No cenário literário moçambicano a ausência das mulheres é evidente e factual, só que isso agrava-se ainda mais quando se trata de prosa, já nem falo de romance. Conta-se a dedo mulheres que viajam nesse estilo. Não tenciono aqui fazer uma pseudo-ideia de que, geneticamente, as mulheres não podem, mas que esse facto difícil e deprimente deve-se, mesmo, às condições sociais, económicas, culturais e, quiçá, políticas.
No dia do lançamento dessa Antologia, de mulheres em prosa, no centro cultural moçambicano alemão, uma questão momentânea me foi colocada em mãos por António Magaia, questionando sobre esse facto, de pouca adesão das mulheres na prosa (e literatura no geral). Disse-lhe que, em primeiro plano, está a educação. É preciso manter a mulher na escola e dar-lhe portas para o ensino superior, daí, tudo se desenrola, o que, de certa forma, Lucílio Manjate também explicou depois de ter feito a apresentação do livro.
Numa outra oportunidade, o escritor Eduardo Quive, também organizador desta antologia, na noite literária no Ntsindya disse que o livro é coisa de burgueses. Não poderia estar mais de acordo com alguém. Só que no lugar de burgues, eu coloco elite, para não circunscrever essa discussão ao nível económico. Também não falo das elites políticas, mas académicas, financeiras e até culturais (é mais fácil o homem ter tempo para ler um livro que uma mulher vendo o seu dia a dia).
Essa é uma forma de congratular a iniciativa da catalogus pela oficina “vez das mulheres”, e que já vêem-se os frutos. Contra toda essa pesada realidade, incentivar a literatura nas mulheres é um passo grande para o futuro principalmente se olhando isso nas palavras do Malcom X que asseguram: “If you educate a man, you educate an individual, but if you educate a woman, you educate and liberate a family.”
Como narram as mulheres?
Se hoje me questionassem a visão que me guia sobre a literatura, seria essa: caso a literatura tenha um objecto de trabalho e estudo, esse seria a forma em vez da coisa, o caminho no lugar do destino. Como o docente Manusse disse, numa das suas aulas de Introdução aos estudos literários I, na literatura, o que interessa não é o que se diz, mas como se diz. Tudo atrás exposto é explicado nessa frase: na literatura, não nos interessa a história como tal, mas como é contada essa história. Por conta disso, presumo, o próprio Lucílio Manjate abordou a necessidade dessas oficinas de escrita como há oficinas de canto, pintura, etc., pois, acima das estórias está a técnica, os recursos de linguagem e tudo mais.
Nessa senda, Mia couto uma vez disse que todo mundo conta uma história, inventada ou não; agora imagino-o a dizer que a maneira pela qual contamos as histórias é a que definem e diferenciam um bom contador de um menos bom contador de histórias. Numa análise geral, as 14 mulheres devem passar a ter isso em mente quando rabiscarem os seus textos, tanto em prosa como verso.
- Antes de nascer o sol, de Anastácia Sigodo
Esse texto não tem nada de narrativa. Caso a intenção da autora era escrever uma narrativa, então ela excluiu feio. Apesar de o martelo pegar a pensar nisso como narrativa – isso devido ao projecto literário – a Anastácia tem um tacto para a poesia. Esse texto é uma prosa poética linda, limpa e sensorial, com um sentido imagético bem construído. “O silêncio que abraça a madrugada escura do inverno”, “O coração […] consumindo tudo o que é cor dentro de mim” (p.15).
O sentido dessa poesia é um tanto escorregadio, sempre levando-nos dentro de nós mesmos.
“Antes de nascer do sol” é uma prosa poética onde o eu lírico é acossado pela insónia durante noites “frias de junho” (p. 16), onde “derrama lágrimas cristalinas” e o coração a puxa sempre para o abismo. Nessas noites ofegantes, as letras brotam sobre esse tempo que arrasta o sono e o sorriso. É um texto melancólico, de difícil digestão por conta do terror dessas madrugadas. Essas noites lembram as noites da Dulcineia no seu poema Sem título I, “em noites como essa/ rejeito a anestesia do sono/ […] e vivo, cada segundo da agonia (…)” Repiso, caso a intenção era contar uma história então seria insatisfatório. Sendo prosa poética, então é regular.
- Afinal sou eu? De Anchura Mires
Primeiro que não entendi a relação da temática e do título. “Afinal sou eu?” é uma narrativa sobre um homem que visita o pai, ou um pai que recebe a visita do filho, depois de muito tempo num período de seca de quase um ano. O texto desenrola sobre essa temática de seca, mudanças climáticas, causas e consequências. Afinal, essa era a relação, explicada no último parágrafo:
“Buanael consentiu com preocupação ao que disse Malik e ficou o pensar, por
um momento, que teria contribuído para aquela situação de falta de água e ao
mesmo tempo parecia satisfeito ao saber que ele poderia fazer algo para
resolver o problema” (p. 22)
O sobre do texto é importante, principalmente nessa época, contudo falta técnica de suspense, onde o leitor pergunta-se o que vai acontecer depois. Na, além da vinda do filho, não vejo um evento que possa ser classificado como um conflito. A seca que dura a quase não pode ser um conflito na literatura tanto como a pobreza não é um conflito. E acontece que o conflito é, para minha opinião, o coração de um conto e outras narrativas. O conflito coloca o protagonista a agir, então um bom conflito pode dar numa boa narrativa. Numa das entrevistas de Mia couto, disse que uma história começa num conflito, se há um, inventa. Apesar disso, a o texto apresenta características de uma narrativa.
Satisfatório
- A filha do Mwene de Carina Mulieca
Um texto sobre uma filha do chefe, Emma, que foi desposada por um mercador. Um história típica de Moçambique.
Há nuances interessantes a serem levantados nesse texto. O primeiro é o mistério que sobrevoa o texto sobre o não dito que devia estar lá, mas não consta. Depois da Emma ainda entrar no mar das dúvidas sobre o ‘sim’ ou ‘não’ para o pedido/exigência do mercador que queria desposá-la, segue um momento em que tudo desaparece e acordamos, com a protagonista, dum lugar vazio, escuro e sem nada, e, no fim, parece que ela está num casamento polígamo. Se teve volição ou não, o texto não responde, deixa quieto, oculto.
Essa é uma característica do texto que grita por atenção, contudo, a ausência de tais respostas para perguntas como “como” e “quando” pode frustrar o leitor. Está claro que o sonho da protagonista não passava por casar (cedo), mas de cursar direito, o que torna esse “suposto” casamento com o mercador uma história digna de lágrimas de tristeza. Contudo, a pressa da autora em chegar onde ela “ouviu chamar o (seu) nome” (p. 26), e presumo que despertou do sono, ela engoliu-nos o desenvolvimento interessante do enredo. Como é que ela reage, se luta, tenta contradizer?
Umas outra característica do texto, e quiçá da autora, é a capacidade realmente considerável de conjugar dois momentos ou tempos numa mesma narrativa, o tempo da narração (geralmente, presente) e o tempo da história (passado).
- Tempo da narração: “Quero contar-vos uma história, a minha história”. “Gostaria de contar-vos sobre mim sem que me entristeça” (p.25)
- Tempo da história: “Certo dia, apareceu um homem chamado de Mercador” (p.26). “Foi então que percebi que o som vinha doutro lado da porta” (p.27).
Regular
- O valor das promessas de Deizy Joane
Um texto que é caracterizado por discursos/conversas, e menos acção, menos movimento, menos dinâmica no enredo.
Começa o conto com a protagonista, a Dalva sendo caraterizada como quem nunca gritou, nunca chorou, e parece algo estoico, mas ela sussurra para a Missava que ele, o marido, a trai.
Choque. Conflito certeiramente criado. Contudo, depois seguem-se diálogos, e promessas de alguma acção entre mulheres, mas nenhuma acção em concreto. Como é que a Dalva reage?
Pois bem, parece que até tenta, mas se resigna. A autora teria dramatizado o encontro entre a Dalva e o marido quando esse acontece e é anunciado por Missava, que sussurrou: “Você já viu que seu marido vem aí?”
A Dalva é satisfatoriamente desenvolvida. Uma mulher com sonhos grandes e um coração inocente, pobre, casada com um marido que a traiu, as outras carecem desse desenvolvimento nesse sentido. Sendo a Dalva a protagonista, não sabe quem bem são Missava, Machaka, etc.
Bem, há momentos que estão todas num casamento polígamo, mas há outros momentos que não. Isso confunde o leitor.
O narrador, às vezes, narra na primeira pessoa, outras vezes na terceira. Por si só, não é um vicio, se feito conscientemente e com a devida mestria, mas aqui há algo coisa que passou despercebido.
Começa dizendo: “Minha mãe sempre dizia que tinha dez serviçais. […] Foi o que ela me transferiu como legado” (p.31). Depois, no desenvolvimento, ela escreve: “Nenhum vizinho viu, alguma vez, Dalva a gritar, como se tomada por uma força incansável” (p. 31).
A Dalva que é mencionada por um narrador narrando na terceira pessoa é a mesma que fala sobre a sua mãe e o legado que ela a transferiu.
Satisfatório
- Flor de Lotus de Edna Aníbal
Um conto da Hira que decide entrar num lugar proibido, entre dois reinos, e, interpelada por soldados do reino rival, ela machuca-os. Depois de um tempo, o reino rival faz uma visita ao reino do seu pai, rei Artur, e a Hira encontra-se com o soldado Felipe e ela. Os dois rivais protagonizam uma luta no palácio, e, de repente, são “teletransportados” (p.44) para a floresta e lá lutam com uma bruxa, mas o seu destino “se perde na incerteza enquanto a chama das Ignis ardia com intensidade renovada no interior” (p.45). A questão, morrem ou não morrem?
A autora apresenta um alto nível de descrição consistente. Um trabalho que nos coloca dentro da luta entre a Hira os soldados. Ouve-se o ruído das espadas quando colidem no espaço, ou o sangue jorrando, e imagina-se também a agonia dos vencidos.
Contudo, o embate esperado entre Hira e Felipe começa, mas não termina. O desfecho que não acontece entre esses dois explicaria e justificaria o conflito. Não querendo isso, a autora estende muito com conversas, e surpreende com esse final, de um incêndio causado por fogo ancestral. Há quem possa gostar dessa extensão do clímax, mas cria uma agonia quando se pergunta o que acontece entre o “artista e o boisse (boss)”.
É de sugerir que a autora diferencie claramente os dois palácios para evitar confusão.
“Se ouve ao longe o cântico da Hira que decidira pela enésima vez sair do palácio para colher flores” (p. 39)
O palácio que se refere aqui é a do pai da Hira, rei Artur. Há um outro palácio que é referido no texto sem distinção nenhuma, o que pode causar esse desentendimento: “Felipe regressara ao lado dos soldados ao palácio” (p.41)
Apesar de haver uma separação entre partes, o que ocorre nos outros contos do mesmo livro, ela não é, diria, explicativa ou diretiva, no sentido de ‘está-se aqui num outro reino’.
Num contexto que nem o nosso, falar de palácios, ancestrais com nomes latinos, “Ignis”, pode não trazer muito interesse para os leitores, principalmente num momento em que há mais sede de ouvir histórias e estórias de África, não só de africanos. Essa questão não tira o mérito do texto, é só algo a se considerar. E o lado positivo disso, é que essa estória quebra a monotonia das estórias.
Regular
- A desgraça da Tsakani de Edna Matavel
Depois de terminada a leitura vem a pergunta: “O que li?” A Edna Matavel traz-nos aqui um conto episódico, que é uma construção anti-estrutura tradicional, essa que é de Freytag.
Dentro do conto seguem-se pequenos conflito e clímaces distintos. Se por uma lado isso pode ser visto como um rutura à tradição, é importante que essa rutura seja consciente e propositada porque pode ser um vício. E nisso, não estou querendo ser conservador. A originalidade é sempre bem vinda, como o Mia Couto, às vezes, no lugar de iniciar com a exposição, ele inicia com um conflito ou clímax (dependendo das pessoas) no conto quando mabata-bata explodiu. Aliada a originalidade, deve haver criatividade.
A Edna Matavel tem um alto sentido de imaginação. Ela voa, alto, e isso pode a trair, se não parar para analisar a coerência do seu texto. Nesse conto, a desgraça da Tsakani, ela narra a história de uma mulher, a Tsakani, que teve um sonho e contou para a Lurdes (que não é bem explicita a relação das duas), depois a sua avó morre sozinha, devido a doença, suponho. Só que, depois da morte da avó, seguem-se momentos e eventos que estão longe do conflito, ou que são, no mínimo, incoerentes. Uma sucessão desses eventos. No enterro da velha, a Tsakani tem inveja da Muzaya, e a enfeitiça. Essa perde o bebé que esperava e abandona o lar. Os pais procuraram médicos tradicionais e descobriram que a feiticeira é a Tsakani. Só que a Tsakani sabendo disso, também volta ao curandeiro e vai procurar um marido bom.
Então teve um namorado que trabalhava na África de Sul, mas não fluiu porque a maldição voltou contra ela. A aldeia descobriu disso, então a expulsaram, já com o pai, Malhasseia, na aldeia.
Malhasseia retornou a Africa de sul, e a Tsakani não atravessou a fronteira clandestinamente.
Foi presa. Ficou no quartel. Foi escrava sexual. Ficou gravida e teve um filho. Fugiu pelo mato deixando o filho para trás, e foi devorada pelo leão. Termina a história.
Apesar do titulo ser bem conseguido, o conto já é uma sucessão de eventos que não tem muito a ver. Um final despachado. Bem que esse texto poderia ter terminado onde a avó morre, e ela teria tentado desmistificar o segredo do sonho, que é o que ela propôs no início, mas fugiu da sua própria proposta. Escreveu só para preencher páginas.
Insatisfatório
- A sentença de Felismina Guetsa
A Merly foi sentenciada pelo médico. À que? Parece, a nunca mais ser normal. E isso acontece num ambiente difícil, calmo, mas uma calmaria de falta de esperança, naquele pensamento de “se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”. É uma atmosfera muito melancólica, onde se toma “cooktail (deveria ser cocktail) para aliviar a amargura da vida” e o outro, que nunca é identificado, mas é o narrador, se “parece uma neblina que não dura para sempre e é esquecida pelo dia” (p.59).
Esse texto está mais para prosa poética à narrativa, apesar de haver descrição movimentos, como bem o faz Álvaro Taruma. Não há um enredo como tal. Ela descreve poeticamente as coisas e os sentimentos. Seguem-se exemplos:
“[…] a morte é temida quando nos dada um infan momento de lazer” (p.58)
Se a ideia era escrever um conto, então é mau. Se a ideia era mesmo de uma prosa poética, então é satisfatório.
- Até quando de Jade Ferreira
Essa é uma história emocionante, e que permite reflexão, principalmente, na questão do amor, e as bases que a sustentam. Atenção, dinheiro, matéria, ou palavras lindas. No lugar de dar respostas sobre isso, vamos percebendo entre linhas o que importa para a narradora. Essa história, tal e qual a “filha do Mwene”, possuem um tom confessional, só que é muito mais evidente esse é mais evidente. A autora tem uma capacidade de controlar a si mesma durante
o voo reflexivo para não abrir outras gavetas que, no fim, fazem uma salada confusa na boca do leitor, como quando inicia um parágrafo novo com “De volta ao importante…” (p.63).
Esse detalhe funciona bem como rutura, uma forma de chamar de volta para o que ela quer, de facto, contar, o essencial da narrativa.
Um mesmo homem, alvo do amor da narradora, é descrito como infeliz e, ao mesmo tempo, como quem tem “lábios carnudos, corpo de atleta (…) ficava na janela do prédio a olhar para mim, como um quadro de pintura que precisava decifrar” (p. 63). Isso não é contraditório, mas a mesma pessoa que vê essas características padrão de beleza, ainda o chama infeliz. Ao mesmo tempo que ele era bom no sexo, e a “deixava satisfeita” (p.65), “tinha partes do meu corpo que ele nunca chegava (…) ele era limitado” (p.66). Essas contradições podem trazer um debate sobre parceiros bons, suficientes ou não.
Uma narrativa sem sobressaltos que chama atenção mesmo pela confissão que se sente ao ler.
Empregar a primeira pessoa tem, naturalmente, esse efeito, mas ela o faz muito bem usando termos que retratam uma energia negativa interior no que toca a essa história dela, a narradora, e o alvo de seu amor. Uma relação, diga-se, doce e azeda, muito mais azedada porque o homem apesar dos atributos não trabalhava e era sustentada por ela para comprar “cuecas” “créditos” “passagem” e mais.
Apesar disso tudo, esse texto não é um conto.
- Entre ruas de Julieta Panguene
Um conto narrado sob o ponto de vista de uma criança, ainda ficava de “neneca”, e descreve tudo nesse sentido. A história é sobre uma criança que, porque a irmã demorou chegar da escola e, na sua casa, ninguém estava para tomar conta dela, teve de ser levada pela mãe para se reunir com outras mamanas da poupança para levantarem o seu dinheiro. Só que os coordenadores dizem que os cofres foram roubados, e a confusão começou, até que a mãe da criança teve complicações e ficou inconsciente por um tempo.
Um texto diferente, muito descritivo, bem articulado. Um conflito, um clímax, onde a criança chora descontroladamente por conta da confusão na reunião, e um desfecho. Peca por não haver acções crescentes, que criam o suspense até o momento mais intenso do texto, que é o clímax. Por conta disso, o clímax até passa despercebido. Também houve menos discursos, o que enriquece uma narrativa. Os discursos/falas são uma oportunidade de outros personagens trazerem o contraditório, outra perspectiva, para que a história não seja linear. Essa história é muito linear, não emociona. O seu momento épico é a descrição do ambiente, o som dos carros, as folhas, as árvores, as ruas movimentadas, as pessoas circulando, falando ao celular.
Um conto urbano e actual. Esse nível de descrição possibilita que caminhemos com a criança e sintamos tudo que ela sente e vê. A autora tem um olhar refinado e atencioso para o dia a dia.
Num texto narrado sob o ponto de vista duma criança, tecer reflexões filosóficas sobre vida e existência pode soar não natural, um “contra naturam”. Por exemplo, “(…) em algumas partes do mundo infelizmente a vida é assim, o drama da luta pela sobrevivência é intrigante e preocupante” (p.73). Bom, isso não invalida a narrativa, que pode ser menos realista, contudo não é o que parece com essa história. Essa parece partir de um mundo real, com características próprias da realidade, e a reflexão, também, julgo, deveria, a certo nível, ter essas características.
Regular
- A viajante de dimensões de Happy Taimo
A Happy Taimo traz um conto com moral no fim, sobre o sentido da felicidade. Ela descobriu que ela está em pequenos detalhes que passam despercebidos, não somente em coisas materiais como dinheiro e ouro. A narradora-personagem faz-nos viajar num mundo onírico, o seu mundo onírico. A Maya, mesmo num lugar desconfortável, ainda consegue adormecer e sonhar ela num lugar complemente diferente da sua realidade miserável, humilhante, difícil, fatigante e outros adjectivos dessa linhagem. Sonha com um palácio, tudo feito de ouro, lugar lindo e bonito onde a pobreza não faz barulho. Come que se farta, mas nunca fica satisfeita.
Entra num quarto e vê baú de ouro, tenta o levar para a realidade, mas não é possível, e aí aparece homem, com ares de sábio, e que fala sobre os mistérios da felicidade, até que acorda para a sua dura realidade, mas com olhos diferentes. Talvez a vida ou felicidade seja só um ponto de vista, não, Happy?
Um conto bem construído. Lembra o “Sonho de um homem ridículo” (1877) do maestro Dostoevsky, em que um homem que se intitula ridículo decide matar-se, mas no momento adormece com a arma e sonha. No sonho, ele morre, e é levado para um outro planeta paralelo a terra, só que não terra. Lá encontra uma civilização boa, genuína, sem ódio, nem inveja, e ele vai contaminar com as doenças do planeta terra como inveja, ganancia, ódio e mais. Depois dele ter destruído aquele planeta, ele acorda e decide ser um humano melhor.
Também o homem ridículo de Dostoevsky como a Maya ambos são miseráveis, sonham, acordam num lugar diferente da realidade, depois voltam e decidem mudar.
A personagem Maya é bem construída e desenvolvida. Sabe-se quem é Maya, o que faz, sua condição existencial, seu estado de espírito que, no fim, depois muda. Um personagem rico, por isso redondo. Na narrativa aparece um outro personagem que a contraria. E mais aquele ladrão de frutas que a complica a vida.
A exposição é feita muito bem. Expõe-se o protagonista, o espaço (bairro de Mafalala), e o tempo. Ao de todo, é uma narrativa bem conseguida. Com aquela moral da história no final que pode ser um excesso nos tempos que correm, e em moçambique, ou um cliché.
Bom
- A Marca do arrependimento de Fernanda Hermano
A Fernanda conta-nos a história da Arminda que, casada com Adalima, homem descrito como trabalhador, vive sufocada e entediada. Conhece o John, que montaria tijoleiras na casa da Arminda, acabou conquistando-a. Levada pelo tédio, quis experimentar outras coisas, e saiu com ele para uma barraca. Beberam, e acabaram na cabana, com teto estragado um chão de areia batida, e fizeram sexo, numa casa onde a cortina era saco de arroz. Depois de feito o sexo, veio a gravidez. O marido não consegue lidar com a traição e a expulsa do lar. Ela volta para casa da mãe, tem o filho, e o mata com veneno. Acossada por remorsos, ela vai entregar-se à policia, e acaba presa.
Primeiro, esse texto dialoga com o “até quando” de Jade Ferreira. A narradora-personagem no texto da Jade queria algo mais do seu namorado (em algum momento decide ou pensa em trair o mesmo para ter alguma ajuda mas despesas porque o namorado era desempregado) e a Arminda quer se sentir viva, e trai o marido não por conta de bens materiais, até porque engravidou de homem que dormia numa cabana, o John. Há aqui duas formas de ver as coisas, onde, num jeito de provocação, acaba-se tendo em conta que nunca, de facto, se satisfaz uma mulher. Ou essas Duas estórias demonstram o quão o ser humano, no geral, aqui sendo mulheres, de dois lugares diferentes, uma de Maputo e outra de Inhambane, nunca fica satisfeito. Para coisas dessa natureza, há sempre o J. Cole que diz, “[there’s] no such as a life better than yours” (in love yours, mp3), apesar dos textos não trazerem aqui uma comparação das vidas das protagonistas e outros personagens.
Segundo que a forma como esse texto termina não satisfaz o leitor, para ser bem sincero, o texto propõe um caso de traição, teria o seu clímax no confronto entre o marido e a esposa já gravida ou quando este descobre a traição. Há esse encontro, entretanto, mas não há drama, não há aqui insultos, sangue advindo dessa colisão, desse choque. Havendo, é ligeiro que depois de termos lido, ainda vamos procurar por algo que nos s dela volta sua casa, matar o filho, e entregar-se na policia não é, ao de todo, incoerente com a proposta inicial, de traição.
Pelo contrário, são eventos que advém dela, mas, nesse caso, nesse texto, apenas prolongam o texto desnecessariamente. Também, a autora poupa falas dos outros personagens, do Adalima, por exemplo, apenas nos é dito pelo narrador, mas voz própria não possui. De igual modo, a sua mãe. Qual é a reação da mãe vendo a filha voltando do lar por conta de traição?
Quando a Arminda mata o filho, a mãe se opõe ou não? A Fernanda deveria ter dado voz a essa mãe. Não ficando por aí, num caso desses, o que a sociedade diz sobre isso?
Regular
- Comandante José de Iraneta Campos
O conto é sobre um José que ascende no dia vinte de Dezembro à comandante. Torna-se um novo líder do quartel. Por conta disso há uma festança, que acaba caindo perdendo a consciência por alguns segundos. Já coronel, ele manda matar toda população de Moamba, mas um escapa, o Nabucodonosor. Esse, sem saber o mandante, vai no quartel para relatar o ataque, mas acaba morto por comandante José.
Esse texto tem dois momentos, e ainda bem que tem porque, lendo desde o início, esse fim é um pouco deslocado. Pela ordem das coisas, o protagonista é o Comandante José, mas o texto, já na parte II, foca muito no Nabucodonosor, a sua fuga, a forma como chega no quartel, descobre que o mandante, afinal, era o comandante daquele quartel e acaba assassinado por ouvir a conversa atrás da porta. Numa narrativa mais longa como novela ou romance esse não é um problema, mas o conto é uma narrativa breve.
Por exemplo, por conta dessa troca de foco, ficamos sem saber os motivos pelos quais o comandante decidiu matar toda uma comunidade. Há um motivo por trás, qual é? Só porque é mau, como é referido ainda no início da narrativa?
Quando decide enviar pessoas para matar pessoas, uma comunidade inteira, não há quem se oponha, ache isso demasiado? Porque matar uma pessoa é uma coisa, agora uma comunidade inteira. E o que ele diz às autoridades. Provavelmente, se a autora tivesse dado mais atenção às falas, certamente teria dado muito disso. A fala/discurso num texto narrativo não é uma ornamentação, é uma oportunidade para enriquecer o texto, trazer mais vozes diferentes, contrarias, contraditórias. Tal como os personagens, não são objectos lá só para ornamentar um texto.
Essa separação de foco acaba sem dar um conflito ao Comandante, mas à comunidade e ao Nabucodonosor. Parece que a estória termina e ao Comandante José nada acontece. É elevado a comandante, mata pessoas, e fim.
Satisfatório
- Da Minha vida cuido eu de Natércia Chicane
Esse é daqueles textos que se notam que a autora preocupou-se mais com o sobre e o activismo/conscientização do que propriamente com a forma, ou e a história é contada.
Caracterizada por muitas falas. A protagonista, Flôr, acorda e vai ao mercado comprar carvão. Ao comprar carvão um senhor conservador, “negro, por dentro e por fora” (p.99) — fica no ar a questão sobre o que isso possa significar — interpela-a e a insulta por seu jeito de ser, homossexual. Ela apenas ignora o senhor e vai para casa. Lá debate-se com o chefe do quarteirão, mas acabam se entendendo. Além daquele mau estar no mercado com o senhor negro por dentro e por fora, que não dá em nada, aparentemente, não há mais nada. O texto segue até o momento em que vem o chefe de quarteirão, que não dá em nada.
Há aqui falta de suspense, de querer saber o que, de facto, de grave, conflituoso, acontece à Flôr, e acima de tudo, como é que ela reage a esse mesmo evento conflituoso. Isso é que faz um conto ser um conto, não necessariamente a história que é contada, apesar dessa história ser actual. Essa história só é capaz de ser notada e elogiada por conta de agendas meramente políticas e de activismo, e não literários. Como dizia Malangatana, quando estou na oficina, não sou deputado (ou politico) sou artista.
Insatisfatório
- Corpo de vidro de Sonisa Bavá
Um texto bastante truncado, de difícil leitura, compreensão e, um leitor comum, perde o fio facilmente. É sobre uma moça, de cerca de vinte anos (ou, há quase vinte anos que não conhece alguém como o emissor canceriano, o que pode significar outra coisa), que sendo solitária e espiritual conhece um jovem, aqui tratado como emissor canceriano (apesar de, em algum momento do texto, a moça faz o papel de emissor e o jovem de receptor). Ela acaba sentindo que esse jovem canceriano tem uma 8 Por exemplo, por g dessa troca de foco, ficamos que não sente com uma outra pessoa, e é por isso que esse jovem canceriano merece ser chamado de guru espiritual e também conselheiro.
Um pré-romance que acaba, no texto, com palavras não ditas, suspiros não feitos, e os dois fazendo chamadas sem ter, parece, coragem para ir a algo solido. Continuam assim, receptor e emissor. Essa forma de identificar os personagens faz com que se perceba a distância que existe entre os dois, que, a única coisa que lhes aproxima, são as chamadas em vídeo, graças à avanços tecnológicos.
A autora usa muito esses termos que acaba mesmo dificultando essa mensagem. Pensa-se, por vezes, que é um texto sobre tecnologia avançada, e trata a interação entre os dois como se fossem chamadas interplanetárias, mas é sobre um lance, que ainda está a começar, com aquele cuidado e estranhamento típico quando tudo ainda está a iniciar, o primeiro encontro físico caracterizado pela timidez e o medo de não dizer algo a mais.
Bom
A antologia “Todas as Coisas Visíveis” é mais do que uma colectânea de textos escritos por mulheres, é um testemunho do esforço e da ousadia de narrar em um espaço que historicamente lhes foi negado, onde as condições materiais, e culturais, não propiciam essa viagem na literatura, por isso, como uma das autoras escreveu na mini bio, só o faz em tempos livres. Apesar das lacunas narrativas e técnicas apontadas, é evidente que há um pulsar criativo que merece ser incentivado e lapidado. Este exercício crítico não visa anular o mérito das autoras, que só pelo não simples facto de terem publicado já merecem aplausos.
Mas visa abrir caminhos para que, com mais oficinas, leituras e persistência, a literatura feita por mulheres ganhe o lugar de relevância que lhe é de direito no cenário moçambicano.