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Do “dilúvio” que levou tudo a uma vida “coberta” por tendas há um ano

Pelo menos 50 famílias deslocadas, em 2023, pelas cheias em Boane, Província de Maputo, estão a viver em tendas há cerca de um ano numa zona de reassentamento. As vítimas dizem que as cabanas vertem água quando chove.

O Conselho Municipal da Vila de Boane nega ter havido promessa de casas para os afectados e sublinha que cada família deve trabalhar para construir a sua própria residência.

Dia 11 de Fevereiro de 2022. O Instituto Nacional de Meteorologia lança um alerta de chuvas. Espera-se, como sempre, “que fossem acima do normal”. Todo o mundo está acostumado a ouvir este tipo de anúncio do INAM. Ninguém levou muito a sério. Mas aquele anúncio era diferente. Era o “dilúvio” que se abateu sobre Boane.

Foi, certamente, a maior tragédia ambiental jamais vista, na Província de Maputo, desde as históricas cheias do ano 2000. Do dia para noite, as vítimas das cheias em Boane perderam tudo e, a partir do nada, devem recomeçar do zero.

Da Cidade de Maputo, a nossa equipa de reportagem segue viagem rumo ao bairro Filipe Samuel Magaia, localidade de Estevel, Município da Vila de Boane, Província de Maputo.

O nosso percurso é feito a um caminho rodeado de mata. Parece irmos ao meio do nada. Mas, chegados lá, encontrámos famílias que tentam entender as regras do jogo para o recomeço da vida.

No rosto de famílias que estão naquela zona de reassentamento, nota-se tristeza, solidão e desolação. “Aqui (na zona de reassentamento), é muito difícil, porque não é como lá, em Boane. Mas nada mais posso fazer. Não tenho como voltar à minha antiga casa por ser propensa às cheias”, lamentou Vitória Comé, uma das vítimas das cheias de Boane.

Lá onde foram forçados pelas cheias a vir parar, dormem em tendas já há 11 meses. Nas tendas, dormem famílias em número de pessoas que varia de quatro a seis.

“Essas lonas também já estão estragadas porque já estão velhas. Reclamámos algumas vezes, mas disseram que viriam trocar, mas, até aqui, ainda não vimos nenhuma tenda”, avançou Mamudo Bacar, também vítima das cheias de Boane.

Por quase um ano, as tendas experimentaram todo o tipo de temperatura e não mais conseguem dar o mínimo de conforto às famílias deslocadas. “Assim que não chove, estamos bem. Quando começa a chuva, estando dentro das tendas, todos molhamos, incluindo crianças. A nossa comida também molha. É um sofrimento, mas, já que não temos para onde recorrer, temos que estar aqui porque lá, de onde saímos, não adianta voltarmos porque as condições não ajudam”, contou Lúcia Sitoe, deslocada das cheias de Boane.

As 50 famílias reclamam de tendas porque, segundo afirmam, aquando do seu reassentamento, houve promessa de casas. Entretanto, algumas pessoas, segundo Lúcia Sitoe, não esperam por promessas e “quem consegue dinheiro faz uma cabaninha ou entra no mato e arranja qualquer coisa porque tenda, com as crianças, não ajuda, mas disseram que iriam construir casas. Contudo, nós não sabemos o que está a acontecer”.

Não sabem o que está a acontecer, mas o edil de Boane sabe e fez questão de pôr os pontos nos “ii”.

“Nunca lhes foi prometido, em caso algum, que iríamos construir casas. Cada um, agora, deve-se recompor e tentar fazer a sua vida, normalmente, e construir a sua casa. Nós não estamos a retirar mais pessoas dos locais propensos a cheias, porque as pessoas pensam que vão para a zona de reassentamento, onde o Município vai construir uma nova habitação. Tirem da cabeça. Não vamos construir. Não temos condições de construir absolutamente nada”, sublinhou Jacinto Loureiro, presidente do Município da Vila de Boane.

Além da incapacidade de construir casas para os reassentados, o Município da Vila de Boane assume não estar em condições de prover mais tendas.

“Nós tínhamos deixado, como reserva, duas tendas. Era para substituirmos 10 tendas, aquelas que nós fizemos o primeiro levantamento. Porque ficámos com as duas? É que, do dia para noite, por surgir um vendaval e ponha uma família ao relento. Nós teríamos como ajudar. E, mesmo as duas, acabamos dando. Neste momento, estamos sem tendas”, revelou Jacinto Loureiro.

Como solução, avança o presidente do Município da Vila de Boane, “estamos a tentar providenciar junto ao INGD mais tendas. Mas o que aconselhamos àqueles que têm estado a fazer algum gotejamento, porque a tenda sofreu um rachadura, que arranjem um plástico. É a situação. Que vão remediando, mas as tendas ainda não estão numa fase de serem mudadas. Podem ser reaproveitadas até ao tempo do seu uso”.

Uma vez que o Município não tem capacidade para responder às exigências dos deslocados, estes pedem ajuda de pessoas de boa vontade. “Estamos a pedir ajuda. Pelo menos que nos ajudem com chapas de zinco e cada um verá como improvisar a sua casa”, apontou Lucas Jordão, vítima das cheias de Boane.

A água é outro problema no bairro onde foram reassentadas as vítimas das cheias em Boane. “É tão difícil termos água, porque se passam semanas sem que jorre nas torneiras. A água que estamos a usar, no momento, é a do poço, não própria para o consumo, mas, depois de pôr certeza (purificador de água), consumimos. Quem não consegue o produto, arrisca-se a beber a água como está”, narrou Vitória Comé, deslocada das cheias.

Viram-se para conseguir beber água potável e para ter transporte público e cuidados de saúde. “Se não acorda às 04 horas, para tomar o primeiro autocarro, não mais consegue transporte. É difícil viver assim. Devia haver reforço da frota. A unidade sanitária está muito distante. Sem dinheiro de transporte, não há como lá chegar”, denunciou Lina Miguel, vítima das cheias de Boane.

Sobre o acesso à água potável na zona de reassentamento, Loureiro diz que o líquido não jorra com frequência por questões estratégicas.

“Temos estado a evitar. Por isso que eles estão a fazer poços. Muitas vezes, usa-se  a água potável para regar as machambas e por serem pessoas que estão em dificuldades, nós vamos tolerando. Aquela água é cara e é preciso que eles usem a água dos poços para as machambas. Aquela água, quase não estão a pagar e isto um dia vai acabar. Eles devem criar hábitos, não de mão estendida e de que tudo há-de vir. Às vezes, acabam a comida e vêm ao município. Senhores, vão trabalhar. Vão levar vida normal como levam os outros cidadãos”, rematou o presidente do Município da Vila de Boane.

O edil de Boane considera, ainda, ilegítimas as reclamações sobre o transporte público e unidade sanitária, visto que a zona de reassentamento está inserida num bairro que dispõe de tais serviços.

O comércio e a agricultura são as principais actividades de subsistência desenvolvidas pelos deslocados.

Neste momento, há cerca de 200 famílias que estão em zonas propensas a inundações no Município de Boane e a edilidade garante ter espaços seguros para reassentá-las, sem garantia de construção de novas casas.

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