Por: Manuel Mutimucuio
Não dava para acreditar que em todos anos de serviço na companhia esta era a primeira vez que punha os pés na vila da Gorongosa. Tudo que sabia do lugar era de relatos e de sua própria imaginação. Já no local, não dava para determinar se gostava ou desgostava, mas era incontestável que se tratava de uma terra de muita fartura. Sem mesmo se aventurar fora da via principal, tinha visto vários sinais de mineração artesanal, filas intermináveis de cereais expostos ao sol no leito da estrada e muita fruta que sem a pressão da escassez ou do mercado, estava perpetuamente votada a repetir o ciclo biológico.
Entretanto, algo parecia deslocado. Era impossível computar como uma vila com tantas oportunidades para fazer riqueza estava às moscas. Achou por bem perguntar a uma das poucas almas à vista, onde é que estava toda a gente.
“Saiu hipopótamo!”. Olhou para a estatura física do seu interlocutor e ficou ainda mais perplexo. Devia também desaparecer ou seguir o exemplo do rapaz enfezado que parecia imperturbado diante do perigo iminente.
“As pessoas foram arranjar caril”. Veio, finalmente, a resposta que punha tudo nos eixos. Quanto mais sabia da Gorongosa, mais compreendia a razão por que as guerras do passado, do presente e, certamente, as do futuro gostavam de ali se hospedar.
Mussa continuou a marcha e parou o carro na sombra de uma enorme figueira que servia de abrigo a um mercado que, em dias normais, devia ser um centro de vitalidade. Pelo menos, é o que denunciavam os vendedores presentes e as inúmeras bancas desocupadas. Com a vista largamente desobstruída, conseguiu ver no outro lado da estrada um restaurante construído para chamar atenção. Francamente, pelo requinte exterior e sugestões de ementa expressas em fotos e texto impressos nas paredes de vidro, podia estar em qualquer capital global. Não que soubesse algo das grandes cidades internacionais, mas ninguém podia disputar que um restaurante que servia pizza, strogonoff, byriani entre outros nomes importados de terras distantes, em sala climatizada com WiFi, assentaria como uma luva em Paris, São Paulo ou Nova Iorque. Entretanto, depois do susto em Púngue, não arriscaria mais a integridade da missão por causa dos seus apetites mundanos. Quando a fome batesse à porta, esperava poder contar com a merenda de frutas da época que foi juntando ao longo do caminho.
Telefonou para o Sr. Bila, à espera de novas ordens. Como tinha sido instruído, descreveu tudo que observara, mas o que lhe deu mais prazer em falar foram as suas conjeturas sobre o papel estratégico da Gorongosa. Entretanto, do outro lado da linha houve pedido de mais detalhes sobre a história do hipopótamo. É como se o Sr. Bila estivesse justamente à espera dessa notícia. Fez um montão de perguntas sobre as quais Mussa não fazia a mínima ideia, mas o chefe não parecia estar à espera de qualquer resposta. As perguntas eram, como se recordava de ter aprendido nos tempos de escola, retóricas.
Depois da inquisição, o único comando que fez sentido foi o de ir ter com Bucuta e Maurício. Devia conduzir de volta a sul na EN1 até à escola de Nhamissongora e de lá Bucuta e Maurício saberiam o que fazer.
Subitamente, Mussa sentiu cãibras nas pernas e nos braços. O sangue que já lhe fervia nas veias com as perguntas impossíveis do chefe, buscava agora uma válvula de escape para transbordar. “Agora devo receber ordens do Bucuta e Maurício! Ora pensei que os tipos não se podiam governar, mas afinal podem governar-me”. Furioso, Mussa ponderou se devia exigir explicações do chefe e optou pelo silêncio. Quis dar o benefício da dúvida para a possibilidade de aquele ser o procedimento operacional padrão. Imaginar que era assim também como o João, dava certo alento. Aliás, tanto quanto sabia, estava ali em substituição do autointitulado chefe João com plenos poderes. Ainda assim, com toda a boa vontade, não conseguia espantar a pulga na orelha que lhe dizia para não se perder em cogitações, pois não havia nada de complicado senão a pura falta de confiança. “Quem no gozo do seu perfeito juízo deixaria nas mãos de um estagiário o destino de uma missão que já lhe tinha custado a vida do seu operativo mais experiente?”, pensou. Para esse receio legítimo, Mussa só conhecia um remédio santo. Dar tempo ao tempo.
Tinha ouvido falar da dupla Bucuta e Maurício e quase sempre descritos como uns patetas. Sabia da sua longevidade na empresa, embora não se recordasse de alguma vez ter ouvido um comentário abonatório a seu respeito. Vê-los, finalmente, ao vivo era uma oportunidade para Mussa construir o seu próprio juízo.
Depois das saudações e outros salamaleques próprios de pessoas que se encontram pela primeira vez, deixaram de subsistir quaisquer dúvidas em Mussa sobre por que razão Bucuta e Maurício eram sempre concebidos como um ser indivisível, do género produto e embalagem. Inseparáveis, mas somente um, pelo menos à vista desarmada, realmente útil. Olhos atentos, porém, notavam que mais do que uma relação de parasitismo, havia uma simbiose perfeita. Maurício era o porta-voz, mas Bucuta tinha, de facto, o poder de veto e talvez explicasse a precedência do seu nome. Era uma dinâmica que gerava muita curiosidade, mas Mussa decidiu-se ficar pela imaginação, porquanto para o que realmente pretendia perguntar, nem o tempo era capaz de o absolver.
Já no carro, Mussa não se arreliou por estar praticamente a prestar um serviço de táxi. Estava sozinho à frente enquanto a dupla se refastelava no banco de trás. O que causava desassossego era o labirinto em que o carreiro se tornara, nem tão pouco aligeirava o temor o conhecimento de que os companheiros de viagem estavam em terreno familiar, pois todas as ocasiões em que atirou os seus olhos ao retrovisor, fora recebido por caras de poucos amigos.
Cada vez mais preocupado com a sua integridade física, Mussa tentou fazer conversa. Falou da beleza da mata, do sol que estava a minguar, da chuva que só chovia quando bem entendesse, dos buracos vorazes da EN1, do calor que fazia no inverno. Nada. Do banco de trás não recebeu sequer um simples suspiro. Para apimentar tudo, recordou-se que em Nhamissongora, Bucuta e Maurício tinham, cada um, uma catana e agora a memória traí-lhe se as deixaram na carroçaria com outra quinquilharia que empunhavam ou se as levavam consigo na cabine. Já aflito, Mussa decidiu improvisar. Parou repentinamente a viatura e desceu. Revirou a bagagem na parte traseira do veículo e de lá voltou com dois objectos que os presenteou aos companheiros de viagem.
Em perfeita harmonia, Bucuta e Maurício, cada um tirou, sabe-se lá de que entranha, um punhal e com destreza de quem tenha feito vezes sem conta, desferiram golpes limpos e precisos no seu farnel. Animado, mas ao mesmo tempo estupefacto, Mussa abrandou a marcha, como se fosse possível andar ainda mais devagar e, com o auxílio do retrovisor, assistiu em câmara lenta à demolição dos ananases que comprara para o seu almoço.
Ansiosamente à espera de um “obrigado” ou comentário melieiro equivalente, Mussa contabilizou uma vintena de minutos até que se ouvira um som do assento traseiro que não fosse de mastigação. Maurício, após receber um sinal críptico do Bucuta, ordenou que Mussa imobilizasse o veículo ao mesmo tempo que ele e a sua alma gêmea destrancavam a porta.
Sem dizerem por que paravam ou o que se seguia adiante, levaram todos os seus pertences e começaram a caminhar. Mussa, obrigado a seguir-lhes o exemplo, sem informação sobre o que era essencial levar consigo, nem tão pouco o tempo estimado da romaria, transferiu o que pôde da carroçaria para a cabine, trancou o carro e pôs-se no encalço da dupla carregando a sua mochila, saco-cama e uma tenda. Meia dúzia de passos dados, começou logo a duvidar se era mesmo necessário estar equipado. Recordou-se da imagem romântica de exploradores em capa de revista de viagens e tudo parecia uma grande falsidade. “Como iria alguém sorrir com o lastro da sua cozinha, quarto e casa de banho nos seus ombros!”
A carga não era, aparentemente, o único peso com que se devia preocupar. Com Bucuta e Maurício na dianteira e ele nas trevas em relação ao plano, era comprovadamente um seguidor e não o líder que julgava ter sido entronado quando lhe foi confiada a missão na Beira. Tentou reclamar a iniciativa e com ar de quem tinha tudo sob controlo, gritou para a dupla que já tinha galgado um bom bocado.
“Eh! Não se esqueçam de que isso é uma maratona”. Bucuta e Maurício viraram ligeiramente a cabeça, não o suficiente para reconhecer o chamamento que viera do interlocutor atrás, mas bastante para se entreolharem. Continuaram a marcha como se nada tivessem ouvido. Mussa, disposto a preservar o que lhe restava de dignidade e não acelerar o passo para os alcançar, sentiu-se encurralado. Depois de tantas voltas que deram naquele carreiro de fim de mundo, sabia que já não era dono do seu próprio destino. Engoliu o orgulho e correu como um menino ao encontro da dupla enigmática que, pelo andar da carruagem, estava mesmo no comando da missão.