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CONSTRUIR MOÇAMBIQUE

Hélder Jauana
“Je suis un intellectuel. C´est mon métier que de penser.
Je suis payé pour ça (Mamadou Diouf)”

Moçambique enfrenta desafios que colocam em causa o seu projecto de construção e consolidação de uma Nação desenvolvida, alicerçada e fundada na Unidade Nacional. O terrorismo em Cabo Delgado, a “indústria dos raptos”, a mercantilização da religião, a qualidade da educação pública, em particular no ensino primário, as bolsas de fome recorrentes, as crises e a violência pós-eleitoral permanentes, a intolerância política e o recrudescimento dos ismos que adiam qualquer nação, nomeadamente o tribalismo, regionalismo, lambebotismo.

De Cabo Delgado, assiste-se e ouvem-se relatos aterradores de destruição de infra-estruturas e, acima de tudo, de tratamento insensível e animalesco da vida humana. Os raptos paralisam a nossa economia com a fuga do país dos poucos projectos de capitalistas que o país tem. Uma das consequências é o desemprego pelo encerramento de negócios em resultado da fuga dos seus proprietários para o estrangeiro. Os relatos de um país inseguro para empresários retraem potenciais investidores de colocar o seu capital em Moçambique.

A crise no ensino público caracterizada pelo défice de jovens com competências técnicas; incapacidade de acompanhar o desenvolvimento tecnológico, através da criação de start ups, por exemplo; ausência de atitude crítica fundamentada (não baseada em leituras ligeiras da realidade) cujas consequências se começam a sentir, compromete qualquer projecto sério de construção de uma nação desenvolvida e competitiva. É fundamental ter um sistema educacional em que a liberdade é um dos seus pilares fundamentais porque a criatividade radica da liberdade.

É lugar comum que a intelligentsia de uma nação com confrontação permanente de ideias, visão de mundo e de sociedade faz uma esfera pública actuante e que propicia desenvolvimento. A história da humanidade mostra-nos que a sociedade moderna promoveu uma crescente racionalização e burocratização, resultando no desencantamento do mundo. Este desencantamento gerou os contestadores da ordem e do poder político vigente, os inconformistas, os que construíram novas ordens e produziram novos contestadores e novos defensores da ordem – os intelectuais.

O intelectual é aquele que se empenha pessoalmente na interrogação dos fenómenos e dos acontecimentos; aventura-se no seu diagnóstico e no seu prognóstico, problematiza de maneira crítica o que parece evidente e natural, mobiliza a sua consciência e a sua reflexão de humano e de cidadão, elucidando os seus pares intelectuais e, por via disso, a sociedade. Intelectual é aquele que se dedica a reflectir – ler e escrever – criticamente sobre a realidade. O único acto que constitui a força dos intelectuais é a permanente reflexão na esfera pública com produção de conhecimento sobre a realidade, isto é, ler e escrever criticamente sobre a realidade.

Ora, a reflexão e a leitura são actos solitários. Portanto, reflectir e ler exige do indivíduo momentos de solidão que o ajudam a distanciar-se do aparente, do óbvio, da tentação em assumir os factos como nos são dados – o Senso Comum – como verdade. E, como defende muito bem o historiador senegalês Mamadou Diouf, a leitura e a reflexão são posturas difíceis de ter e observar em sociedades de convivialidade onde a oralidade é constantemente colocada em causa pela conversação e onde a conversa soberana se realiza em actos (1993). Tal não significa que em África os africanos não reflictam criticamente sobre a sua realidade. Esta assumpção tão somente significa que a leitura e reflexão crítica sobre a realidade são exercícios penosos que a nossa intelligentsia se eximiu de fazer criando assim espaço para a consolidação e afirmação dos inimigos da sociedade aberta.

Uma simples observação do que se passa em Moçambique permite-nos notar que a nossa intelligentsia se esconde na esfera privada, em particular em grupos de família, amigos e colegas. É na esfera privada e restrita muitas vezes em ambientes etilizados que se emitem juízos de facto sobre as opções estratégicas tomadas pelo Governo, universidades, empresas, da ausência dos sindicalistas da esfera pública, do status quo dos partidos políticos, do desemprego entre outros. É nesses ambientes que a nossa intelligentsia grosso modo desabafa transformando esses ambientes de convivialidade do nosso muro das lamentações.

Alguns argumentam que não participam do debate na esfera pública porque o ambiente não permite. Outros que o farão quando o sistema melhorar, outros ainda que o farão quando conquistarem o título de PhD. Quando é que o ambiente vai melhorar? Quem faz o ambiente melhorar? Quando é que vão alcançar o PhD? O facto é que, salvo raras excepções conhecidas cujos nomes não preciso apresentar, a nossa intelligentsia se recusa a intervir na esfera pública.

A nossa intelligentsia prefere alinhar no que Ambroise Kom, Achille Mbembe e Kwame Appiah denominam cooptação e na mafiosa “lei da boca que come e não fala”. Não tenho dúvidas de que o país teria a ganhar se a nossa esfera pública fosse caracterizada pelo que o sociólogo Jean Copans denomina de intelectuais d´en bas. O intelectual d´en bas é aquele que reflecte criticamente sobre a realidade social, económica, política e cultural.

Como referimos acima, os males que nos afligem nomeadamente o terrorismo em Cabo Delgado, a “indústria dos raptos”, a mercantilização da palavra de Deus, o trafico de droga, a qualidade da educação pública, as bolsas de fome recorrentes, as crises e a violência pós eleitoral permanentes, a intolerância política e o recrudescimento dos ismos que adiam qualquer nação, nomeadamente o tribalismo, regionalismo, lambebotismo colocam um desafio à nossa intelligentsia. Mas, perante estes males que perigam a nossa existência como Nação e atrasam o nosso desenvolvimento assistimos, regra geral, a um silêncio e mutismo da nossa intelligentsia em quase todas as esferas. Há quase uma tese consolidada na nossa sociedade de que a nossa intelligentsia se recusa a reflectir criticamente na esfera pública. O medo de intervir na esfera pública radica do receio de ser conotado como ideologicamente desalinhado, ambicioso, antipatriota ao serviço da agenda ocidental, contra o BIG MAN, como desalinhado. Um mutismo comprometedor e, acima de tudo, cuja consequência é adiar e/ou comprometer o desenvolvimento da Nação.

O que a nossa intelligentsia não percebeu ainda é que a crise que vivemos é, antes de mais, uma crise moral e intelectual fruto de uma reação subjectiva. Ela radica da reacção que a nossa intelligentsia tem em relação à realidade política, económica, social e cultural do País. Ela radica da resposta que a nossa intelligentsia dá aos factos que enfrentamos como sociedade. A nossa crise radica da desconfiança que temos das nossas elites que consequentemente leva-nos a perder confiança em nós próprios. Como sociedade enfrentamos uma crise de referências. Parece que perdemos as nossas referências e a nossa intelligentsia, seja qual for o seu compromisso partidário, tem um discurso desfasado da realidade que os seus concidadãos vivem. A crise que vivemos não é de todo má. Ela poderia ser salutar se pudesse levar a uma retoma da consciência da realidade que abrisse caminho a uma reforma intelectual que nos permitisse encontrar respostas demasiado rápidas aos desafios que vivemos.

Uma intelligentsia que continua a reproduzir o modelo colonial retrógrado de ligação ao hinterland, que serviu para alimentar o projecto de ocupação efectiva e alimentar os cofres do Estado colonial. Uma intelligentsia que se recusa a reflectir na definição de distritos estratégicos cuja ligação entre si alavanca o desenvolvimento das províncias, criando Zonas Económicas Especiais integradas (ZEEI) com políticas e incentivos fiscais atractivos aos investidores. Nessas ZEE seria capacitada mão-de-obra para atrair os grandes grupos a deslocalizarem a sua indústria para o local. Uma intelligentsia que insiste na manutenção de taxas de juro que não permitem desenvolver um empresariado nacional que recorre à banca para investir. Uma intelligentsia que transformou a Autoridade Tributária em simples cobrador de impostos e não numa Autoridade que pense num modelo tributário que permite o desenvolvimento de Moçambique a várias velocidades. Uma intelligentsia que se recusa a fazer um exercício básico de revisitar o Plano Prospectivo Indicativo (PPI) e dele buscar os aspectos positivos do projecto de industrialização. Uma intelligentsia que ama a descontinuidade. Mas como nos desafiou Eduardo Mondlane, continuemos A Lutar por Moçambique. Um dia vamos ouvir e compreender-nos mais e aí não haverá os fantasmas que inventamos para nos combater e dividir com toda a consequência para o desenvolvimento de Moçambique.

Infelizmente, perante estas crises, as nossas elites a todos os níveis contraíram-se e menos suportam a crítica. O verdadeiro perigo que vivemos não é a crise que nos ameaça, mas os comportamentos perante os factos. O que a nossa intelligentsia se recusa a entender é a sua responsabilidade e culpa perante a crise que vivemos. A sua culpa e responsabilidade em segundo grau por não fazer nada para mudar a crise do sistema. A culpabilidade é colectiva e dela faço parte. A história julgará a inércia e o descomprometimento da nossa intelligentsia perante a crise que vivemos.

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