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De Ibsen a Moçambique, “Os pilares da sociedade”

São assim os homens (…): têm medo das mulheres quando elas falam e mais medo ainda quando ficam caladas
Mia Couto

Mutumbela Gogo estreou há dias Os pilares da sociedade, obra apropriada do dramaturgo Henrik Ibsen, mesmo com o intuito de estabelecer uma relação entre a Noruega de um período e Moçambique destes dias. Tal propósito, com efeito, foi bem alcançado, afinal a peça secular tem no enredo uma actualidade que nos inquieta.

Os pilares da sociedade, à imagem do que acontece com Ibsen, na versão do Mutumbela traz consigo a estória de um empresário que investe na construção e transporte naval: Karsten Bernick (Jorge Vaz). Esse personagem ardiloso, que não mede consequências para atingir os seus objectivos, mantendo a sua reputação, reflecte a ganância que cá se tem pelo dinheiro e pelas negociatas resultantes de várias “comichões”, como diria Sérgio Vieira. Por isso, na primeira oportunidade que tem, Karsten Bernick permite que a honra de um homem leal a si, Johan (Hélder Timane), fique maculada. Na sombra de uma inocência pirata, Bernick ergue seu império de influências e tenta levar a cabo um grande projecto ferroviário. Mas porque a mentira, em alguns casos, tem mesmo pernas curtas, depois de longo tempo de ausência, Johan regressa com a irmã Lona, antiga paixão de Bernick, para lavar a imagem. É nesse regresso que se desenrola uma cadeia de amor de uns com os outros que, afinal, nem o tempo foi capaz de extinguir. Com isso, a peça introduz-nos na intimidade de uma família nobre e nos alicerces que a sustentam.

Assim, mais do que recuar no tempo, com esta obra Mutumbela projecta um país estereotipado, cuja ignorância vinca na incompetência em compreender que os pilares da sociedade não são aqueles que se julgam ser. Antes pelo contrário, são aqueles que não se quer que sejam: as mulheres e essa incessante coragem em resistir à merda, por elas acreditarem que tudo na natureza, de facto, transforma-se. Esta peça dá eco a essas famosas falas de Lavoisier, pois, num contexto de podridão, Lona (Isabel Jorge), contra todas as expectativas, consegue o improvável, tornar Bernick outra personagem. Lona é tão poderosa que Bernick teme a sua fala e o seu silêncio. No entanto, é a inteligência dela que faz a diferença. A mensagem da peça é clara a esse respeito: não se deve desistir de lutar contra as banalidades desencadeadas por endinheirados deste país. A sugestão encaixa bem nos políticos e os navios em referência na estória, como “The Indian Girl”, aproximam ainda mais a peça de Ibsen à nossa realidade.   

Contando com actores como Adelino Branquinho, Vítor Raposo, Yolanda Fumo, Angelina Chavango e, diga-se, com uma belíssima performance de Yuck Miranda, Os pilares não envereda pelo caminho da crítica opaca, forjada para difamar governantes, embora haja muita alusão implícita a eles. O foco é outro, mostrar como dirigentes são para, depois, sugerir o que a sociedade deve fazer de modo a recuperar neles o bom senso. É uma obra feita de convicções, com duas faces da moeda: o problema e a solução; uma obra que se deixa mover pelo objectivo de eliminar o conformismo nos espectadores, e, daí, começar a reconstruir o edifício de uma nação forte, assente nos verdadeiros pilares da casa que queremos. Porque a mensagem é que mais importa, o cenário, o figurino são assuntos marginais. O maior investimento vai para a complexidade da trama feita de repulsa em relação a um quotidiano cada vez mais asqueroso.

Os pilares da sociedade notifica-nos para, ao invés de atirarmos a primeira pedra contra os lobistas do país, passarmos a lutar por eles, porque libertá-los é também uma forma de devolver Moçambique aos carris do progresso.

Título: Os pilares da sociedade
Autor: Mutumbela Gogo
Teatro
Classificação: 15

 

 

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