Quando, em Novembro 1990, parti para estudar em Portugal, levava na mala, entre outras coisas, uma providencial cassete de música moçambicana. À distância de quase trinta anos, já ninguém grava música em precárias cassetes. Era uma compilação abrangente da música moçambicana e recordo que tinha músicas que tocavam na rádio e eram na altura grandes sucessos: Ghorwane, Xidimingwana, Joaquim Macuácua, Wazimbo, José Mucavele, Avelino Mondlane, Alexandre Langa, Camal Gijá, Fany Mpfumo, Madala, Manecas Tomé, Magid Mussá, Aida Humberto, Ana Juliana, Eva Mendonça, Elsa Mangue, Elvira, Mingas, Guegué, Zena Bacar ou Resiana Jaime, eu sei lá! Tinha comigo outras cassetes, de outro tipo de música, que eu ouvia com devoção na época, e levava a impressionante gravação do “FMI”, do José Mário Branco, que o Álvaro Belo Marques, de grata memória, me dera a conhecer nos meados dos anos 80. Foram anos prodigiosos para a música e nós ouvíamos ou víamos os vídeos, nos vetustos Betamax, grandes sucessos como Michael Jackson, Diana Ross, Marvin Gaye, Freddie Mercury, Madonna, Prince, Tina Turner, George Michael, Lionel Richie, A-ha, The Police, Whitney Houston, Chris Isaak, Phil Collins, Scorpions, entre tantos outros. Cultivava também a música africana: Sam Mangwana, Mbilia Bele, Tabu Ley, Franco Rocherau, Manu Dibango, Salif Keita, entre outros. Debutavam então ou começavam a ser reconhecidos: Youssou N´Dour, Angelique Kidjo, Geoffrey Oryema, King Sunny Ade, Papa Wemba, Touré Kunda, Ray Lema, por adiante. Segui, de perto, o que a rádio dava e ela exercia um forte magistério nesse domínio. A TVE tinha poucos programas de música. Mas lá passavam, nos interlúdios, sobretudo, músicas moçambicanas. Ou concertos que iam acontecendo aqui. Recordo-me do programa de Jorge Morgado, que era um fã dos Jon Bon Jovi. Eu ouvia um pouco de tudo. Não tinha preconceitos.
O Simão Anguilaze, que tinha sido meu colega na Escola de Jornalismo, entre 1987 e 1988, e o Teodósio Bule, que iria formar-se em Economia, foram meus companheiros de viagem e de aventura nos sete meses que iria expender em Chaves. Iam no avião outros bolseiros, entre eles o Gabriel e a Maria Cecília, desaparecida precocemente. Ambos foram para Vila Real. O nosso destino final era Lisboa (eu e o Anguilaze) ou o Porto (no caso do Teodósio, do Gabriel ou da Maria Cecília), mas antes tivemos de cumprir uma espécie de penitência numa escola secundária longe daquelas duas cidades.
Apesar de eu estar no 2º ano na Universidade Eduardo Mondlane, fui obrigado a fazer a 12º ano e lá colocaram-me em Chaves. Chegámos à meia-noite e abrigámo-nos na primeira pensão que encontrámos disponível. Havíamos de lá permanecer aqueles meses todos. A viagem, na altura tortuosa, levava umas 10 horas de autocarro da antiga Rodoviária Nacional. Isto depois de uma viagem de 10 horas de avião! O Eugénio Lisboa ficou escandalizado e ainda tentou intervir quando soube que eu ia passar por aquela provação lá para o fim do mundo, mas disse-lhe que não valeria a pena gastar munições com isso. Se fossem necessárias, iríamos usá-las noutras frentes. As aulas começavam em Setembro e nós já íamos com atraso: estávamos em Novembro. Fiquei, por conseguinte, sete meses em Chaves e foi um tempo de uma longa espera. Um tempo de leituras, sobretudo. Boas leituras. Recordo que li bons livros, de bons romancistas, sobretudo americanos, como John Steinbeck ou Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald ou John dos Passos, Truman Capote ou Mark Twain. Ainda com a mania de ler só americanos naquela época.
O homem da tabacaria, que ficava na praça central, emprestava-nos o jornal Público todos os dias, no final da manhã, e devolvíamos o jornal lido ao final do dia. Era de uma grande generosidade. Tenho pena, mas não me lembro do nome dele. Ficávamos, por vezes, muitas vezes, a conversar, longamente, com ele. Tinha tido um passado africano, mas não era daqueles tipos chatos que ficavam o tempo todo a assombrar-nos com os seus fantasmas de África. Nada disso. Não me queixo do tempo que ali passei, por conseguinte. Acabou sendo um tempo bastante proveitoso. Conheci muito boa gente. As pessoas em cidades pequenas têm outra atitude, dão-se connosco, somos visíveis. São capazes de ter ou desenvolver afecto com forasteiros. É o caso da D. Maria do Céu, lá da escola, que nos tratava como se fôssemos seus filhos. Havia uma canção – “Não há estrelas no Céu” – cantada pelo Rui Veloso, que era um sucesso estrondoso na época. Eu brincava com a D. Maria do Céu fazendo o trocadilho da música. Um dia fiz-lhe um poema: “Não há Céus nas Estrelas!” Ela comoveu-se com esse carinho. Aqui há muitos anos, fomos a Chaves e ainda encontrei a D. Maria do Céu.
Comíamos na escola durante o dia e à noite numa tasca familiar, numa rua oposta à nossa pensão, onde geralmente chegávamos justamente à hora do telejornal – às 8 da noite. Comíamos ali a crédito e pagávamos no fim do mês ou quando podíamos ou quando chegavam os parcos escudos da nossa bolsa. Quando vinha a bolsa, metíamos a caderneta da Caixa Geral dos Depósitos – era o tempo das cadernetas! -, sacávamos o dinheiro e pagávamos as contas, que incluíam o serviço do quarto na pensão – que eu dividia com o Bule e o Anguilaze – e outras despesas como lavandaria. Mas às vezes ficávamos meses sem bolsa. A minha namorada vivia em Madrid e, por vezes, mandava-me de lá umas valiosíssimas pesetas, que davam para equilibrar as contas, sempre periclitantes. A vida de estudante bolseiro é assim: dificílima.
Quando dava para isso, aos sábados, comprávamos o Expresso, que líamos com devoção ao largo do Rio Tâmega, numa esplanada ensolarada, à espera da hora de comer o nosso sacramental cozido à portuguesa, que aquela família acolhedora e com um vocabulário bastante ilustrado pelo vernáculo e algo inusual para nós – praticavam sem rebuços a língua portuguesa entre eles! -, diligentemente fazia aos sábados. Nunca me esqueço de um belíssimo artigo da Clara Ferreira Alves que li, num desses sábados de sol ao largo do rio, – era Primavera! -, sobre Graham Greene, quando este morreu, em Abril de 1991. Grande Graham Greene! Não teve o Nobel. Também não o deram a Jorge Luis Borges. Ou a tantos que o mereceriam como o Carlos Drummond de Andrade. Grande artigo aquele da Clara Ferreira Alves! Nunca mais me esqueci desse belo escrito da Clara. Muitos anos depois tornámo-nos amigos e eu nunca lhe contei esta história.
Foi quando aconteceu a “Tempestade no Deserto”, uma ofensiva militar, iniciada a 17 de Janeiro de 1991, liderada pelos EUA, que combinava efectivos de dezena de países aliados contra o Iraque, que invadira o Koweit em Agosto de 1990. A rendição dos iraquianos ocorreu a 28 de Fevereiro de 1991. Os nomes dos generais americanos eram comuns nas nossas conversas, fosse Norman Schwarzkopf ou Colin Powell, que merecia – não sei porquê – o nosso entusiasmo. Saddam Hussein fazia parte das nossas conversas ou Tariq Aziz, que teve aquela famosa “boutade” sobre a possibilidade da guerra numa entrevista antes da saraivada de bombas sobre Bagdad: “Fifty fifty”, dissera ele: “Se os americanos quisessem, haveria guerra. Se os americanos quiserem, haveria paz”. Víamos com devoção a CNN, a estação global, e as reportagens do Peter Arnett em Bagdad, com explosões e sirenes, atrás de si, e Bernard Shaw, outro dos nossos heróis, nas suas aparições no famoso hotel Al-Rashid. E lembro-me do Carlos Fino, que encontrei, muitíssimos anos depois, numa festa literária em Ouro Preto, e estivemos à conversa sobre esse tempo impetuoso. Conhecia-o quando era correspondente da televisão pública portuguesa em Moscovo, na turbulenta era do Gorbatchov e aquando do golpe do Ieltsin. Ocorrera antes o eclipse da Dama de Ferro, Margaret Thatcher, e de Londres chegavam notícias das lutas fratricidas para a suceder. Helmut Kohl era o homem todo-poderoso da Alemanha. A América tinha o Bush pai. Nós vivíamos a discutir política internacional e a ler os artigos sobre o que se passava naquele mundo que para nós era um mundo extraordinário. O mundo que a CNN tornara uma aldeia. A chamada aldeia global. Um tempo empolgante. Na África do Sul escrevia-se um breviário empolgante da liberdade, facto não isento de tragédia que ensombrava a empresa de Nelson Mandela. Hoje já ninguém se lembra da refrega dos Zulus e do seu chefe tribal Mangosuthu Buthelezi. Eram tempos fascinantes aqueles anos 90. Em Moçambique insinuava-se um caminho para a paz. A guerra não era apenas uma metáfora nos nossos escritos ou uma alusão idílica nos dias de hoje, de amnésia e displicência em relação à memória. Havia massacres e a sua crueldade era absurda. Como explicar que a receita para fazer um herói tenha sido tão subvertida? Adiante. África debatia-se com os seus dramas, dilemas e chagas. Passam três décadas.
Quando recolhíamos ao quarto, muitas vezes, quase sempre, eu punha, com a adesão e entusiasmo de todos, a minha cassete no meu pequeno gravador/reprodutor Sony. Ouvíamos compungidos aquelas músicas que sublimavam as nossas saudades de casa, da família, da terra. Havia, entre aquele impressivo cancioneiro, uma música que nos empolgava a todos: “Dadinha”, de Joaquim Macuácua. Creio que nos sete meses em que permaneci em Chaves devo ter ouvido, quase todos os dias, aquela música de Macuácua. Depois de Chaves, eu e o Anguilaze fomos para Lisboa, para a Universidade Nova, cursar Ciências da Comunicação; o Bule foi para o Porto, onde estudou Economia; e a minha cassete, entretanto, ter-se-á perdido não sei onde. Perdi outros precisos objectos. Dei emprestado e nunca tive de volta a cassete que tinha gravado o “FMI”, do José Mário Branco, e um exemplar do romance Mayombe, do Pepetela, que tinha marcado a minha juventude, depois de As Aventuras de Ngunga, que me fizeram sonhar, através de uma adaptação para a “Cena Aberta”, feita pelo inesquecível Né Afonso. Muitos anos depois comprei o CD Ser Solidário onde vem aquele poema vibrante “FMI”. Escusado será dizer que voltei a comprar o Mayombe. A última vez que estive com Pepetela, o que ocorreu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, também numa festa literária, em 2014, pedi-lhe que me autografasse o exemplar daquele soberbo romance que tinha um significado literário irrefutável, mas sobretudo uma carga emocional muito grande para mim. Esquecer-me-ia assim definitivamente daquelas perdas de Chaves.
Não oiço “Dadinha” há, seguramente, mais de vinte anos. A rádio, nos anos 90, dava muito essa música. Suponho que continue a dar. Mas também deixei de ouvir rádio e não tenho podido ouvir muitos dos músicos moçambicanos. Há pouco, quando me lembrei de “Dadinha”, consultei o livro Marrabentar e não encontrei nele referência alguma. O Amâncio Miguel vive hoje nos Estados Unidos. Vi que estava online e mandei-lhe um WhatsApp – são os tempos modernos. Pergunto-lhe se o Macuácua está vivo. Diz-me que já morreu. Tanto músico morto, respondo-lhe. Há quase 13 anos publiquei, na Marimbique, o livro compilado e organizado pelo Amâncio, este Marrabentar, onde se biografaram muitos músicos moçambicanos. Não está o Joaquim Macuácua. Também procurei o João Cabaço e não estava. Estão o Arão Litsure e o Hortêncio Langa. Curiosamente, não se referem a Cabaço. Duas grandes referências afectivas para mim – Macuácua e Cabaço. Tenho de desafiar o Amâncio a fazer uma edição nova deste Marrabentar, revista e acrescentada. Falta-nos bibliografia neste domínio. Ou um dicionário da música moçambicana.
Por que razão me lembrei esta noite da música “Dadinha” do Joaquim Macuácua, um músico muito famoso nos anos 90 e que me acompanhou, durante a minha penitência de sete meses, em Chaves? A razão próxima é que eu queria escrever sobre um músico moçambicano. Tenho ouvido ultimamente e recorrentemente os Ghorwane e sobretudo Pedro Langa e Roberto Chitsondzo. Gosto muito dos Ghorwane na voz do Pedro Langa. Como olvidar “U Yo Mussiya Kwini”, “Massotcha” ou “Mamba Ya Malepfu”? Sou um indefectível do Chitsondzo. Oiço-os impenitentemente desde “Akuhanha” dos anos 80 até “Mussakaze” de hoje. Um dia escrevo sobre eles. Lembrei-me de Zaida Lhongo, que era famosa nos tempos em que retornei à Pátria, meados de 90, sobretudo por “Zabelani” ou “Alfândega”, “Sibo” ou “Sifa si Dlheli”, mas não me lembrava de nenhuma narrativa que me ligasse à sua voz, embora eu adorasse Zaida, sobretudo a sua performance em palco. Recentemente vi uns vídeos seus na Internet e recordei-me da sua iconoclastia. A despeito, “Dadinha”, na dilacerada voz de Joaquim Macuácua, impôs-se-me: lembra-me um tempo de espera, em Chaves, entre finais de 90 e meados de 91, que aproveitei atirando-me à leitura de romances americanos, sobretudo os da geração perdida, lendo jornais e acompanhando empolgado a guerra do golfo e os seus efeitos na CNN e exultando com Bernard Shaw, o famoso anchor man preto, talvez o primeiro entre os mais famosos, sonhando com o dia em que aportaria na Universidade Nova de Lisboa para fazer Ciências da Comunicação, um curso que estava na moda e que me levara a Portugal, onde me atardaria 5 exultantes anos da minha vida.