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Correntes e reencontros d’escritas

Depois de uma ligeira turbulência aeroportuária, provocada por alguns «irritantes» motivos alheios à nossa viagem, adentramos a aeronave A340-300 para o voo TP 288, com destino a Lisboa.

Melhor dizendo, Lisboa era somente local de escala pessoal pois, o nosso principal destino era a cidade da Póvoa de Varzim onde de 16 a 27 de fevereiro de 2019 decorreria a vigésima edição das Correntes D’Escritas, por demais conhecido como sendo o maior festival de celebração da palavra escrita e falada no mundo ibérico e felizmente realizado, todos os anos, num país da Comunidade dos Países Língua Portuguesa que é Portugal.

Acomodados num assento de janela conforme a nossa prévia solicitação no momento do necessário Cheik-in, como habitualmente, após a descolagem do volumoso pássaro voador, procuramos e localizamos o nosso devido exemplar da revista de bordo da companhia aérea portuguesa TAP. UP, DUBLIN, referente ao mês de fevereiro.

Desordenadamente, folheando, chegamos a rubrica reservada aos talentos portugueses no meio de mesma. Logo demos de caras com o retrato fotográfico de Afonso Reis Cabral, o mais jovem autor a vencer o Prémio LeYa que é um dos mais importantes prémios literários em Portugal. Seu título, O Meu Irmão foi o vencedor, escolhido de entre 361 originais de autores de 14 países, e o competente júri soube, como é da praxe, argumentar a escolha.

Conhecemo-nos e facilmente tornamo-nos verdadeiros amigos depois de termos, há anos, retalhado as mesas literárias no âmbito do festival literário Munda-Lusófono de outubro de 2015 em Montemor o Velho lá prós lados do distrito de Coimbra, nas margens do rio Mondego, onde ainda chegamos a fazer um recital de poesia angolana, então, deveras desconhecida para o público local. Como em quase todos, naquele festival, o objectivo era também proporcionar um mais estreito relacionamento, não só entre escritores, mas também com alguns agentes ligados à edição, circulação, comercialização e internacionalização de livros e outros bens culturais dos países lusófonos.

Afonso, independentemente da sua muito jovem idade e sem desprimor para a sua arte literária, nos foi apresentado pela «pequena grande» Lurdes Breda, como sendo trineto de Eça de Queirós. E, como quase todos os jovens, começou também pela poesia. Cobramos-lhe uma certa responsabilidade em razão de herança. Motivamos-lhe e, em resposta, disse-nos que bem sabia o que queria e que não tinha pressa pois, seus pais, com alguma paciência e boa vontade, explicavam-lhe o que era ser escritor e ser poeta.

Neste dossier, de revista de bordo que nos acompanha, como que retomando a nossa velha conversa, leio com agrado a seguinte referência. «…Para quem escrevia poesia desde os 9 anos (nasceu em 1990), fazia sentido que aos 12 começasse a traçar caminhos, tal como fez  sentido que aos 15 publicasse  o seu primeiro livro. Condensação, de poesia, e poucos anos depois fosse o mais jovem autor a ganhar o Prémio LeYa com o romance O Meu Irmão. Se o mundo literário se alvoroçou com os 24 anos de Afonso, a este surpreendeu o espanto.» E, aparentando ainda alguma ingenuidade, diz-nos ele com muita profundeza: Como já escrevia desde os nove, aquilo era, e é, a minha vida, não era novidade. Talvez um pouco por imaturidade fiquei surpreendido [com a estranheza dos outros].

Sabíamos que o seu nome constava da lista de centena e meia de convidados para a vigésima edição das Correntes D’Escritas e que havia ali mais uma oportunidade de falarmos de viva voz, tal como aconteceu e, com muito agrado. Falámos das nossas andanças e escritas literárias. Falámos da nossa poesia e ele pontualizou-nos sobre o seu mais recente romance, Pão de Açúcar.

Um romance em torno da vida vivida. Da trágica história verídica de uma transsexual sem abrigo de nome Gisberta, na verdade, agredida e assassinada. Neste, e mesmo no primeiro romance, em que a motivação parece ser uma deficiência do irmão, a realidade e a ficção entrelaçam-se objectiva e até subjectivamente em razão do acto de lapidação da palavra pois, como ele mesmo diz, escrever «…É trabalho de rotina, …isso é importante, porque ajuda a criatividade. Aquela coisa de estar a apanhar a criatividade do ar não resulta. Como a sorte, a criatividade e a inspiração também se fazem. Não há qualquer glamour».

Coincidentemente encontramo-nos também, ao longo das pouco mais de sete horas de viagem, por via desta apetrechada publicação de bordo, com a grande Lídia Jorge também convidada para as Correntes D’Escritas na cidade da Póvoa de Varzim.

Referenciando a Lídia, a revista estampou em oito soberbas e saborosas páginas, uma reportagem escrita e fotográfica, em que, com ela, podemos conhecer o telurismo do universo da sua infância. Um espaço que marcou a sua obra. Um espaço de raízes e preciosas memórias desta autora. O Algarve.

Com a Lídia havíamos estado já noutros distintos momentos de convívio literário mas, há que confessar, conhecíamo-la muito superficialmente. Tanto como pessoa, tal como, enquanto autora de uma obra literária cujo conjunto faz dela, indubitavelmente, uma das maiores ficcionistas de língua portuguesa. Em boa verdade, dela não se podia esperar outra referência pois, muito cedo começou a ler e a escrever. Curiosamente, começou criando finais para as histórias que lia e não lhe agradavam. Hoje é por muitos considerada uma «embaixadora do Algarve» no mundo, graças a representatividade da sua escrita.

Com pouco mais de uma vintena de obras literárias já traduzidas em mais de vinte línguas, tem como primeiro romance O Dia dos Prodígios publicado no já distante ano de 1980. De lá para cá, passaram-se só cerca de quarenta anitos. A Lídia internacionalizou e diversificou a sua vasta obra. Publicou contos, teatro e textos para a infância. Estuário é o seu mais recente título, publicado no corrente ano de 2019.

Lendo, apreendemos que a escritora Lídia Jorge é, e orgulha-se de ser, uma pessoa em acção. Gosta de publicitar a palavra e de tomar posição sempre e ali onde for necessário. Sente-se muito mais que uma simples escritora e não vive a margem da sociedade. É Uma convicta interventora social para quem, «os livros não têm obrigatoriamente que passar uma mensagem, servem para muitas outras coisas».

Como era previsível, nosso reencontro, não ficou só pela revista de bordo. Estendeu-se pelas Correntes adentro. Nos corredores do Cine-Teatro Garrett e na sala Poesia das Galerias Euracini onde coube-nos apresentar As Gargalhadas de Mestre Juju da neófita Goretti Pina, seguida da apresentação e lançamento da Lenga-Lenga de Lena a Hiena da autoria (da também grande) Ana Luísa Amaral e cuja intervenção de apresentação «sobrou» para Lídia, que a fez com a maior das competências.

Finalmente, o nosso reencontro adentrou também pela mesa, que em caso de numeração seria a número um, da sala de refeições do hotel Axis Vermar na Póvoa. Ali, notificamos um alto grau de conivência e afectuosa intimidade pois por lá passaram, acompanhando-nos, nas demais refeições, os mais importantes nomes da literatura do mundo ibérico, cuja citação personalizada, modestamente, dispensamos.

A suposta mesa «numero um» celebrizou-se quando num momento de alargado e já regado grande/pequeno almoço mergulhamo-nos em gargalhadas pois víamos «pessoa» mais que consagrada no mundo das letras, distraidamente, salgar em vez de açucarar… primeiro o leite e depois o café, reclamando à sério pelo esquisito sabor daqueles bebíveis, por todos os outros consumidos e confirmados, com o melhor dos sabores. Entretanto, esta fica para o nosso já projectado livro de memórias extra-literárias. 

 

                                          

                                            Odivelas, Março/2019    

 

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