O País – A verdade como notícia

Do caso grotesco na casa duma vizinha da Melita…

Na manhã daquele Domingo, a Alicinha e a Julia, que levava o sobrinho amarrado às costas,  puseram-se a caminho da casa da Melita. Esta vivia nas proximidades da taberna do Loureiro, até não muito distante donde ocorrera aquele incidente em que perdera o lábio superior. Iam a conversar sobre lugares-comuns, apenas para vencer o tempo da caminhada.

Cruzaram-se com raparigas e rapazes de roupas domingueiras, a caminho ou provenientes da missa na igreja da Missão de S. José. Vinham com ares descontraídos e alegres, de quem acabava de descomprimir os peitos com as comunhões ofertadas pelo padre Fernandes. Algumas mulheres estugavam o passo, de regresso dos mercados onde foram adquirir provisões para os matabichos dos maridos, antes do regresso dos campos de futebol onde iam assistir às partidas de futebol matinais entre as suas equipas favoritas.

Aproximavam-se da moradia da Melita, no cruzamento de um beco  nas traseiras do “Lourinho” com um caminho largo que desembocava no Muvumbi. A Alicinha estacou e disse à prima:

“ Estás ver esta casa aqui?”, apontou com um dedo as ruínas duma barraca de madeira e zinco, desgatada pelas intempéries e pelo abandono”. Aqui nesta casa aconteceram coisas muito misteriosas”.

“Estou curiosa por saber o que sucedeu”, disse a Julia, a ajeitar a criança às costas, desconfortada com o calor que crescia.

E a Alicinha contou  a tragédia da família que em tempos habitou aquela cabana ora  em ruínas.

“ Nesta barraca vivia um casal que tinha uma filha chamada Elisa. O dono da casa chamava-se vovo Madala, uma pessoa já de idade, de uns sessenta anos, talvez. Vinha de Porto Amélia e as pessoas diziam que era macua, porque é macua todo o homem que se veste com túnicas brancas e usa um barrete de tipo cofió. Trabalhava como alfaiate na varanda duma loja no Xipamanine, mais precisamente do indiano Bhai, onde fazia baínhas em capulanas e remendava roupa variada. Toda a gente gostava dele porque era um homem sossegado, alegre e  brincallhão.

A mulher do vovô Madala chamava-se Hassina, também muito estimada aqui na zona e vendia hortaliças no bazar do Diamantino. Eles juntaram-se quando ela acabava de ter uma filha, há dezasseis anos, depois de perder o marido num acidente de um barco que virou, durante uma travessia da Catembe para a cidade. Conheceram-se lá na loja do Bhai, e resolveram juntar-se. Assim, iam ajudar-se e viver o resto da vida porque tinham uma comunhão de interesses: uma companhia responsável e a partilha das dificuldades do dia-a-dia.

A criança cresceu nas mãos do velho como filha legítima e tudo ele fazia por ela, como se fosse sua. Ela estudou na escola primária da Missão e crescia que, eh!, os vizinhos diziam que era uma promessa de mulher, elegante, bonitona e alegre como o padrasto.

Tudo parecia correr bem neste pequeno lar. Como sempre acontece nas famílias, a Elisinha e a mãe começaram a desentender-se. Discutiam por dá-cá-aquela-palha. Coisas pequenas transformavam-se em grandes problemas. Ora era a água que faltava no tambor…porque é que não foste carretar água ali no Dias?…ora era a roupa do padrasto que não estava bem engomada…será que nesta casa não temos ferro de engomar?… ora chegava tarde da escola…onde estiveste durante este tempo todo?…; enfim, uma infinidade de reprimendas que deixavam a moça amuada e sem disposição para conversar durante dias. Refugiava-se sempre no ombro do padrasto para aliviar as frustrações. Este tranquilizava-a com palavras de afecto e de encorajamento: “…és mulher, um dia vais ser como a tua mãe…estas más disposições acontecem sempre a qualquer mulher e elas vão passar…desculpa a tua mãe…”. E a vida voltava ao normal.

Durante aquele perido de preparativos para as festas de Natal e do Ano Novo o vovô Madala demorava-se a largar do trabalho. Contingentes de mães exigiam da sua perícia para embainhar capulanas, as últimas remessas chegadas de Hong-Kong, às quais elas atribuíam nomes; ora era o Xivite xa Bhai, ora era o Xigubo xa Filipe, Salimina, ou Xi-kambana, e outras mais designações que eram homenagens ou registos de memórias na história da comunidade. Preocupada pelos atrasos a Elisinha ia ao Xipamanine ajudar o padrasto e, juntos, já ao anoitecer, recolhiam a casa em animadas conversas, confortados pelo sentimento de que o sacrifício valera a pena e que se o faziam era para o bem de todos. Ele adorava-a, era a filha que nunca tivera. Ela nutria por ele uma especial admiração e o orgulho de alguém grato por ter um pai afectuoso.

Até que chegou aquele dia em que todos despertaram dos sonhos de felicidade em que adormeciam.

A mãe Hassina atrasara-se nas vendas, esperara pelo homem da camioneta que  fornecia as hortaliças durante toda a tarde. E este não havia maneira de chegar e já fazia-se tarde. Era sempre um risco desafiar a escuridão dos becos deste Chamanculo, sem iluminação nem policiamento. Com os malaíta que se escondem nas sombras tudo poderia acontecer. Ainda há dias violaram e mataram a filha duma colega vendedeira lá do bazar, coitada da moça! Aquele demorara-se por causa duma avaria na camioneta, em plena estrada de Marracuene.

A mãe Hassina chegou a casa às vinte horas, quando a emissora da Hora Nativa transmitia as notícias do dia. Entrou pelo portão sem ruído. De dentro de casa escutava-se apenas a voz baixa do locutor no rádio transístor sobre o aparador. Do vovô Madala nem sombra! Da Elisinha também não detectava sinais da sua presença em casa. Dirigiu-se à despensa que esta ocupava. Ao contrário dos hábitos da casa, a   atmosfera do compartimento era de escuridão e os candeeiros já deviam estar acesos. Como a surdina de vozes que vêm de longe, escutou murmúrios, a respiração arquejada e suspirosa de gemidos de prazer que se soltavam daquele quarto. Pelas frestas de caniço descortinou o vulto convulsivo e gemebundo de seu marido, o vovô Madala, e testemunhou a entrega vuluptuosa e voluntária da sua filha Elsinha.

Recostou-se à parede para recobrar o equilíbrio. O que presenciara era uma cena dos quadros que se pintam e expõem no Inferno. Este caira e tomara como habitação a sua casa. Quantas vezes aquilo sucedera? Desde quando assim era? Porque razão não se dera conta destas práticas há mais tempo? Eram estas algumas das muitas perguntas que se atropelavam na cabeça.

Regressou ao fogo principal da habitação. Acendeu os candeeiros e compôs-se.

O vovô Madala penetrou na sala como se viesse do banho: fresco e sorridente. A Elsinha fez o mesmo mais tarde e deu à mãe a desculpa de que atrasara-se na cantina do Dias onde fora comprar petróleo.

A mãe Hassina sofrera já demais. Nem quer recordar o que foram os tempos em que vivera com o falecido marido. Tempos para esquecer! Com o vovô Madala parecia que os céus se abriram e contemplaram-na com a felicidade de ter alguém que a respeitava e amava. A si e à sua filha, que ele tratava com muito carinho, como se sua fosse. Nessa noite teve os piores pesadelos da sua vida, monstros que  lhe invadiram os sonhos, que a interpelavam e empurravam para o precipício dumas covas onde fogos altos ardiam; escutou os gemidos da filha no meio duma multidão de supliciados em combustão, a imagem do vovô Madala metamorfoseado em Lucifer, com uma máscara medonha, a soltar grunhidos; e trazia a forquilha de Satanás numa mão e uma serpente viva noutra; gargalhava à entrada do pórtico duma caverna guardada por mulheres nuas que entoavam cantigas obscenas e empunhavam varapaus com formatos de pénis.

A madrugada despontou serena. Os galos cantaram os cantos habituais. Mas o dia, ou os dias, jamais seriam como os habituais na casa da tia Hassina. Ela assim o concebeu e assim o decidiu. Recolheu  o escândalo no silêncio do peito, calou na boca as palavras de protesto. Sofrera já demais. Era de madrugada mas já tinha uma babalaza, a lazeira do sofrimento e da humilhação. E interrogou-se: qual é o xarope  para esta ressaca, senão voltar a beber do mesmo sofrimento? Qual é o remédio para calar o fogo dum escândalo senão outro escândalo?

Não passavam três dias a mãe Hassina preparou aquele jantar de família. Calhava ser a data de aniversário do vovô Madala. Ia completar sessenta e cinco anos de idade. E estas ocasiões só se comemoram uma vez na vida. Convidados especiais não houve.

Durante a refeição a conversa decorreu amena: a chegada duma nova remessa de capulanas na loja do Bhai, “…como vai o curso de costura, minha filha?…as hortaliças já não chegam para os fregueses… o pedido da filha da vendedeira do balcão ao lado é já no sábado…há mulheres com sorte!…”; enfim, um nunca mais acabar de banalidades que preenchem as conversas duma família feliz. Quem diria que haveria alguma espécie de animosidade no espírito da dona da casa se ela se esmerara nos guisados, na mathapa à moda de Marracuene e na sobremesa? Até deu-se ao luxo de brindar o aniversariante com uma garrafa de vinho “Matateu”. Haveria mesmo algo que houvesse maculado o entendimento neste lar que parecia tão coeso e prendado?

E tudo aconteceu. Antes da meia-noite o vovô Madala morreu sem se aperceber das circunstâncias da sua própria morte. Apenas engasgou-se, espumou pelo nariz e pela boca; e caiu de lado, inerte, sem vida. No instante seguinte, a Elsinha desabou da cadeira e estatelou-se de bôrco na sala-de-jantar, cheia de vertigens e morreu sem um queixume, com os olhos esbugalhados, surpreendida pelo esgar de ódio que decifrou do rosto da mãe.

O desaparecimento simultâneo do vovô Madala e da Elsinha deu azo a desencontrados comentários e muitas interrogações. A mãe Hassina respondia que o marido e a filha haviam-se deslocado a Porto Amélia de urgência, para tratar de assuntos ligados à família que ele lá deixara: “…ele já não vê a família há muito anos e há problemas de heranças que tem de resolver. Daí a urgência na viagem e a demora lá na terra…”.

Três anos passaram depois do desaparecimento do marido e da filha da Hassina”.

“ Três anos sem ninguém saber o que aconteceu? Essa mulher teve sorte!”, admirou-se a Julia que, até àquele ponto do relato, mantivera-se silenciosa e espantada com o dramatismo da narração.

“Sim, três anos sem se saber ao certo onde eles estavam. O problema caira já no esquecimento. A vizinhança passou a ter outras preocupações e desviara a atenção para questões mais prementes: “…como ganhar o pão-nosso-de-cada-dia?…como alimentar e pagar a escola para estas crianças todas que não param de nascer?…”. Um segredo como este não fica assim por toda a vida. Alguma coisa tinha de acontecer para revelar a verdade.

Aquele homem andara pelas lojas dos indianos no Xipamanine, desde o Centro Associativo, até ao Zundap, a perguntar se conheciam um velho chamado  Madala, ou assim conhecido, e que trabalhava na varanda da loja dum tal Bhai. Nem foi difícil localizar o sítio. O próprio Bhai manifestou a sua grande preocupação pelo desaparecimento do alfaiate, que era seu amigo e um grande costureiro, atencioso e sempre pronto a ajudar a clientela. Mandara procurar pela esposa dele no bazar do Diamantino. Esta confirmara que o velho se deslocara para o norte, em Cabo Delgado, mas que não tardaria a regressar e que, ela própria, já estava em sérios cuidados pela demora dele e da filha.

O forasteiro ficou apreensivo com a informação:

”…o meu pai nunca pôs os pés em Porto Amélia há mais de seis anos, embora a gente se comunique por meio de cartas. Estou preocupado porque deixei de receber as cartas dele. A nossa família está desunida, cheia de confusionistas, e precisamos dele para resolver um problema de heranças. Os meus tios querem ficar com as nossas propriedades e só ele, que é o mais velho, é que pode resolver esse problema…”.

O Bhai desconfiou e enrugou a testa, cheio de dúvidas. “… o que você quer dizer é que o seu pai nunca chegou lá em casa, em Porto Amélia?”

”Sim, não vejo o meu pai há muito tempo, e nunca saí lá da terra”.

Os dados estavam lançados. Alguma coisa a mãe Hassina estava a esconder. O Bhai e o filho do vovô Madala dirigiram-se à esquadra da polícia, no Xipamanine, para comunicar a suspeita sobre o desaparecimento daquele e da enteada.

A mãe Hassina foi surpreendida no bazar, quando apregoava a frescura das hortaliças expostas na banca. O espanto foi geral. Ninguém conseguia emudecer a surpresa: “…o que aconteceu com a Hassina?…terá roubado alguma coisa?…será que se meteu nas políticas do Mondlane?”…especulações sobrevoaram a atmosfera do bazar e alimentaram as conversas da semana.

Durante interrogatório sobre o paradeiro daqueles, pela boca da própria Hassina, veio a confissão do crime hediondo de envenenamento do marido, o vovô Madala e de sua filha, a Elsinha, por tê-los surpreendido num acto de ofensa sexual praticado na casa matrimonial.

“E onde estão os corpos?”, perguntaram os agentes da polícia.

“Vamos à minha casa. Vou mostrar onde estão”, respondeu, sem oferecer resistência.

Aquele foi um cortejo fúnebre com destino à casa onde ela habitava. Ia algemada e um contingente de testemunhas curiosas engrossava a procissão.

O ambiente da casa da Hassina era de muita tranquilidade. Nada fazia suspeitar que lá ocorrera um crime com aquela envergadura. Não havia indícios de violência, nem doutros sinais que pudessem fornecer pistas de que algo de monstruoso ali sucedera.

Quando lhe repetiram a pergunta sobre o paradeiro dos corpos ela apontou o chão por debaixo da mesa, com toda a naturalidade, sem nenhuns remorsos. Depois da morte daqueles, durante o resto daquela noite cavou um buraco muito fundo e lá depositou os cadáveres. Cobriu o chão com todos os cuidados e pôs uma esteira sobre essa campa improvisada. Meses depois, quando a notícia do desaparecimento já se esbatera na comunidade, ela própria cimentou aquele chão, como se de um mausoléu se tratasse. Convivia com as vítimas do seu crime, os mesmos que amara como marido e filha, mas que odiara como amantes.

Os coveiros da Câmara desenterraram os restos mortais, umas ossadas misturadas umas às outras, pedaços de carnes decompostas que inundaram o bairro com um cheiro nauseabundo, e meteram-nas numa urna metálica. Esta foi introduzida na carroçaria do carro funerário com alguma sem-cerimónia. Que espectáculo tão macabro!

Quando os residentes viram aquele kwerre comprido, todo pintado de um cinzento prateado, com as inscrições de “Serviços de Salubridade, Câmara Municipal de Lourenço Marques”, a rolar no areal ficaram a saber que a Hassina matara o marido e a filha para punir o crime de incesto que haviam praticado e que _ contradição das contradições_ conservara os corpos em casa porque os amava e deles não podia separar-se porque eram as únicas pessoas de família que possuía.

“ Chiça, ainda vou sonhar com isso!”, disse a Julia com um estremecimento. “E aonde é que essa Hassina está agora?”.

“ Onde é que ela poderia estar? No manicómio, claro!”, respondeu a Alicinha, a bater ao portão da casa da Melita.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

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