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Dona Rodália

Fazia meia hora que o pai, cotovelos sulcando a mesa, apoiava o queixo com as palmas das mãos, devia estar a dormitar por detrás daquelas lentes graúdo límpidos de espessura ínfima, espreguiçou-se, bocejando e disse parafraseando Camões: “o amor é ter com quem nos mata lealdade”. Ficara assim à mesa das refeições depois de almoçar.

Vezes sem fim, minha mamã, andava desconfiada daqueles poemas que meu pai andava escrevivendo.
 – Quero ser poeta, mulher – se desculpava o pai, como se ser poeta fosse um querer.

Mamã ouvia com cara trombuda. Nunca acreditara nos ditos de poetas. Dizia ela, para além de eles (poetas) serem fingidos, sempre tem uma musa misteriosa.

Naquele dia, quando achou o papiro de versos na orla do prato que papá tomara o almoço, concluiu que escrevera para a secretária da casa, dona Rodália.

Quando mamã chegou a casa, fazia dez minutos que papá retornara ao serviço, e dona Rodália não tirara o prato, ainda.
Mamã pensou, dona Rodália andava em cima do seu homem.
Mamã pensou, papá escrevera aqueles versos para dona Rodália.

Mamã não queria se conformar como sendo simples versos de papá. Tal igual ao ferro quente, começou-lhe arder coração.
Releu os versos com voz sonora, e assim diziam:

“ se eu te pudesse dizer
   aquilo que nem eu sei
   sentarias aqui, ao lado de mim
   no coração (à mesa)
   onde dista a minha devoção

   quem sabe uma brisa fresca,
   nos surpreenderia,
   tão confinados como as pedras amontoadas.
   seria, tu e eu
   de tudo quanto quis quer, dizer”.

A cada verso, mamã perdia o ritmo da respiração, a bem dizer, saía do ritmo.  

– Esse homem está perdendo a cabeça – suspirou repetindo o penúltimo verso “seria, tu e eu” enquanto guardava o papel na sua bolsa.

Quem sabe era para ela? Mas não, por que o teria guardado debaixo do prato sujo? Não se sabe a verdade.

Meu papá tinha sempre este hábito de escrever versos e deixa-los espalhados para que no dia que as encontrasse se surpreendesse com o pulso da sua escrita. Contudo, dava trabalhos aos que andavam a sua atrás recolhendo os papéis e arquiva-los. Muito mais eu e a dona Rodália, mamã não gostava nem tão pouco disso, apanhava e deitava no lixo. E aquele que achou debaixo do prato? Foi o único que arquivou na sua bolsa.
Dona Rodália, não era mulher de ninguém não lhe querer. Era mulher bonita, curvas salientes, coxas fornidas, e pele lisa. Papá talvez andava já há muitos com ideias de interpelara, mas pensava problemas graves quando se lhe descobrissem.

Quando dona Rodália terminou de engomar a roupa, mamã já havia chegado a um minuto, com olhos vivos no papiro que papá escrevera. Dona Rodália acorreu-se à mesa com as desculpas na ponta da língua, por que não havia posto o prato limpo para a mamã, nem retirar o prato que papá comera nele.

– Desculpa, senhora, estava a terminar de engomar roupa do patrão.

Patrão é palavra que mulheres usam-na quando se referem dos seus. Doeu-lhe palavra “patrão” como se uma navalha lhe sendo espetado no peito.

Olhou-a pela esquina do olho torcendo a boca, tal igual como eu fazia na infância repetidas vezes, insultando a quem não ia comigo, porém enxergando com dissabor aquela trepidação das ancas. Mamã sabia que papá via aquilo sempre que dona Rodália vinha lhe dar água de lavar as mãos, quem sabe, por vezes lhe espreitava no decote?

– Patrão, água de lavar mãos.
Papá olhava e não resistia. Palavras se saiam pela boca involuntariamente, penso.
 – ‘Stás linda Rodália.
– Obrigado, patrão.

Dona Rodália, depois dos ditos de papá, exagerava aquele abanar das ancas, por que sabia que papá desfrutava da sua dengue. Não raras vezes que papá toma almoço sem mamã, chama dona Rodália, só, para lhe servir água que já está na mesa. Dona Rodália, também, abanava de lhe deixar sem fôlego. Talvez, dona Rodália, não fazia aquilo por lhe querer papá, mas para preservar seu emprego, porém, se papá também lhe abordasse não iria negar para não perder emprego.
– Rodália… – gritava papá.

Num repente, dona Rodália emergia da porta das traseiras com peito levantado.
– Sim, patrão.
– Ponha-me água no copo
– Sim, patrão.

Nervosa de incompreensão, dona Rodália servia a água e se mandava embora.

Enquanto papá lhe servia água, a contemplava ao mínimo detalhe, de lhe cair saliva na boca.

Papá tomava a água em dois ou três tragos, antes que dona Rodália desaparecesse no correr, e a chamava de volta.
– Rodália…
– Patrão.
– Ponha-me mais água.

Papá a contemplava… a contemplava… a contemplava como se assim lhe surgissem versos.
Outra vez, papá chamou dona Rodália por mais três vezes e disse, por fim:
– Rodália, senta aqui e me veja comendo
– Sim, patrão.

A mão de papa hesitante entre ir e não ir, apalpar a cocha da dona Rodália, coçava-se o seu próprio joelho se esfregando à toa. Sorte daquele dia, mama havia esquecido chaves da porta na gaveta da secretaria e se obrigou a apertar o botão da sineta.

– Trim…trim… trim…

Foi um susto de arrancar o coração. Dona Rodália ergueu-se num vulto. Quando abriu a porta e viu que era a senhora, minha mamã, uns calafrios atravessaram-na a espinha dorsal, ficou zonza, corpo todo húmido. Contudo, a senhora, minha mamã, não vira aquela feição, talvez por que vira carro de papá lá fora e se acorrera a mesa para pelo menos tomar um almoço com papá.

Como de sempre que a mamã ou papá viajava, havia alteração da rotina da dona Rodália, dormia aqui em casa, no quarto de hóspedes. E porque nos três dias seguintes, depois de amanhã, mamã tinha que viajar em missão de serviço, Dona Rodália foi apurar a anuência para poder transladar seus alguns haveres para aguentar os três dias da ausência da senhora.  

– Desculpa, senhora, a viagem ainda está em pé?

Havia-lhe conversado sobre viagem há dias para lhe preparar as malas, porém nas suas desconfianças, mas mudaria de costumes da outrora, pior com aquele último papiro de versos, desalento.

– Sim, mas não precisas dormir cá, Rodália.
Dona Rodália encheu-se de pasmo, porém talvez não tivesse alguma intenção, embora, mamã tenha decido sem conluio de papá.

– Está bem, Senhora – disse dona Rodália e se extinguiu serpenteando pra lá no fundo do corredor.

Por aquelas alturas, o sol vergava naquela púrpura nuança do sol-pôr, ao canto de rouxinóis. Um vento uivava, umas toalhas no estendal ameaçavam voar, ganhar os céus. Lá dentro, a mamãe, afundada no sofá, pernas trançadas sobre o comprido do sofá, olhos no plasma, se via aos canais das novelas com os pensamentos, não sei; no movimento lento, acariciando os mindinhos dos pés um do outro. Reclusa na sua monotonia, roía, ensonada, uma atrás da outra, pipocas corns que a Dona Rodália preparara, de tal modo, ruminava, em silêncio, suas desconfianças, de haver um romance clandestino entre papai e Rodália.

 

 

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