Aproveitando-se da ausência do Estado, das normas emanadas pelos órgãos oficiais e da sua própria ausência nas estatísticas daquele, instalou-se aqui um Estado paralelo. Os seus limites geográficos vão para além dos parques e paragens de semicolectivos, as suas fronteiras são abstratas, mas bem consolidadas e não são porosas.
Exerce-se aqui um verdadeiro poder político. Ninguém dentro do povo que constitui este Estado ousa desobedecer ou pôr em causa qualquer norma. Este governo autoproclamado, consequência do caos da inexistência de quem deveria dar protecção e fiscalização, instituiu-se para pôr ordem à sua própria (des)ordem.
Ao cair da madrugada e o prenúncio do novo amanhecer, os sons dos pássaros e os estalidos dos seus bicos e pernas, que, augurando um bom dia de nova caçada, se vão misturando às vozes e cantos melodiosos que vêm dos “chapeiros”: Xiqueleneeeee, Baixa, Baixa, Xipamanineeee, em coros e dicção afinados e perfeitos para publicitar o destino.
Em contraste, vai o desejo de ninguém chegar ao destino, pois as paradas intermédias são as mais desejadas, porque é aqui onde se encontra o verdadeiro passageiro.
O que vai até o destino final, é mercadoria, é pedra ou acompanhante do “xiguiane”. Aqui só se deseja passageiro, o fugaz, o famoso sobe e desce.
Neste território, a soberania não reside no povo. Este é apenas um mero instrumento de garantia de receita. O passageiro aqui não escolhe o seu próprio destino, é-lhe imposto.
Constituem órgãos de soberania deste Estado:
I) O chefe de Estado – o “modjeiro”;
II) O Governo (constituído por dois ministros – o cobrador e o motorista).
“Modjeiro” – figura emblemática, é o chefe de Estado, o órgão máximo, tem concentrado para si todos os poderes:
a) o poder legislativo, é ele que emana todas as normas que funcionam no território deste estado, a Assembleia da República é ele mesmo, as suas regras vinculam a todos, o motorista, o cobrador, o passageiro, todos os outros “chapas” e, por vezes, a própria Polícia Municipal. As suas normas são de cumprimento obrigatório para todos, não passam pela fiscalização prévia da inconstitucionalidade, aliás nunca são declaradas inconstitucionais, porque o modjeiro é também o próprio conselho constitucional. Ninguém entra ou sai do carro sem obedecer a estas normas.
O modjeiro detém também:
b) o poder executivo, ele é quem determina o que o cobrador e o motorista devem fazer, em que local devem estacionar, quem deve entrar e sair da viatura, infeliz quem não cair nas graças deste. Os seus critérios de selecção dependem das suas necessidades momentâneas, humor, estado de espírito e o seu nível de lucidez. Não interessa a beleza do passageiro, seu sorriso contagiante, seus atributos físicos, sua indumentária, o tamanho da sua gravata, o preço do seu cabelo, seu diploma universitário, nem é dissuasor o seu destino.
—Vou à Faculdade moço, posso entrar?
— Aqui não funciona Faculdade, está bem!? – Vai saindo assim a ordem de Estado, numa voz arrogante, com algum boçalismo à mistura, numa demarcação clara e inequívoca de quem detém o poder naquele local.
É preciso cair nas graças dos modjeiros, para embarcar em qualquer odisseia nesta nave espacial supersónica mas sem espaço interior, são levados todos à sardinhada.
Todos viram mendigos e prestam vassalagem ao chefe para conseguir um bilhete de embarque no minúsculo espaço que sobra.
É nesta figura que está também descrito c) o poder judicial e judiciário, pois é ele quem dirime qualquer litígio e contenda que ali surgir, lavrando a sentença executória, transitada em julgado, em um processo sumaríssimo, que ele próprio fez diligências de prova, é testemunha, advogado e Ministério Público.
O direito à defesa, ao contraditório e o princípio “in dubio pro réu” aqui não existem. Ele Indica o tribunal: “vai para outro chapa”, “vai queixar onde quiser”, “vai ter com o motorista”.
O modjeiro profere e executa a sentença no momento, contra todos os que desobedecerem às suas normas. Tem o poder de emanar uma providência cautelar de “embargo de carregamento novo” contra qualquer outro carro que ousar efectuar carregamento antes do tempo e fora da fila, executando ele mesmo o encerramento da porta para impossibilitar a violação do direito do legítimo transportador.
É um verdadeiro justiceiro.
O chefe deste Estado [o modjeiro] é astuto, focado e objectivo, cumpre todas as suas missões com zelo e determinação, não se distrai do objectivo. Um verdadeiro Luís XIV, num autêntico “l’Estat c’est moi”. Exerce um poder absoluto, mas não é absolutista, escolhe o sistema e o governo do dia por conveniência, quando lhe convém, é democrata:
— “Só tenho 10, cobrador.”
— “Pode entrar.”
Escolhe a teocracia às vezes, “só carrego minhas manas da igreja”, “graças a Deus mana, conseguiste entrar”.
Por vezes é um monarca, só carrega o seu clã: “vem cá entrar, meu puto”, “para onde vais, tia Anabela?”, “hei, esse lugar reservei para a minha mãe, aí ninguém senta”.
Quando lhe é conveniente, é um oligarca… “Ei, bro, vais para onde? ah entra, meu babo” “não paga nada, mais logo chutas um bond para mim”, “teu chapa está onde babo?” “não jobas hoje?”.
Por vezes, é um tirano e déspota: “desce lá! Apanha táxi, aqui não vais subir”.
A ascensão do modjeiro ao poder foi minuciosa e calculada como a de qualquer ditador. Aproveitando-se da inoperância, luxúria, soberba e apatia do seu antigo patrão – [o cobrador], o modjeiro foi aos poucos caindo nas graças do grande público que consigo fazia negociatas para “furar” a fila. Foi acreditando no seu potencial de negociador e deu golpe de Estado palaciano ao cobrador, substituindo-se ele mesmo aos antigos atributos daquele, hoje tem o seu poder consolidado.
O cobrador – membro do governo, ministro das Finanças, outrora arrogante, boçal, exemplo de mau carácter, pouco apuro de glamour e higiene. Enamorado pelas belezas que transporta, decidiu dar um “upgrade” no seu “look” e estatuto, autopromoveu-se, passando ele mesmo à figura de “patrão” contratando seu subordinado. Virou um boémio, distraído pelos prazeres da vida, abandonou o leme, sentiu-se galã, era já um sedutor, um “Dom Juan”, traído pela libido, o “bon viven” Hoje golpeado pelo seu antigo empregado, agora seu chefe.
Pouco se diga desta figura, que lhe foi reduzida a extensão e dimensão do cargo “cobrador”, hoje exerce papel restrito, sobrando para ele apenas a colecta de receitas, ja pré-definidas e pré-negociadas pelo seu actual chefe (o ex-empregado), em perfeita semântica do seu nome (cobrar apenas).
O motorista – é a figura aparentemente mais calma e parca deste executivo, mas só durante a vigência das ordens do chefe modjeiro, pois, a partir do momento em que se faz a rodovia, é o piloto no cockpit do supersónico, liberta pelo escape, os gases da combustão na fuselagem. Contudo, há aqui, pelo menos, justiça social, este ministro pode-se confundir com o proletariado, é quem mais trabalha e de forma justa, o que mais ordenado recebe. Tem poder discricionário sobre os colegas, mas as suas ordens podem encontrar oposição por parte do modjeiro, quando este as julgar ilegais e furtar-se ao cumprimento. Este é o ministério dos transportes por excelência.
Este é um Estado, montado longe dos holofotes e escrutínio dos que ao conforto das suas viaturas se locomovem, não sentem o ar empoeirado que vitima os que àqueles parques se fazem para nutrir a sua necessidade obrigatória e diária de mobilidade. Aquele não é um caos, é um verdadeiro estado organizado, onde as normas são cumpridas na íntegra e a presença de ordem após o caos é materialmente sentida.
O modjeiro tomou de assalto aquele território para o organizar à sua imagem, está no pleno exercício de uma cidadania activa.
Não é nenhum Estado paralelo, aquele é o verdadeiro Estado!