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Dois Copos

O diâmetro da base opaca do copo era menor que a do topo, o copo estava assente numa mesa rectangular de pinho, o conteúdo interior borbulhava até desaguar na superfície espumante, a frescura do líquido dourado transpirava deixando a parte externa deste completamente ensopada.

O proprietário do recipiente olhava meditabundo sem se importar com o barulho produzido por outros clientes que conviviam procurando fazer-se ouvir ante a música ensurdecedora expelido por potentes colunas.

Momentos de regressão inolvidável assaltaram a sua mente, um sorriso inocente errou-lhe pelos lábios ainda sequiosos.

Segurou o copo, sentiu o frescor fluir corpo adentro animando o seu estado de espirito, era a primeira vez em um ano que tinha o privilégio de usufruir de um momento especial, não demorou, deu um gole.

– Ahh! – estalou a língua.

Depois num trago prazeroso eliminou o que ainda restava da cerveja.

Buscou a servente, submersa num mar de gente segurando acrobaticamente uma bandeja com inúmeros copos.

Quando a capturou com o olhar levantou a mão direita com o dedo indicador erecto, a moça voltou a perder-se para retornar instantes depois com outro copo.

Enquanto aguardava ansiosamente que outro copo chegasse desequilibrou-se devido a estrutura deficiente do banco onde se encontrava sentado, movimentou-se para esquerda com o propósito de se equilibrar, este movimento fez que o guarda que se posicionava no limiar do bar o fuzilasse com um olhar inquiridor, mas quando percebeu que o seu vigiado não constituía ameaça manteve-se na posição de controla-lo a partir da porta.

A servente pousou o copo na mesa, ele não demorou a segurar e a levar para a boca, tragou sofrivelmente, limpou a barba de espuma, a animação que morava no seu ser redobrou.

Depois levantou-se e caminhou calmamente em direcção a porta onde estava o guarda, estendeu ambas as mãos e este algemou-o depois cobriu as mãos com uma camisola.

Iniciaram a caminhada de regresso a penitenciária de civil localizada num dos bairros da cidade. Enquanto caminhavam a movimentação popular fazia-se sentir com os citadinos aglomerados nas paragens, muitos dos que aguardavam o seu momento de embarcar estavam submersos nos seus telemóveis. Invejo-os pela liberdade que usufruíam, mas estava grato pelo momento de liberdade prematura que lhe permitiu beber dois copos.

“ Museu vazio” – gritou um cobrador de chapa.

Não demoram para chegar, quando adentraram para o recinto prisional o recluso verteu lágrimas de saudades dos breves momentos em que foi um homem livre. O guarda prisional acompanhou-o até a sua cela e libertou-o das algemas.

António Murrada cumpria a sua pena de prisão de dois anos devido a posse ilegal de “soruma”.

Dias antes da liberdade provisória António era hostilizado pelo seu verdugo que de forma implacável infligia pesado castigo, mas Murrada procurava a todo custo cumprir com as normas da cadeia para não sofrer a punição que o seu carrasco prazerosamente impunha.

Mas o guarda penitenciário Rafael Salgado, apossado de malvadeza encontrava sempre motivos para castiga-lo. Havia dias de cacetadas injustificadas e outros de serviço pesado.

António Murrada ficou com a musculatura consumida pelos dissabores do quotidiano penitenciário e a sua juventude perdeu-se por conta dos maus tratos.

Num desses dias Salgado apresentou-se imponente em frente a cela de Murrada e pediu que o acompanhasse, o prisioneiro resmungou, seu carrasco alvejou-o com olhar incisivo fazendo com que o recluso obedecesse.

Quando chegaram ao destino o guarda penitenciário indicou-lhe o trabalho que deveria efectuar.

– Desculpa chefe, mas eu limpei as latrinas ontem, hoje é dia de outro – bradou serenamente.

– Preso cento e vinte – cumpra ordens.

Olhou furioso para Salgado, todo seu o nervosismo ficou condensada nos olhos injectados de sangue. Depois de cumprir a nefasta tarefa regressou para o seu domicílio prisional acompanhado do seu fiel verdugo.

Num dia pela manhã quando António Murrada tomava o seu banho de sol no quintal da prisão era severamente acompanhado vigiado por Salgado.

De repente uma queda aparatosa do guarda Rafael Salgado levantou um reboliço no quintal prisional, ninguém se aproximava da vítima estatelada que esperneava e esbracejava, os seus colegas que estavam longe demoravam a chegar.

Quando todos chegaram guardas e reclusos ninguém se prontificou a socorrer a vítima pois estavam reféns das suas superstições.

Quando Murrada percebeu do que acontecia correu para socorrer a seu implacável verdugo que sofrera um ataque epilético, o socorrista introduziu um pedaço de pano entre os dentes para evitar que este mordesse a língua e colocou a cabeça da vítima na lateral porque este se babava.

Quando as autoridades médicas chegaram o primeiro socorro já tinha sido acautelado, recolherem o enfermo, colocaram numa maca e procederam a retida do recinto prisional em direcção ao hospital central de Maputo.

Comentaristas não remuneráveis entre reclusos e guardas debatiam a pronta intervenção de Murrada que apesar de massacrado socorrera o seu mais directo inimigo.

No dia seguinte o pequeno herói da penitenciária foi chamada a presença do director.

– Caro senhor António estou imensamente grato pela atitude e préstimos oferecido ao nosso colega – afirmou o director. – Graças a sua intervenção que o nosso colega escapou.

Murrada manteve-se firme e calado.

– Gostaríamos de recompensa-lo, diga-me o que deseja?

Não demorou para o recluso levantar a mão direita e esticar dois dedos, indicador e o mediano.

– O que significa esses dois dedos, recluso Murrada?

– Dois copos – respondeu por fim – e logo acrescentou. – De cerveja.

– Muito bem, irei pedir a um dos guardas que comprem uma garrafa – afirmou o director.

– Desculpe senhor director mas o meu pedido não esta completo.

– Diga.

– Gostaria de beber os dois copos como um homem livre.

 

 

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