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Diabetes: A batalha silenciosa que muda vidas de forma abrupta 

A cidade de Inhambane, conhecida pela tranquilidade das suas praias e pelo calor humano da sua gente, esconde, por detrás de paisagens idílicas, um drama que afeta milhares de famílias: a diabetes. Uma doença silenciosa que não apenas altera vidas, mas também transforma o quotidiano de comunidades inteiras. Entre os rostos que dão vida a esta estatística está Eduardo Lichucha, um homem que, aos 44 anos, carrega na voz uma história de luta, dor e resiliência, que começou há cinco anos, quando ouviu pela primeira vez o diagnóstico que mudou para sempre a sua forma de viver.

Era um dia comum em 2020, e Eduardo, então com 39 anos, estava a gerir um pequeno bar em Inhambane. A sua vida parecia normal, mas os sinais já se faziam sentir: sede excessiva, fome constante e pernas inchadas. Contudo, como ele próprio confessa, a negligência falou mais alto. “Eu achava que era normal. Talvez por causa de uma bebedeira da noite anterior ou por estar a trabalhar muito.” Mas foi numa conversa inusitada com um cliente habitual, um médico atento aos detalhes, que Eduardo começou a entender que algo estava errado.

“Aquele cliente olhava para mim sempre que vinha ao bar. Um dia, chamou-me de lado e disse que precisávamos de conversar. Não ali, mas no hospital. Senti um frio na barriga, mas decidi ir.” Na segunda-feira, Eduardo dirigiu-se ao Hospital Provincial de Inhambane. Ao ser examinado, o diagnóstico foi devastador: estava numa fase crítica de diabetes, com uma glicemia de 27 mmol/L. O choque foi tão grande que ele mal conseguia processar as palavras do médico. “Foi como se o chão tivesse desaparecido debaixo dos meus pés.”

Os meses seguintes foram um turbilhão. Eduardo, que pesava 98 quilos na altura do diagnóstico, viu o seu corpo definhar. Em menos de três meses, perdeu quase metade do peso, chegando aos 53 quilos. “Todos olhavam para mim com espanto. As pessoas perguntavam o que se passava, mas eu não tinha forças para explicar. Sentia-me um fardo para a minha família.”

A rotina de internações tornou-se constante. Em 2021, Eduardo esteve internado 11 vezes no Hospital Provincial, lutando contra complicações que pareciam não ter fim. “Os diabéticos não podem ter feridas, mas eu tinha abscessos seguidos. Mal uma ferida fechava, outra abria. Era como um ciclo interminável. Bastava uma pequena infeção para a glicemia disparar.”

Determinado a mudar a sua realidade, Eduardo virou-se para a internet. “Comecei a pesquisar sobre diabetes, alimentação e cuidados. Foi aí que percebi que a ignorância era a minha maior inimiga.” Contudo, as mudanças não foram imediatas. Ele enfrentou erros e acertos no percurso. Uma das situações mais marcantes aconteceu quando descobriu que os alimentos integrais, que consumia religiosamente, estavam a piorar o seu estado. “Foi uma senhora que encontrei na fila do ATM que me abriu os olhos. Disse-me para pesquisar melhor sobre a alimentação para diabéticos. Quando experimentei parar com os integrais, a minha glicemia estabilizou.”

A adaptação não foi fácil, especialmente para a família. Eduardo recorda com emoção o apoio incondicional que recebeu. “Os meus filhos e a minha esposa sacrificaram os seus próprios hábitos para me apoiar. Em casa, as refeições mudaram. Foi difícil, mas necessário. Hoje, não comemos nada sem saladas e evitamos óleo comum. Foram mudanças bruscas, mas salvaram-me a vida.”

Hoje, cinco anos depois, Eduardo olha para trás com uma mistura de arrependimento e gratidão. Ele reconhece que ignorar os sinais foi um erro, mas também valoriza as lições aprendidas. “A diabetes ensinou-me a valorizar a vida e a saúde. Não espero mais até que algo piore para procurar ajuda. Aprendi que a prevenção é o melhor remédio.”

A sua história é um reflexo do desafio enfrentado por milhares de moçambicanos que vivem com diabetes. Em Inhambane, onde o apoio médico e a informação ainda são escassos, casos como o de Eduardo são uma janela para a urgência de ações concretas. A luta contra esta doença silenciosa vai além do indivíduo, exigindo o envolvimento de toda a sociedade.

Enquanto a paisagem de Inhambane continua a encantar turistas e moradores, histórias como a de Eduardo são um lembrete de que há batalhas sendo travadas longe dos olhares. A diabetes não é apenas uma condição médica; é um desafio social que demanda atenção e cuidado. Para Eduardo, a sua luta diária é um testemunho de que, mesmo diante das adversidades, é possível encontrar esperança e superação. “Hoje, sou uma pessoa diferente. Valorizo cada dia e agradeço por estar aqui para contar a minha história.”

 

Maria Helena: Uma luta de amor, perda e resiliência Contra a diabetes

Na pacata província de Inhambane, entre paisagens de coqueiros e o murmúrio constante do mar, a história de Maria Helena emerge como um retrato vivo das lutas que milhares de moçambicanos enfrentam diariamente contra um inimigo silencioso: a diabetes. Em 2023, Maria Helena perdeu o marido, vítima de complicações da doença, após nove anos de uma batalha intensa e extenuante que envolveu toda a família.

Maria Helena, uma mulher de voz doce e firme, relembra com olhos marejados os momentos que marcaram essa jornada. “Foi difícil para nós encararmos essa doença, porque tivemos que mudar completamente a nossa maneira de viver. Todos os hábitos que tínhamos, passamos a ter uma vida de alimentação integral, a medicação diária… Todos em casa tínhamos que estar comprometidos a isso, ajudando-o a controlar a doença”, conta, enquanto segura uma fotografia do marido, o sorriso dele agora apenas uma memória.

Durante quase uma década, a rotina da família girou em torno da saúde do marido. As viagens em busca de cuidados médicos tornaram-se frequentes, por vezes levando-os até Maputo e, em outras ocasiões, até à África do Sul. “As maiores dificuldades foram os tratamentos, porque, primeiro, não havia medicamentos no hospital. Tínhamos que fazer arranjos, às vezes encomendar medicamentos de fora”, explica Maria Helena, descrevendo o esforço conjunto que a família fazia para garantir que nada faltasse. Até mesmo o arroz integral, ausente nas prateleiras locais, precisava ser encomendado.

Nos últimos dias de vida do marido, a intensidade dos cuidados aumentou. A transição para a insulina trouxe novas responsabilidades para a família. “Ele tinha que tomar insulina duas vezes ao dia, e era injetada. Tínhamos que estar sempre ao lado dele para ajudar”, relembra Maria Helena, a voz carregada de dor. “Mesmo com todos os esforços, a perda dele deixou um vazio enorme na nossa vida. Até hoje, ainda não conseguimos nos adaptar.”

 

No Hospital, nem sempre há tempo para vencer 

A realidade enfrentada por Maria Helena é partilhada por muitos pacientes e famílias que procuram assistência no Hospital Provincial de Inhambane. Ali, a diabetes é mais do que uma estatística; é uma batalha diária. Médicos e enfermeiros lutam contra o tempo para salvar vidas, muitas vezes diante de pacientes que chegam em estágios avançados da doença.

David Maposa, médico internista no hospital, descreve a complexidade do cenário. “A grande maioria dos pacientes vem com complicações crônicas, como problemas de visão, coração, rins e sistema nervoso. Muitos só procuram ajuda quando a situação já é crítica”, lamenta. Para ele, um dos grandes desafios é a falta de diagnósticos precoces.

A diabetes não controlada afecta os vasos sanguíneos, comprometendo a circulação e danificando órgãos vitais. “Os pacientes entram com neuropatia, insuficiência renal e, muitas vezes, já dependem de tratamentos mais complexos. O diagnóstico precoce poderia evitar essas complicações”, reforça Maposa. Ele destaca ainda a crescente prevalência de diabetes entre jovens e crianças. “A diabetes tipo 1, associada à falta total de insulina, está a manifestar-se cada vez mais cedo. Já a tipo 2, frequentemente relacionada com obesidade e resistência à insulina, também é um problema crescente.”

Em 2024, Moçambique registou 16.644 novos casos de diabetes. Zambézia, Tete e Sofala lideram em número de diagnósticos, mas a realidade de Inhambane não é menos alarmante. Foram contabilizados 950 novos casos, somando-se a mais de 3.334 pacientes já em seguimento.

No entanto, o verdadeiro desafio está no subdiagnóstico. Segundo o *Relatório Nacional de Prevalência e Fatores de Risco para Doenças Crônicas, 92,9% da população inquirida nunca fez um teste de glicemia. “Ainda há muitos diabéticos que não sabem que têm a doença. Quanto mais expandimos o rastreio, mais casos descobrimos, mas isso não significa que sejam novos casos. São pessoas que já viviam com a doença sem saber”, explica Maposa.

A alimentação desempenha um papel crucial na prevenção e no controlo da diabetes, mas em Moçambique, a falta de informação leva a escolhas alimentares prejudiciais. “Temos alimentos locais que podem fazer a diferença, mas falta conscientização. Muitas vezes, as pessoas optam por alimentos processados ou ricos em açúcar, sem perceberem os danos que podem causar”, alerta um nutricionista do hospital, que preferiu não ser identificado.

Maria Helena confirma essa realidade. Durante os nove anos em que cuidou do marido, foi necessário ajustar drasticamente os hábitos alimentares da família. “Tivemos que aprender a cozinhar de forma diferente, a escolher os alimentos certos. Foi uma mudança para todos nós”, relata.

Para o médico internista, a mensagem é clara: prevenir é sempre melhor do que remediar. Ele encoraja todos, especialmente aqueles com histórico familiar de diabetes ou fatores de risco como obesidade e hipertensão, a fazerem check-ups regulares. “O diagnóstico precoce pode salvar vidas. E para quem já tem a doença, é fundamental seguir o tratamento e as orientações médicas”, sublinha Maposa.

Enquanto isso, Maria Helena continua a lutar para encontrar sentido na nova realidade da sua família. “A vida nunca mais foi a mesma, mas eu quero que a nossa história sirva de exemplo. A diabetes não é uma sentença de morte, mas exige cuidado, união e muita força”, conclui, com a voz embargada pela emoção.

A história de Maria Helena e de tantas outras famílias moçambicanas reflete a necessidade urgente de maior acesso a diagnósticos, medicamentos e informação. A diabetes não é apenas uma batalha pessoal; é um desafio de saúde pública que demanda atenção e ação imediata. Em Moçambique, onde tantas vidas estão em jogo, cada esforço conta.

 

O poder de escolhas que salvam vidas

No mercado central de Inhambane, entre o som dos mercados repletos de vida e as vozes das mães que negociam preços para o sustento diário, encontramos Artemisa Mazevila, uma experiente nutricionista, que abriu o coração e partilha as suas observações sobre esta batalha contra a diabetes. “As pessoas, infelizmente, estão a consumir cada vez mais alimentos processados e ricos em gorduras. Frituras,salsichas, embutidos… Tudo isso tem contribuído para o aumento dos casos de diabetes,” explica, com a voz firme, mas carregada de preocupação.

Mazevila, que já acompanhou centenas de pacientes, enfatiza que, muitas vezes, os moçambicanos escolhem alimentos processados acreditando que são mais práticos ou, paradoxalmente, mais saudáveis. “Alguns até pensam que alimentos caros são sinónimo de saúde. Mas é possível escolher opções simples, como batata-doce, mandioca e milho, que não só são acessíveis como também mais saudáveis,” destaca, gesticulando com intensidade enquanto fala.

Num dos bairros periféricos de Inhambane, onde o aroma das frituras invade as ruas estreitas, é comum encontrar pequenos estabelecimentos que vendem bolinhos de mandioca e batata frita, opções que, embora deliciosas, são um convite ao excesso de gordura. Para muitas famílias, alimentos frescos e locais, como a mandioca ou o inhame, são vistos como desatualizados, enquanto o pão integral e os cereais processados ganham espaço nas mesas, mesmo que a preços elevados.

“Existe este mito de que comer saudável é caro,” afirma Mazevila, abanando a cabeça com um sorriso quase triste. “Mas, se olharmos bem, alimentos como banana, batata-doce e mandioca, que são produzidos localmente, são mais baratos e muito mais acessíveis do que os industrializados. A questão é reeducar as pessoas para valorizarem o que têm à sua disposição.”

A nutricionista partilha ainda um dado surpreendente: muitos casos de diabetes poderiam ser prevenidos ou controlados apenas com mudanças nos hábitos alimentares. “Em casos de diagnóstico precoce, é possível controlar a diabetes sem medicamentos. Uma alimentação equilibrada e uma rotina estruturada, com refeições a cada três horas, fazem toda a diferença,” explica.

A manhã de um diabético não precisa ser um desafio. Mazevila pinta um cenário otimista ao descrever como um pequeno-almoço saudável pode ser a base para o controle da doença. “Em vez de um chá com açúcar, o paciente pode optar por chá verde ou folhas de limão. Acompanhar com carboidratos integrais, como batata-doce ou inhame, e adicionar uma salada ou verduras para equilibrar. É simples, mas transformador.”

O mesmo princípio aplica-se ao lanche. Frutas locais, batata-doce e uma dose de criatividade podem ser a combinação perfeita para manter os níveis de glicemia estáveis. Mazevila destaca ainda que a combinação de alimentos é essencial. “Não adianta comer apenas batata-doce por ser saudável. É preciso juntar verduras para criar um equilíbrio e assegurar que o açúcar no sangue se mantenha controlado,” reforça.

O apelo da nutricionista vai além dos diabéticos. Para ela, a educação alimentar deve começar cedo e incluir toda a comunidade. “Com ou sem diabetes, é importante procurar um nutricionista. Não se trata apenas de tratar doenças, mas de prevenir. A alimentação saudável é um investimento para o futuro, e não deve ser encarada como um luxo, mas sim como uma necessidade básica,” afirma com convicção.

Enquanto Artemisa Mazevila fala, é impossível não imaginar o impacto que estas mudanças poderiam ter. Em Moçambique, onde a saúde pública enfrenta desafios diários, a prevenção da diabetes não é apenas uma questão de saúde individual, mas de economia e sustentabilidade social.

À medida que os casos de diabetes continuam a crescer, a mensagem de Artemisa ecoa com urgência. A luta contra esta doença não precisa ser solitária, e pequenas mudanças podem salvar vidas. “A diabetes não é o fim. Com diagnóstico precoce, escolhas alimentares conscientes e apoio adequado, é possível viver uma vida plena,” conclui, com um brilho de esperança no olhar.

Esta é a história de milhares de moçambicanos que, todos os dias, enfrentam desafios entre o prato e a saúde. É um convite à reflexão, à ação e à solidariedade. Porque, no fim, a luta contra a diabetes é uma luta de todos nós.

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