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Breve olhar sobre Geração 8 de Março: Memórias Marginais

Por Teresa Manjate

 

Geração 8 de Março Memórias marginais é o título de um livro que agrega 54 textos escritos por oitomarcistas de diferentes anos, sob a coordenação de Almiro Lobo e Leandro Paul, igualmente desta geração. Os textos são sobre momentos vividos depois do célebre discurso do 1º Presidente de Moçambique, Samora Moisés Machel proferido, exactamente nesta data.

Uma das características mais salientes da situação actual no nosso País é a falta de quadros. Temos carências de quadros técnicos e científicos nos mais variados níveis e sectores […] estamos conscientes de que, sem quadros de dominar a tecnologia avançada e de abarcar a complexidade do desenvolvimento da sociedade, não é possível construir o Socialismo (Samora Machel, 1977).

Na sequência desta proposição, o discurso estatuiu que a partir daquela data, todos os estudantes que tinham concluído o 5º, 6º e 7º anos, correspondentes aos 9ª, a 10ª e a 11ª classes, actuais, estavam obrigados a interromper a sua formação escolar para fazer parte do “exército” que ia salvar a pátria, no contexto do êxodo maciço dos profissionais públicos portugueses, depois da independência nacional, em 1975. Aconteceu! Todos os estudantes interromperam os seus estudos e rumaram para o Centro 8 de Março para múltiplas “frentes”. São alguns desses actores que agora falam sobre as suas experiências, na primeira pessoa.

Na verdade, o “Chamamento da Pátria” começou antes do dia 8 de Março de 1977. A colectânea conta com textos de alguns desses colegas.

Em 1976, mesmo antes do célebre “Chamamento da Pátria”, a 8 de Março de 1977, enquanto estudava na Escola Secundária Josina Machel, fui umas das pessoas recrutadas para desempenhar cargos prioritários da jovem nação, tendo sido afectada para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma instituição nova, repleta de desafios e oportunidades. (Isaura Pinto, p. 29)

Cada um dos textos relata a experiência dos autores, os encontros e desencontros de sonhos; expectativas alcançadas ou goradas; visões partilhadas, adivinhando-se algumas fechadas a 7 chaves. É o nosso livro. O livro possível. O livro real. Faltam as histórias dos colegas que ficaram perdidos ao longo do percurso. Lembro-me do Paulo Nikitimwili, do grupo de 1977, que escrevia história como a da “Isaura” com que todos nos deliciávamos [por onde andará o nosso embrião de contista, novelista ou mesmo romancista?]; ainda o encontrei em Ribáuè, na Escola Secundária da Frelimo, ambos como professores. Andava, em tempos de folga, com calhamaços de papeis debaixo do sovaco, embrenhado, sorumbático, em matas, com ares de escritor. Depois disso, mais nada! Nunca mais tive notícias do nosso colega escritor.

Há tantas, e tantas referências a procurar e a quem pedir registo! Ficam as histórias dos colegas que nos deixaram, com muita saudade como Daniel Neto Bomba Júnior, Amália Paulo, Eusébia Mata, traquinas e rebeldes como eles próprios, nas suas causas, só para mencionar alguns, como exemplo.

Há outras por escrever como de colegas que se notabilizaram ao longo das suas carreiras profissionais, como “embaixadores” da cultura moçambicana, escritores de renome ou pertencentes a altas esferas da administração de instituições nacionais. Vamos ter que receber destes colegas os seus depoimentos. Falta ainda o registo individual ou colectivo dos colegas que pertenceram ao grupo “Rebeldes do Aquário”. As nossas memórias são estas, incompletas, inacabadas e que precisam de ser preenchidas, engordadas com mais episódios, em cruzamento de olhares.

No conjunto dos textos, 54, há marcas de vida de jovens oriundos de todas as províncias do país, inscrevendo ou registando momentos na Centro 8 de Março e fora dele, com vívidas memórias individuai e colectivas.

Lembro-me de ter passado uma noite no quarto, de ter matabichado no refeitório e de ter sido chamada a um encontro com os técnicos (“camaradas”) da Educação que estavam a organizar o Centro e a afectação dos estudantes.

[…] Disseram-me, mais tarde, que fui dada como desaparecida do Centro (“aquela estudante da moto foi-se embora assim mesmo!”) — creio que pensaram que eu não havia aguentado ali ficar nem um dia!

O encontro com a “camarada” Celina Costa foi breve: «Vais dar aulas na Escola Secundária da Frelimo, em Ribáuè» («Ribáuè????» — perguntei-me eu!) «em Nampula» («Ahh! Ribáuè ficava em Nampula!»). (Alexandra Neves)

 

Xoto Kulia: o denominador comum

Há histórias envolventes sobre O xoto kulia e as manhãs intensas. Estas referências são a tónica dominante, pois 90% dos textos fala deste treino político disciplinar (PPD).

O dia-a-dia era regido por rotinas rígidas. Acordávamos cedo, ao som de apitos, pancadas ensurdecedoras nas portas e gritos para que fôssemos rapidamente para o pátio, para o “shot-kolia” [PPD, a Preparação Político-Disciplinar].

Fiz algumas sessões do “shot-kolia”, poucas. Depois, disse ao Zé Tó que não sairia mais do quarto. Pedi-lhe que dissesse que eu estava doente.

[…]

Mas um dia, de repente, um pontapé fez a porta do quarto quase sair dos gonzos. O instrutor entrou de rompante, aos gritos. E…deparou-se com o esqueleto, de bivaque bem colocado, a “sorrir” para ele. O salto de saída do quarto foi maior do que o grito de entrada. Desapareceu dali e nunca mais voltou. (Mário Rassul, p. 48)

De uma forma geral o clima envolto neste treino desde o acordar, a marcha no campo de futebol ou nas avenidas da cidade era visto e sentido como uma agressão aos “bons costumes” das famílias donde vinham os “mancebos”. Não era para vida militar a que estavam convidados/convocados. Os treinos eram uma coisa à parte.

Manhãs corridas. De manhã muito cedo: “shot-kolia”, marcha militar. Voltas ao campo de futebol, tornado campo militar. No início, um pouco assustada com aquilo tudo. É ginástica? Não é ginástica. É treino militar? Não é treino militar. O que é, afinal? É “shot-kolia”. Ponto final. (Teresa Manjate, p. 131)

 

Das refeições

Em 1977, as refeições eram fartas e agradáveis, o que aparentemente não aconteceu nos anos seguintes, o que abespinhou os ânimos e moveu reuniões sérias com a então Ministra da Educação, a Senhora Graça Machel. Tudo apimentado com humor de passados mais de 40 anos!

A experiência do 8 de Março foi dura. No início, parecia uma travessia num deserto sem fim. Lembro-me de um episódio marcante: após a Preparação Político-Disciplinar (PPD), enquanto esperava no pelotão para entrar no refeitório, o cansaço e a fome quase me derrubaram. Vi estrelas – literalmente. Por sorte, alguém me segurou antes que caísse. Foi aí que descobri que pão simples pode ser um manjar e que chá adoçado com doce de ananás não é, afinal, tão mau assim.

Mas, se há algo que esta jornada me deu, foram as amizades. Algumas perduram até hoje, laços que resistiram ao tempo e às adversidades. (Da Silva, p. 145)

A experiência das refeições animou outros episódios com referências de Boane, com várias escalas de humor. João Martins que após a convocação para o exército e ida a Moscovo conta uma dessas experiências:

O cardápio do “Restaurante Boane” era simples. Nas catorze refeições tínhamos um compacto, que só ao provar é que se podia identificar, de tão cozido que estava. Podia ser farinha de milho, arroz ou mesmo massa. Ao fim de alguns dias já conseguíamos distinguir a composição exacta só pelo aspecto. Este compacto vinha acompanhado de peixe que, apesar de não ser carapau, era parecido tanto no aspecto como no tamanho. Cada unidade permitia servir três doses, nomeadamente o “filete” de cima, o “filete” de baixo e o terceiro contemplado tinha o privilégio de poder chupar a cabeça, o rabo e a espinha dorsal que ainda tinha uns vagos “farrapos” de carne. (João Martins, p. 135)

 

Dos debates, medos e lágrimas

Há episódios sobre camiões. Uns que subiram com empurrão dos colegas e que, o descer, se tornou pesadelo (Teresa Manjate, 131); outros caíram do camião e viram estrelas (Irene Mendes, p. 22)

Como era pequena, tinha muita dificuldade em subir aqueles camiões altíssimos. Um dia, caí e bati com a nuca no chão. Foi a primeira vez que vi estrelas; tenho quase a certeza que fiquei um tempinho inconsciente. Quando me ajudaram a levantar, lá entrei, com apoio de colegas, no altíssimo camião militar. (Irene Mendes, p. 22)

Há também relatos de cabelos cortados, rapadinhos, que causam dó, lágrimas e muita solidariedade.

Um dos episódios de que me lembro foi a ordem de “rapadela colectiva” das cabeças masculinas, precisamente quando estreou o filme “Blue Sunshine”, que, com carecas reluzentes, nos havia estimulado o terror.

Fui humilhada em público por ter caracóis que, de tão finos, eu não conseguia – nem tinha a arte – de trançar. E foi dada, em voz de comando, a ordem de os cortar tão rente quanto possível, poupada, mesmo assim, à “lâmina zero”. Pela primeira vez, reagi, entre a raiva e a revolta, e como não me era permitido verbalizar o que me saía da alma, fui arrastada pelas colegas de quarto e vizinhas (Guida, Narri, Raquel, Zulmira) para a camarata, onde desabei em lágrimas e impropérios abafados.

E adormeci ao som do violão do Álvaro Casimiro, que sabia que a música de Chico Buarque era um poderoso calmante – e o único acessível.  (Ana Melo, p. 130)

Houve ainda debates sobre “estudar, produzir, combater”, palavra de ordem na Luta de Libertação Nacional, nas zonas libertadas.  O campo de futebol deveria ou não deveria ser transformado em campo de produção? (Lobo, p.10).

Na verdade, a caminho do lançamento do livro, em Maio de 2025, vi uma horta verdejante no ex-Centro 8 de Março, outra vez Pio X, não no campo de futebol, mas num espaço aberto, bonito e visivelmente produtivo.

Em relação ao nosso livro, só temos que dizer que fizemos a nossa parte, deixamos um legado, uma herança que poderá ser lida hoje e amanhã.

Os organizadores garantem, encorpando as vozes dos co-autores que estas memória podem ser lidas em versões e-book e impressa. Os que quiserem ouvir as nossas histórias podem fazê-lo em qualquer lugar e momento. Tal foi feito a pensar também nos invisuais. Oxalá as próximas iniciativas deste género sejam como esta: iclusiva.

 

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