Fui convidada como oradora no 10º evento do “Raias Poéticas”, a mesa que abordaria o tema “Leitura, poesia e edição: laços e pontes que unem o leitor, poeta e editor”.
Para mim, falar em Literatura pressupõe incluir na “casa literária” todo o tipo de intervenientes: autores, leitores, livreiros, editores, dinamizadores literários, entre outros, sem excluir e actuando de modo holístico. Se é verdade que fundamentados por ideias de Gilles Deleuze, encaramos o conceito “dobra”, como coexistência e abertura para diferentes tipos de debate ou de actuação, não é menos verdade que a ideia de dobrar, sugere ocultar o que fica dentro dobra. E, se não houver cuidado ou atenção, incorre-se no erro de passar por cima do outro. Se por um lado, podemos colocar coisas dentro de uma dobra, para as resguardar, também podemos nos esquecer delas. Então, é mesmo válida a ideia a construir a partir de Deleuze de que “dobra” implícita agir de modo diferente. Eu diria holístico ou inclusivo.
Quando fui convidada a participar do evento “Raias poéticas” as primeiras perguntas que me fiz foram: que laços é que unem diferentes tipos de “leitores” a editores? À poesia?; como integrar alunos e leitores excluídos do contexto educativo numa literatura excludente?; como unir leitores excluídos a editores excludentes?; Como ter uma ”casa literária” inclusiva?; como solucionar o desfasamento entre os pressupostos para a educação inclusiva e a edição de livros inclusivos?
Antes de responder a essas perguntas, recordo o contexto moçambicano, a partir do qual verifiquei existirem algumas soluções e desafios para esse quesito. Moçambique é um país multicultural, com onze grupos étnicos-culturais. Tem também recenseadas, cerca de 23 línguas, algumas das quais já com dicionários, gramáticas, textos ficcionais e didácticos, num universo no qual, a língua oficial é a língua portuguesa.
Lembro ainda que as línguas moçambicanas foram interditadas na época colonial, facto reiterado em 1975, após a proclamação da independência, no qual o português foi escolhido como língua oficial. Entretanto, até hoje, para uma população nacional de 30.832.244 de habitantes, da qual 14.885.787 são homens e 15.946.457 são mulheres, onde 34,02% são população urbana e 65.08%, população rural; cerca de 65%, que é habitante de zonas rurais, é falante do português como segunda língua.
Falar sobre “casa literária”, nesse contexto, deve ser e saber integrar todos os seus intervenientes: autores, leitores, livreiros, editores, dinamizadores literários, entre outros. Pressupõe ainda integrar, nesse grupo a Escola, esta que é instituidora e disseminadora do cânone literário.
Nesses termos, convêm lembrar que segundo a Lei nr.18/2018, de Dezembro o Sistema Nacional de Educação deve integrar crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais em escolas regulares. Para as escolas de educação especial vão alunos em casos de extrema necessidade. Até aí, está tudo bem.
O problema que se coloca é que a maioria, senão todos os professores das escolas regulares não estão habilitados a lidar com a deficiência. Além disso, segundo me constou, a partir de um programa radiofónico, c.f <https://youtu.be/VWnk6smvqCE> existem, no país, cerca de “728 mil pessoas com deficiência; 115 mil crianças, em idade escolar, têm deficiência e existem, apenas, 10 escolas especiais, num contexto no qual 66.4% dos 5 aos 24 anos estão fora do sistema de ensino”.
Não havendo como lidar com a deficiência em contexto de aulas regulares, certamente que, também, não haverá como lidar com determinado tipo de pessoas com deficiência em determinados programas de dinamização literária, como por exemplo os cegos, os surdos, os que têm deficiências mentais e os que tenham como língua primeira, uma língua moçambicana, porque, nem todas as escolas utilizam a modalidade de ensino bilingue e a produção de materiais de literatura em línguas moçambicanas é escassa.
O ensino bilingue é um tipo de ensino no qual, democraticamente, por escolha realizada dos pais, os alunos são matriculados na Escola, e submetidos a um ensino no qual, nos seus três primeiros anos de escolaridade, a língua de apreensão do saber é uma língua moçambicana e o português aparece como disciplina. E nesses anos, poucas crianças têm acesso à literatura produzida nas suas próprias línguas.
Junta-se aos problemas mencionados o facto de moçambique ter cerca de 30 editoras e apenas algumas sobre as quais falarei mais adiante, se dedicarem a ser inclusivas. São as seguintes, as editoras existentes no país: Trinta Zero Nove; Kuvaninga; Progresso; Plural; Fundza; Escola Portuguesa de Moçambique (Braço editorial); Fundação Fernando Leite Couto, Alcance; Selo Jovem; Índico; Xidjumba; Kuphaya; Oleba; Cavalo do Mar; Ethale; MOLIJU; AEMO; JV; Escolar; Texto; Kwiri; TPC; Kulera; Atiko; Imprensa Universitária; Kwandika; AT; Marimbique; Capicua e ainda Literatas (Movimento literário); Arquivo Histórico de Moçambique – AHM e FUNDAC (Instituição cultural). Estas três últimas, não sendo propriamente editoras; têm publicado livros em contextos específicos.
Entrevistada Sandra Tamele, fundadora da editora Trinta Zero Nove, referiu que a instituição foi criada a 30/09/2018, em celebração ao dia da tradução. Tem como missão traduzir e publicar obras em formato impresso, áudio-livro e em braile; privilegiando mulheres, narrativas actuais, pessoas com deficiência e minorias. Esse trabalho é feito com obras de autores moçambicanos e de autores de outros países. A editora tem também dado primazia a obras infanto-juvenis. No seu catálogo já existem cerca de 30 trabalhos, que incluem poesia, romance e conto. Esta instituição tem realizado saraus culturais de poesia, com tradução em língua de sinais.
Falei também com Elcídio Bila, representante da editora Kuvaninga, que me informou que esta foi criada em Maio de 2012, em Maputo. Tem utilizado capas de cartão (papelão reciclado, retalhos de tecido e outros) para cobrir o miolo dos livros que produz, unindo as folhas através de uma linha. É um trabalho artesanal. Tem no seu catálogo cerca de 27 títulos publicados, nos géneros poesia, conto, drama, crónica e ensaio de autores moçambicanos e estrangeiros. A sua missão é estimular novos escritores. Além disso, têm-se dedicado a levar a consciência dos seus leitores à preservação do meio-ambiente.
É no âmbito do trabalho dessa editora que surge, em 2020, num formato misto: a tinta e em braile, a obra Sonolência e alguns rabiscos, da autoria de Énia Lipanga, poetisa e escritora moçambicana. Quando entrevistada a propósito da matéria neste artigo, referiu que o seu livro tem sido utilizado pela Associação de Pessoas com Deficiência Visual como exemplo do que se espera da arte. Da conversa tida com ela, destaco que dinamiza a literatura, declamando poesia em eventos com intervenção simultânea de interpretação em língua de sinais.
A literatura infanto-juvenil, começou a ser publicada em 1979, em Moçambique, entretanto, é um género com menos produção do que a produzida para um público mais adulto e que, ao longo do tempo foi sofrendo interrupções no âmbito da sua publicação. Mas, com a actuação da Associação Progresso, fundada em 2001, abriu-se uma etapa em que aumenta a produção desse género e inaugura-se uma época na qual a produção nesse género é também feita em algumas línguas moçambicanas.
Essa associação tem desenvolvido o seu trabalho em áreas rurais, nomeadamente: Niassa, Cabo Delgado, Maputo, Tete, Nampula e Zambézia; produz materiais impressos para apoiar o Ensino Bilingue. Têm, também, produzido textos para serem utilizados na alfabetização de adultos, cujas temáticas incidem sobre habilidades para a vida. A editora desta Associação já tem produzidas mais de cem obras.
A Plural Editores iniciou a abordagem à temática dos livros em línguas moçambicanas em 2013. Tem contribuído para o Ensino Bilingue e de registo de contos da tradição oral, através do projecto “Moçambique: todas as línguas, um país”. A primeira edição desse projecto foi realizada em Abril de 2014. Como resultado desse trabalho, existem, actualmente, materiais, nas seguintes línguas: xichangana, emakwa, cinyanja, cisena, cicopi, gitonga, citsua, ciyao, elomwé e shimakonde.
Fundada em 2015, a Associação Literária Kulemba, cujos responsáveis pertencem à editora Fundza, tem organizado festivais infanto-juvenis sobre o livro, feiras, declamação de poesia e concursos literários que têm resultado na produção de livros para esses públicos. Em 2016, a associação iniciou a produção de uma colectânea de contos intitulada, À Volta da Fogueira, desta colecção já foram publicados três volumes; um em 2016, outro em 2017 e um terceiro em 2018. A Associação tem dialogado com os seus públicos, através do festival literário infanto-juvenil, designado Flik. Em 2019, após ciclone Idai, a Associação publicou livros sob o lema “Livro também sara Feridas”.
Escola Portuguesa de Moçambique, especificamente o seu braço editorial tem, desde 2010, desenvolvido com escolas moçambicanas, um projecto de dinamização da leitura e da escrita, através de um programa denominado “Mabuku ya hina”. Desse trabalho tem resultado a publicação de obras infantojuvenis. Esta Escola tem um outro programa designado “projecto ler para aprender”, que teve início em 2012, através do qual estimula crianças das escolas moçambicanas ao gosto pela leitura e pela literatura. Para além desses projectos, a Escola tem publicado obras infanto-juvenis, resultantes da adaptação e do reconto de obras da literatura oral, por autores moçambicanos consagrados ou não.
A Fundação Fernando Leite Couto, criada em Abril de 2015, tem no seu catálogo 32 obras, entre poesia, romance, conto e literatura infanto-juvenil é chamada a este convívio pelo facto de já ter publicado livros de literatura infanto-juvenil e de criar oportunidades para a tradução em peças de teatro alguns livros desse género e da autoria de diferentes autores na praça moçambicana. É um modo de se fazer dinamização literária que, para além de destacar um público muitas vezes excluído, têm dramatizado textos que, por sua vez são interpretados (em parte) em linguagem de sinais, para serem difundidas para um público infanto-juvenil. Há, também, um trabalho de estímulo para que crianças escrevam histórias e as contem a outras crianças, em modo dramatizado ou de conversa. Essencialmente, esta Fundação funciona como uma Escola de formação de novos autores ou de estímulo de jovens autores para o aprimoramento do seu trabalho.
Num país como Moçambique, abordar a temática da existência de laços que unam editoras aos seus leitores, deveria pressupor abrir a mente e falar sobre todo o tipo de leitores. Só assim é que a “casa literária” ficaria completa. Pressupunha ainda, que as poucas editoras existentes se predispusessem a criar novas formas de diálogo com os seus públicos. Só assim é que haveria justiça social e justiça científica, feitas à medida da dobra de pensamento preconizada por Gilles Deleuze, que inspirou o movimento Raias Poéticas.
*Sara Jona Laisse. Docente na Universidade Católica de Moçambique. Colaboradora na Fundação Fernando Leite Couto. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.