- Introdução
O presente artigo surge do facto de consumirmos os trabalhos musicais de Nordino Chambal e Mavundja. Aliás, Nordino Chambal (doravante NC), autor de “Mamã”, “Ntombi ya kona”, “Famba kwatsi” e outros números, é um artista que se destaca por retratar, nas suas músicas, não só o realismo social moçambicano como também dar voz às mulheres, exprimindo os seus sentimentos e/ou destacando-as como o suporte da existência humana.
Outrossim, Mavundja, autor de “Nilangile wena”, “Nkuvu”, “Love wami”, “Maxaka”, entre outros números, também aborda o amor, a resiliência, exalta a mulher e eleva-a no prisma social. Todavia, neste artigo, não nos focaremos nas nuances retro mencionadas, mas, sim, no kulaya, temática realçada, intertextualmente, nos seus trabalhos.
- Aspectos teórico-metodológicos
- Kulaya
Para Guerra (2018), o kulaya consiste em as matronas serem chamadas para aconselhar as jovens, com ensinamentos de “cama e mesa”, mostrando como devem tratar os maridos, cuidar da casa, dos filhos e outras “obrigações” da mulher. Basicamente, os elementos centrais que organizam o kulaya são ensinamentos do respeito ao marido (e sua família) e da vida sexual.
O discurso sobre o respeito ao marido está sempre associado a um sentimento de tolerância e de inclusão que deve nortear as relações do casal, significando que a mulher deve ser obediente ao parceiro. (Osório, 2013, apud Guerra, 2018)
Entretanto, apesar de o kulaya, conforme atesta Guerra (2018), socorrendo-se de Osório (2013), apud Guerra (2018), consistir em as matronas serem chamadas para aconselhar as jovens, esta prática não é apenas para as noivas, mas, também, para os noivos e tem diferentes nuances em função do caso, zona e/ou contexto e, nos dias que correm, há tendências de busca por conselhos por parte dos homens e de inclusão dos mesmos, principalmente em situações pré e pós-matrimónio.
Conforme se pode ler em “Tradições e ritos: a mulher deve ser preparada para o lar”, “o kulaya atribuía toda a responsabilidade às mulheres e pouco se olhava para os homens como provedores de bem-estar no seio familiar. Hoje, pedimos a presença do noivo na sessão, uma vez que o homem e a mulher já estão em pé de igualdade no que diz respeito ao nível académico e profissional. O que é positivo. Mas é preciso saber gerir esta realidade com sabedoria, o homem deve saber dialogar e apoiar a sua esposa, da mesma forma que a esposa deve saber respeitar o seu parceiro”
Importa realçar que, para o caso de “Famba kwatsi”, de NC, o sujeito poético [progenitor(a) da recém-casada] aconselha a filha numa perspectiva de um casal que contrai o matrimónio, entretanto, não vai logo viver a sua casa com o seu esposo, mas, sim, à casa dos sogros; em contrapartida, em “Maxaka”, de Mavundja, o sujeito poético (noivo) aconselha a esposa num contexto de um casal que contrai o matrimónio já a viver junto ou passa a viver junto, na sua casa, após o casamento.
- Intertext(o)ualidade
Segundo Corrales (s/d), falar de intertexto e de Literatura Comparada exige perceber que, ao lermos um texto A, estamos a ler um texto B, e este entrecruzamento de vozes percebidas ou levemente transparentes é algo que perpassa a escrita, em especial a Literatura, ao longo de todos os tempos.
Dito de outro modo, ao escutarmos “Famba kwatsi”, de NC, estamos a escutar “Maxaka”, de Mavundja; entretanto, enquanto em “Famba kwatsi” o artista dá voz a um sujeito poético [progenitor(a) da recém-casada] para a aconselhar (kulaya), em “Maxaka”, dá-se voz a um sujeito poético (esposo), a fim de aconselhar a sua própria esposa.
- A representação do kulayaem “Famba kwatsi”, de Nordino Chambal, e “Maxaka ya mina”, de Mavundja
Em “Famba kwatsi”, o sujeito poético inicia a sua alocução lamentando a partida da sua filha rumo ao lar, quando entoa “Wafamba marhumekani (…)” (NC, 2024), que significa ‘já vai a minha prestativa filha’.
Na sequência, despede-se da mesma, dizendo “famba kwatsi, marhumekani/ uya va rungula lomu uyaka kona” (NC, 2024), i.e., [‘vai bem, minha prestativa filha/manda cumprimentos aonde vais’].
De seguida, para transmitir a ideia de kulaya, que nos propomos debruçar neste artigo, evoca o conceito de “lar”, quando declara “asvoyenca inge i mavun’wa, kambe i ntiyisu/ n’wana wa mina ayasungula njangu.” (NC, 2024), que significa [‘parecia mentira, mas é verdade/ a minha filha vai iniciar um lar.’]
Indo directo ao cerne da nossa discussão neste artigo (kulaya), o sujeito poético aconselha-a nos seguintes moldes: “kambe n’wananga tiva svaku/ kaya ka vapsele va nuna wa wena/ hahi kaya ka wena (…) awuveki nawu” (CN, 2024), i.e., [‘entretanto, minha filha, saiba que/ casa dos pais do teu marido/ não é tua casa (…) não dás ordens.’]
Ora, depreende-se, com a transcrição anterior, a ideia de que a noiva deve respeitar a família do noivo e submeter-se às regras da casa, pois que não está na sua casa e, consequentemente, os que lá comandam são os seus sogros, donos da casa.
Estamos perante a dimensão básica do kulaya – ensinamentos do respeito ao marido (e sua família) –, ressalvada por Guerra (2018) (destaque nosso). Na continuidade, o sujeito poético assevera que ‘lhe deseja bênçãos’, quando diz: “ina ka, nakulongelela minkateko.” (CN, 2024)
Na sequência dos conselhos/aconselhamentos (kulaya), o sujeito poético acrescenta que ‘ela não deve, no lar, parecer-se com um pinto perdido quando procura/ pela mãe e não a acha e começa a piar (pío-pío)’, conforme se pode depreender a partir da onomatopeia na música “…ungayi uya fana ni xiciwana loku xipfumala/ a mpsele wa xona, ciyô-ciyô…” (NC, 2024)
Seguidamente, o sujeito poético, talvez porque se trata de sua filha amada, decide, igualmente, deixar algum recado à família do noivo/genro, quando diz: “(…) vaka mani, yamukelani n’wana wamina (…) yamukelani ntombi yamina/ kusukela svosvi i n’wana wa n’wina (…) i ntombi yan’wina/ niyiwundle kufika lani, mayivona kusaseka/ nili yihlayiseni (…)” (NC, 2024), i.e., ‘… família X/Y, receba(m) a minha filha (…) receba(m) a minha menina/ a partir de hoje, é vossa filha (…) é vossa menina/ criei-a até aqui, tão bonita que é/ portanto, cuide(m) dela’ (…)
Outrossim, em “Maxaka”, de Mavundja, o sujeito poético começa a sua alocução layando (aconselhando) a sua parceira, entoando: “maxaka ya mina, maxaka ya wena i xaka rin’nwe (…)” (Mavundja, 2024), i.e., ‘minha família e tua família são uma só família (…)’, denunciando, logo a prior, a dimensão básica do kulaya – ensinamentos do respeito ao marido (e sua família) –, ressalvada por Guerra (2018). (destaque nosso)
Na continuidade, o sujeito poético adverte que, no lar, ‘não existe minha família, não existe sua família, família é uma e única/ não existe família daquele, família deste, família é uma e única.’, quando diz: “akuna va ka mina, akuna va ka wena i xaka rin’we/ akuna va ka lweyani, akuna va ka lweyi, i xaka rin’we (…)” (Mavundja, 2024)
Ou seja, o sujeito poético, antes de dissertar sobre como tratar ou lidar com a visita tanto da parte do noivo quanto da noiva, dedica o seu exórdio a explicitar que, entre ambas as famílias, não existe exclusividade; ambas, a partir do momento da contracção do matrimónio, à semelhança dos nubentes, são uma só.
Indo ao kulaya propriamente dito, o sujeito poético grifa: “mamani wa mina ni wa wena i mamani, i mun’we ntsena/ papayi wamina ni wa wena i papayi, i mun’we ntsena.” (Mavundja, 2024), i.e., ‘A minha mãe e a tua mãe são uma só mãe/ o teu pai e o meu são um só pai’, para vincar que, à semelhança das famílias que passam a ser uma só, os pais, igualmente, são um só; não existe “meu pai, pai do meu marido”, ou seja, não existe tratamento desigual.
Assim, assevera: ‘quando vierem cá a nossa casa, atende-os, esposa/ recebe-os de todo o coração; quando se despedirem/ sorri e despede-te deles, igualmente, de todo o coração (…)’, o que se ouve em “loku vata lani kaya, vatenderi nkata/ vayamukeli hi mbilu hinkwayo; loku vaku hafamba/ vahlekeli, nkata, valeleli hi mbilu hinkwayo.” (Mavundja, 2024)
Ora, estamos perante claro kulaya – respeito à família –, neste caso, não só do marido quanto da esposa. O sujeito poético, diferentemente do habitual (ensinamentos que se dão à mulher), faz perceber estar consciente de que também tem, neste prisma, o dever de cuidar do lar, quando acrescenta: ‘Eu também, caso erre, segreda-me/ esposa, caso eu cometa tropeços, não me deixes/ segreda-me (…)’, quando diz: “naminawu, loku niphazama, nghanibyela, nihleveli/ nkata, naminawu, loko nihoxa, unganitshiki/ nihleveli nkata (…) (Mavundja, 2024)
À guisa de conclusão
Portanto, NC e Mavundla, intertextualmente, retratam, em “Famba kwatsi” e “Maxaka”, o kulaya, uma prática cultural que se desencadeia por um familiar do noivo e/ou noiva, como forma de a aconselhar sobre como cuidar e/ou tratar do lar, do marido/esposa e sua(s) família(s).
BIBLIOGRAFIA:
- Guerra, L. H. (2018). Sexualidade, corpo e doença em Moçambique: Implicações regulatórias. REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 5, volume 5(1).
- Mavundja (2024). Maxaka. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=egKO1xZ4doc
- (2024). Famba kwatsi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zCYg_f0W5-U
_____________Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul, Brasil. Disponível em: https://www.google.com/search?q=luciano+corrales+-+a+intertextualidade+e+suas+origens+pdf&oq=Luciano+Corrales+-+a+intertextualidade+e+suas+origens+&aqs=chrome.1.69i57j33.34478j0j9&client=ms-android-huaweirev1&sourceid=chrome-mobile&ie=UTF-8, acessado em 18-11-2022, às 15:22
____________ In Jornal Domingo, disponível em: https://www.jornaldomingo.co.mz/sociedade/tradicoes-e-ritos-a-mulher-deve-ser-preparada-para-o-lar/