Ainda estou para perceber como é que os jovens daquele tempo começavam a namorar tão cedo. Namorar é uma maneira de dizer porque bastava uma menina sorrir para um rapaz para este começar logo a dizer “…eh!… vocês sabem duma coisa? Eu namoro com a fulana de tal…”; ou então começava a propagar o boato de que assim sucedia, embora a moça fosse a última a saber que já namorava. O caso que vou contar é dum sujeitinho dado a galã, de nome Mateus, que dizia “namorar” uma moça chamada Fina. Até há algum tempo atrás eram vizinhos no Bairro Indígena, mas os pais dela divorciaram-se e a mãe mudou-se para a Bela Rosa. Aí as dificuldades provocadas pela separação começaram a apertar. Para se aguentarem, a mãe da Fina resolveu vender alguns produtos mesmo em frente à loja do Chilepfane. A Fina ajudava nas vendas durante as férias e aos fins-de-semana. Mas eis que chega aos ouvidos do Mateus que a Fina tinha compromissos com outro rapaz. Cheio de fúria, não fez mais nada senão recrutar uns valentes da sua malta. Tomaram caminho em direcção ao Chilepfane para dar uma lição ao usurpador dos seus amores. Isto foi num fim-de-semana. Quando chegaram à varanda da loja encontraram a Fina a vender peixe frito, mais propriamente magumba com piri-piri, a chalacear com um rapaz mais ou menos da idade dela. “…já apanhámos o tipo… este é que deve ser o tal novo namorado da Fina…”, disse o Mateus aos cúmplices. Eram ao todo uns seis, todos fortalhaços e com caras mal lavadas, de quem veio mesmo para fazer zaragata. A discussão foi assim:
“Olá , Fina: Quem é este gajo aqui?”, perguntou o “namorado” traído.
“ Qual gajo?”, quis a Fina saber, surpreendida pela rispidez da pergunta.
“ Não te faças de surda. Eu bem sei que desde que saíste do nosso bairro andas a namorar com este tipo aqui”.
“ E se eu ando a namorar com ele o que é que tu tens a ver com isso?”, fogo na resposta da Fina.
Um ooohhh! de gozo explodiu da pequena multidão que se aglomerava à volta dos desavindos.
“ E se eu for namorada dele, porque é que isso te dói? Eu não sabia que era tua namorada! Mesmo que soubesse não tens direito de me pedir contas. Deixa-me em paz”, disse a Fina melindrada com o embaraço. Se a mãe vier a saber dos seus namoricos devolve-a logo para Gaza, donde ambas provêm. E escola é esquecer. A mãe bem avisou: “…se me fazes trafulhices por aqui, devolvo-te para a casa do teu avô…”. Daqui concluo que a memória tem fraca memória de si própria: a mãe da Fina divorciou-se porque foi apanhada na cama em flagrante pelo marido, com um vizinho de lado de nome Ruben.
O moço acusado de namorar com a Fina ficou especado de estupefação com o rumo da discussão. Nada tinha a ver com esses assuntos de namoros, nem sequer intenção de pretender a Fina, que até nem era uma beleza de rapariga, com a cara toda cheia de sardas e, ainda por cima, tinha uns dentes grandes e umas gengivas muito pretas por causa da mulala.
O Mateus não foi capaz, ou não quis compreender a inocência dos acusados e disse a um dos companheiros:
“Samson, segura a minha camisa, quero dar uma lição a este gajo por me roubar a namorada”. E despiu a camisa, já meio despedaçada pelo tempo e pelas lavagens frequentes. O amigo segurou a tal camisa já em vias da reforma. Os contendores puseram-se em termos de luta. O Mateus só dizia: “… eu vou-te matar… eu vou-te matar…”, mas mantinha uma distância de segurança, fora do alcance dos punhos do outro. Deram umas voltas assim, para a direita e para a esquerda, para a frente e para trás, sem se tocarem.
Mal sabiam que alguém fora avisar o Chilepfane: “… anda lá fora um grupinho de rapazes a abusar da Fina, a filha da comadre Virgínea… sim, essa que vende peixe aqui na varanda da loja…”. Aquele não se fez de demoras. Tirou o cavalo-marinho de debaixo do balcão e dirigiu-se ao local da confrontação. À socapa misturou-se no ajuntamento que já engrossara; escutou parte da conversa e os preparativos dos adversários para o combate. Identificou os intrusos, porque conhecia toda a gente da zona. E então o cavalo-marinho “entrou de serviço”. Aquilo não foi bater. O Chilepfane era de facto um justiceiro. Batia como se matasse cobras. A gritaria era tal que até os motoristas dos carros que circulavam na estrada pararam e outros fizeram marcha-atrás para ver a causa do alarido. Os membros do grupo invasor estavam em maus lençóis. Foram imobilizados pelos residentes. Depois de demoradamente, competentemente e suficientemente sovados foram obrigados a pedir perdão pelas inconveniências causadas à comunidade e deixar a promessa de que nunca, mas nunca mesmo, atravessar estradas para vir provocar inocentes nas suas próprias residências e provocar escaramuças noutros bairros. Na circunstância esqueceram-se da camisa do seu representante. O valentão ciumento e apaixonado teve de arranjar uma desculpa a todos os títulos mirabolante para convencer a mãe de que a mesma fora-lhe roubada num assalto ali na Mafalala. Aquela só disse: “não tenho dinheiro para te comprar outra camisa… aguenta-te como puderes”. E assim o assunto de namorados e seus ciúmes ficou enterrado. Até hoje, o Mateus e os do seu grupo fingem que nunca ouviram falar dum lugar chamado bairro Chilepfane, nem de nenhuma moça que responda pelo nome de Fina; mas lá no fundo dos corações têm a memória das dores provocadas pelo cavalo-marinho do senhor Pedro Chilepfane.
Um mal nunca vem só. Naquela tarde da sova o Mateus foi visto por um tio seu, o senhor António Boy, antigo mineiro e reformado da vida produtiva. Despendia o tempo ao balcão da cantina do Silva, ali nas proximidades, na companhia do vinho tinto e de mulheres de ocasião. Presenciou os eventos ocorridos com aquele sobrinho, mas não se manifestou para evitar embaraços e compromissos. Mas, dois dias depois, deu conta dos factos à prima, a mãe do Mateus. Esta encarregou-o de ministrar ao sobrinho o correctivo a que este tinha direito. E fê-lo como um pai, com muita demora e competência, como nunca o fizera em vida, porque esse era o papel de um tio responsável, compenetrado no cumprimento dos seus deveres de educador zeloso. E o Mateus andou sem camisa uma grande porção de tempo até apropriar-se duma, num assalto a um garoto na bucaria da Mafalala.