Quando o caso a ser julgado é o amor, os amantes podem queixar-se de tudo perante o tribunal da vida, menos da falta de avisos. Entretanto, porque os avisos estão sempre na tendência de rejeitar os acontecimentos vindouros, enquanto o desejo tem esta tendência de apelar à experimentação do inédito, este último vence amiúde o conflito entre a carne e a razão.
Elvis Presley já nos havia adiantado da força motriz do desejo sobre a sensatez das advertências, quando cantou:
“Wise men say
Only fools rush in
But I can’t help falling in love with you”
Será o amor Eros um doce e trágico fenómeno que jamais falha o seu alvo, por mais sábias advertências haja contra si? Infelizmente, a poesia de Énia Lipanga, no livro “Para enxugar as nódoas dos meus olhos” não se configura como uma resposta a esta questão, senão como um efeito melancólico do que acontece com o alvo abatido pelo próprio amor.
Destarte, nestas linhas que seguem, a mais importante preocupação a ser atendida será conhecer a verdadeira natureza do amor eros através dos mais doces e maus tratos que este deu ao sujeito poético exposto na obra em referência.
A julgar pelo belo e triste título “para enxugar as nódoas dos meus olhos”, já se pode adivinhar a natureza tampouco feliz dos versos que nos aguardam. E se a causa das nódoas dos olhos (lágrimas) tem a ver com este sentimento chamado amor, há já primeira razão para olhar-se para este sentimento com ar de tão poucos amigos. Afinal, por que algo que se diz tão belo e nobre poderia ser motivo das nódoas dos olhos de Lipanga?
Talvez, só se a nossa autora lhe tiver dado as razões para mostrar-se-lhe rude ao ponto de causar-lhe as indesejadas lágrimas. Vejamos como o sujeito lírico descreve a sua relação para com este sentimento e de que modo o amor lhe reage. Comecemos com o poema que mostra o sujeito na condição de uma ultra serva:
Como queres que eu te ame?
Diz-me
De que canto dos teus lábios queres meu beijo
Como desejas que seja
Queres-me de olhos fechados ou preferes que veja?
Quantas pinceladas da minha língua?
Como queres que eu te ame?
Que cor devo usar para tingir o teu abraço?
Diz-me como queres que eu sente?
Queres que venha calma e suave
Que seja as asas da tua ave?
Ou que te esmurre de bruços (entre sussurros)?
Não importa!
Como queres que eu te ame?
Diz-me a tua fórmula
Sim, amo-te, mas diz-me
De que forma queres.
Neste poema, é nítida a submissão do sujeito lírico assim como o seu desespero em garantir a satisfação plena da coisa amada, como se não bastasse o simples facto de nutrir o amor por ela (a coisa). Veja a maneira suplicante com que termina o mesmo poema: sim, amo-te, mas diz-me de que forma me queres.
Se estes versos não denunciam com clareza o bem-querer do sujeito lírico pela coisa amada, dêmos oportunidade a estes que seguem:
Para mim
Deus
Ter-te-ei para mim
Após dar-te oferendas ajoelhada no teu altar.
O pulso da tua firmeza
Desbravará a mata dos meus lençóis
Meu Deus preto.
Suplico beber do veneno da tua língua
E continuar sobre a sombra do teu braço
Para mim,
Bastam-me estes milagres.
Como vê, caro leitor, a veneração do sujeito poético é tão intensa ao ponto de endeusar a coisa amada, prometendo-lhe oferendas num estado de prostração.
E para encerrar quaisquer dúvidas sobre a devoção e os bons tratos providenciados pela autora, no poema sentença, pode ler-se versos de hospitalidade como “eis o meu coração, a tua última morada segura” ou versos de discernimento presentes ainda no mesmo poema “crias que aquilo fosse felicidade, desconhecia sossego e orgasmos, pensavas apenas que ter paredes era tudo”.
Em função desta boa entrega e dedicação do sujeito lírico, era suposto que houvesse uma correspondência de gratidão por parte do amor, mas tal expectativa fracassou. Ao longo do desenrolar da poesia, notamos mais descuidos e sofrimento do amor que o sujeito poético vai narrando com uma certa angústia. Num dos poemas, o sujeito poético chega a denunciar a ingratidão manifesta por este sentimento a que tanto se dedicou.
Plantio
Primeiro
Ele escolhe o pedaço de terra
Sacha
Remove as ervas daninhas
Segundo
Ele remove todas as impurezas
Rega
Fertiliza
Terceiro
Ele lança a semente
Noutra terra:
Virgem.
Com este poema e outros da mesma índole, torna-se cada vez mais clara a ingratidão e, sobretudo, a irreverência do amor. Duma natureza incontinente e inconsequente, segundo a poesia melancólica de Lipanga, o amor reitera a sua inconquistabilidade ante bons actos ou belos sacrifícios contrariando as expectativas dum coração comum. E esta irreverência do amor vai além da manifestação artística, ela se observa em várias histórias da vida real de gente que ora despende fortunas na tentativa de conquistar o amor duma donzela, sem sucesso, ora mostra virtudes qualificáveis para merecimento do amor tais como fidelidade, paciência, cordialidade, protecção e generosidade, mas que se deitam por água abaixo.
A poesia de Lipanga é mais uma confirmação de que na matéria de amor, desconhece-se a fórmula da sua conquista. Casos diversos já houve do amor que nascesse e aumentasse em relações abusivas e sem mínima reciprocidade. Por esta razão, nunca a culpa do insucesso duma relação caberá somente ao amante dedicado ou ao amado desinteressado, quando o próprio amor se afigura irreverente, incontinente e irresponsável por natureza.
Se calhar, a melhor forma de lidar com este sentimento fosse aproveitar o momento (carpe diem) sem guardar as esperanças de que o amor dure até o dia de amanhã. Deste modo, evitar-se-ia indagações do tipo “um nó eterno fez-se pó?” Ou fosse melhor enveredar esforços similares tomados pela autora no sentido de ir olvidando este sentimento que, no lugar do prazer, começa a plantar a dor da ausência. Ademais, esperar continuamente pela imprevisível carícia do amor também cansa, como diz a própria poetisa, “os deuses também cansam”. Sendo assim, inconsolável e sabendo que “as promessas têm bolor e já fedem” o sujeito lírico decide partir para longe de tal sentimento irreverente com os mais variados seguintes versos:
Passado
Regressas à casa que abandonaste
Será que do amor há resíduos?
Tentas remover os escombros que me cobrem
Queres encontrar-me, não é?
Sacodes dos lençóis sobras do nosso prazer
Recolhes do nosso quintal as tuas folhas falecidas
E vês: o meu sorriso não é mais lágrima
Sou luz que escapa das frestas das chapas da casa.
Tuas frases são este livro já lido
Tentas cavar os nossos sonhos no caniço
Mas é já impossível
Há poeiras, há chuvas
A cor não é a mesma.
Com estes versos, notam-se esforços da parte da autora em avisar que, se o amor nasce, também pode morrer e ficar enterrado no passado. Entretanto, a tarefa de olvida-lo nunca foi fácil. Qualquer distração pode ser suficiente para remeter-nos a ele, pois este tem andado em “todos os caminhos”. Para poetisa, esta omnipresença já nem lhe causa comoção, chegando a escrever que “sorrio/ não do susto,/ Já não me surpreende/ encontrar-te em todos os caminhos”.
Quase a findar a narração do seu doce, intenso e malogrado amor por Alves, o seu único, o sujeito lírico revela-nos na sua última poesia a sua apaixonante e culpada vulnerabilidade.
Apenas sinto
Tenho o cuidado de carregar as imagens com as mãos
Sem apreciar a cintilação das estrelas
Teimo em comprar sem ler o rótulo
Não consigo pensar
Sinto somente
Não existe cola para prender os meus pés no chão
A solidão é contrição
O passado é onde escolho sentir.
É deveras um poema a partir do qual se deve perguntar vale a pena entregar-se ao amor ou armar-se contra ele? Apesar da sua mesquinhez e irreverência, o amor mais profundo e mais íntimo possível só se experimenta quando se é vulnerável, na medida em que este é o sentimento que mais requer a integridade dos que amam. Armar-se contra ele significaria escolher a razão como guia rígido da vida em detrimento da emoção. E a razão tem muito de prevenir do que arriscar ao contrário do coração. Já discutia Sócrates com um sofista sobre a felicidade. O filósofo identificava a felicidade com ausência de prazeres carnais e controlo racional da vida. Por sua vez, o sofista entendia que a felicidade é a contínua satisfação dos desejos, chegando a acusar Sócrates de querer que o homem viva feito zombie na matéria do sentir.
Enfim, mais uma vez, insisto na pergunta, vale a pena sentir o prazer do amor eros e no final pedir uma toalha branca “para enxugar as nódoas dos meus olhos?” ou melhor jamais atrever-se a conhecer o doce beijo dum amor incontinente? O direito à escolha está em cada um dos leitores. Entretanto, a nossa poetisa fez a sua escolha e, hoje, passou o testemunho de quem amou e decidiu seguir adiante com doces e incómodas recordações que não a mataram, senão torna-la mais forte.
LIPANGA, Énia. Para Enxugar as Nódoas dos Meus Olhos. 1ª ed. Gala-gala Edições, 2021.