prosseguiu a viagem para deixar a tripulação na maior das impotências e do desespero.
A bordo ninguém continha a alegria.
“…ó senhor motorista, pisa a Maria!… carrega masé no acelerador!…”.
Muitos aplaudiam porque fariam aquela viagem sem custos e sem os aborrecimentos causados pela tripulação. O improvisado motorista obedecia com rigor às regras de trânsito, assim como parava para embarcar e desembarcar passageiros como se, alguma vez, tivesse cumprido aquela missão.
O final do frete no terminal da Praça 7 de Março foi marcado por uma ovação e muitas gargalhadas dos passageiros que, pela primeira vez, usufruíram do direito de uma viagem livre de gastos, mas cheia de humor e de estórias para contar.
O que sucedeu depois à tripulação daquele autocarro e do passageiro turbulento não reza a História. Das aves sim, essas foram apropriadas por quem teve forças para as arrebatar das mãos dos que as disputavam.
Esta história correu de boca em boca em todo o subúrbio: a dum machimbombo sequestrado que deixou em terra os tripulantes, a favor de um grupo de homens corajosos que, por causa dos abusos daqueles, resolveu fazer justiça e tomar em mãos a missão de os transportar seguros aos seus destinos. Na manhã seguinte os jornais anunciaram que “…cerca das dezassete e trinta horas de ontem um grupo de malfeitores sequestrou uma unidade móvel dos Serviços Municipalizados de Viação, mais precisamente um ónibus da carreira número 15, quando este se dirigia à cidade, no seu trajecto do terminal do Aeroporto Gago Coutinho e a baixa da cidade . O veículo foi mais tarde recuperado estacionado na Praça 7 de Março sem estragos aparentes. Agentes da Polícia Judiciária, da Pide-DGS e da Polícia Militar encontram-se a recolher pistas que conduzam à detenção dos autores deste audacioso acto…”.
*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.