No meio da euforia carnavalesca perdemos a pista ao Valgi e à Eva. Que se tenham perdido no tumulto das multidões era hipótese de pouca consistência, porque desses folguedos estavam já habituados. Com os dias de tolerância de ponto concedidos pelas autoridades o mais provável era que tenham preferido o recolhimento das suas casas para as intimidades a que tinham direito.
Nesta fase da narração poder-se-ia dizer que eles formavam um casal que dava aparências de uma oficialidade às suas relações. Depois das jornadas de trabalho, e lá para o cair da noite, o Valgi era figura obrigatória em casa da Eva. Ou o inverso sucedia; a Eva pernoitava na residência dele; aí juntos confeccionavam o jantar, ela lavava alguma roupa e de madrugada era vista a varrer o quintal antes de se dirigir para o trabalho. Era, por assim dizer, a dona daquela casa, a esposa do vizinho Hussene Valgi.
As colegas dele já não duvidavam sobre a inicialmente camuflada relação entre aqueles. A certeza sobre a mesma era uma realidade sentida e vivida todos os dias. O Valgi falava da Eva como se fosse já sua esposa, e atribuía-lhe uma profusão de adjectivos que até faziam inveja às colegas. Algumas destas encorajavam-no até a dar passos mais sérios, como tomar um compromisso oficial através do lobolo e dum pedido em casamento. A Mariazinha é que não ia nas ideias das amigas, dado que alimentava remotas esperanças de fazer dele o seu parceiro no futuro, na “vida e na morte”.
Passavam dezoito meses depois da chegada do Valgi a Lourenço Marques, naquela ocasião em veio à busca de informações sobre o paradeiro do pai. Por aqui deixou-se ficar, hipnotizado pelas luzes da cidade, cativo de paixão e embevecido pelos olhos da Eva. Uma vez e outra dirige-se aos Correios para enviar um telegrama à família em Porto Amélia. Sempre que recebe uma missiva dela, a dona Mariana lamenta o dia em que o deixou partir para a capital. Mas que outra alternativa tinha se o pai desaparecera sem dar notícias do seu estado e paradeiro. Até que chegou aquela informação sobre o seu envenenamento. Sempre que ela pergunta ao esposo “Afinal quando é que voltas para casa?”, ele redargue que “ Se eu vier embora, quem vai tomar conta da campa do papá? ”. E andavam nisto: volta, não-volto.
Algumas tias da Mariana, testadas pelas experiêncas da vida, aconselharam à sobrinha:
“ Mariana, não acreditamos que esta resistência do Hussene em regressar tenha alguma coisa a ver com a campa do pai. Anda aqui muita marosca. O melhor é tu ires lá procurá-lo e tirar a verdade do saco”.
A dona Mariana ponderou, tarefa para a qual levou o cabo de três meses antes de se decidir. E naquela manhã solarenga embarcou no costeiro “Chaimite” a caminho da cidade de Lourenço Marques.
Ela era uma passageira presente na embarcação, mas ausente nos sucessos da expedição. Não se lembra se esta foi pacífica, com as ondas a impelir o marejar vagaroso do barco, ou se alguma tempestade alvoroçou a marcha. A sua viagem era a da imaginação ao encontro do Valgi, já saudade desde o dia em que partira de Porto Amélia, sombra que depois povoou os seus sonhos, as suas insónias angustiadas e cheias de necessidades de fagos masculinos como só dele. A mãe e as tias eram umas linguarudas maldosas ao tentar impingir-lhe ideias de que “…por alguma razão ele não volta e essa pode ser uma mulher…”. Com o Valgi isso era impossível de suceder, porque não era pessoa de cometer tal baixeza. Ele que lutara por ela, enfrentara a oposição dos pais dela e dele, que não queriam aquele matrimónio por nada, naquela de que “essa família não presta” por motivos que só eles é que conheciam, antigas rivalidades que transbordaram e afectaram as relações entre os próprios filhos. Não seria ele a destruir aquela felicidade construída com sangue e lágrimas, para envolver-se com outra mulher. É claro que o Corão diz que “um homem pode ter quantas mulheres quiser, desde que as possa sustentar”. O Valgi não era desses. E isso pode jurar porque conhece-o como um poço de respeito e de virtudes, e porque a ama, e ama-a profundamente. Daria a vida para que as suspeitas das tias disso não passassem, porque se assim for, a morte iria separá-los.
Foi este o diálogo interior da Mariana com o seu companheiro, com as sombras da imaginação durante o curso da viagem que durou três dias, ao encontro com o desconhecido, até o barco atracar no cais Gorjão da cidade de Lourenço Marques.
in Caderno de Memórias, Volume II.