Moçambique continua a investir pouco na sua própria defesa, apesar de ser um país rico em recursos naturais e cada vez mais exposto a ameaças internas e externas. O alerta foi lançado de forma directa pelo antigo vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Bertolino Capetini, durante o debate sobre defesa e segurança no âmbito do Diálogo Nacional e Inclusivo. Com base na sua experiência no desenho de estratégias militares do país, o general na reserva traçou um retrato crítico do sector, apontando fragilidades estruturais, decisões estratégicas inconsistentes e uma resposta considerada insuficiente ao terrorismo em Cabo Delgado, num contexto em que a segurança, a economia e a soberania nacional continuam profundamente interligadas.
Foi no espaço do Diálogo Nacional Inclusivo, dedicado às questões de defesa e segurança, que o general na reserva Bertolino Capetini, antigo vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, voltou a falar de forma frontal sobre o terrorismo em Cabo Delgado e sobre aquilo que considera serem fragilidades estruturais profundas do Estado moçambicano em matéria de defesa nacional. Antes mesmo de entrar no dossier do norte do país, Capetini centrou a sua intervenção numa crítica directa ao baixo nível de investimento do Orçamento do Estado no sector da defesa, num país que descreve como rico em recursos naturais, mas vulnerável do ponto de vista da segurança. Para o general, a projecção de que, em 2029, a defesa possa representar cerca de um por cento do orçamento é um sinal preocupante, que compromete a capacidade do Estado de proteger o seu território e os seus cidadãos.
Usando metáforas simples, mas contundentes, Capetini comparou o país a uma casa cheia de bens, mas sem vedação, onde qualquer um pode entrar. Para o antigo responsável militar, a defesa e a economia são dois pilares inseparáveis, e a fragilidade de um compromete inevitavelmente o outro. Na sua leitura, não há investidor sério disposto a aplicar recursos num país que não transmite segurança nem previsibilidade. Referiu, nesse contexto, a retirada temporária de grandes projectos energéticos como um exemplo concreto de como a instabilidade afecta decisões estratégicas de investimento e gera custos elevados para o país.
Capetini defendeu que a consequência directa da fraca aposta financeira na defesa nacional é a utilização de meios inadequados pelas Forças de Defesa e Segurança, o que limita a capacidade de resposta do Estado perante ameaças internas e externas. Questionou escolhas feitas no passado recente, sobretudo no domínio naval e terrestre, argumentando que determinados equipamentos adquiridos não respondem às reais necessidades operacionais do país. Para ilustrar, referiu que alguns meios não têm autonomia nem alcance compatíveis com a dimensão da zona económica exclusiva moçambicana, o que fragiliza a vigilância marítima num país com extensa costa e interesses estratégicos no mar.
Com anos de envolvimento directo na definição de estratégias de defesa, o general foi mais longe ao apontar o que considera ser falta de seriedade na tomada de decisões estratégicas ao mais alto nível. Relatou episódios de encontros regionais no âmbito da cooperação em segurança, em que, segundo descreveu, Moçambique apresentou relatórios excessivamente optimistas sobre a situação interna, contrastando com informações mais duras trazidas por países vizinhos. Para Capetini, essa discrepância fragiliza a credibilidade do país e dificulta uma resposta regional eficaz ao fenómeno do terrorismo.
Ao abordar especificamente Cabo Delgado, o general na reserva afirmou que Moçambique tem reagido de forma tardia, fragmentada e excessivamente reativa ao terrorismo. Defendeu a necessidade urgente de uma estratégia clara, coerente e de longo prazo, sustentada por objectivos bem definidos, meios adequados e uma cadeia de comando funcional. Para Capetini, as Forças Armadas são uma ciência, com componentes terrestre, aérea, naval e logística que devem funcionar de forma integrada, e não como um simples ajuntamento de homens enviados para o teatro de operações sem planeamento adequado.
Na sua intervenção, criticou também a ideia recorrente de que a solução passa apenas por concentrar efectivos em Cabo Delgado, sublinhando que uma força militar eficaz depende de comando, logística, inteligência e coordenação entre níveis estratégico, operacional e táctico. Alertou que decisões tomadas sem compreensão profunda do funcionamento das Forças Armadas acabam por gerar desgaste, ineficiência e riscos acrescidos para os próprios militares no terreno.
Capetini chamou igualmente a atenção para uma dimensão que considera negligenciada: a defesa cibernética. Num contexto em que o Estado aposta cada vez mais na digitalização de serviços, incluindo a cobrança de impostos e a gestão administrativa, o general alertou para os riscos de um sistema vulnerável a ataques informáticos. Defendeu que a segurança nacional já não se limita ao território físico e que um eventual colapso digital pode paralisar o funcionamento do Estado e afectar directamente a vida dos cidadãos.
Outro ponto central da sua intervenção foi a forma como Moçambique encara o seu espaço marítimo. Para Capetini, o país tem tratado o mar com negligência, apesar da sua importância estratégica para a soberania, a economia e a segurança nacional. Defendeu a necessidade de uma autoridade marítima funcional, capaz de articular fiscalização, investigação e resposta rápida a infrações no mar. Sublinhou que outros países da região avançaram nesse domínio, enquanto Moçambique continua a debater modelos institucionais sem implementar soluções eficazes.
O general destacou ainda a importância de investir seriamente na inteligência como ferramenta central no combate ao terrorismo. Na sua análise, cortar as linhas de abastecimento, financiamento e logística dos grupos armados é tão ou mais decisivo do que a resposta militar directa. Referiu que as redes terroristas utilizam meios simples, incluindo plataformas digitais e transferências financeiras, e defendeu um reforço da capacidade nacional para monitorar e neutralizar esses fluxos.
Capetini alertou para o risco de subestimar a capacidade de adaptação dos grupos armados e deixou um aviso claro sobre a necessidade de prevenir ataques fora das zonas tradicionalmente afectadas. Na sua leitura, a segurança não pode ser tratada como um problema distante, restrito a uma província, quando as fragilidades estruturais do Estado podem ter impacto em qualquer ponto do território nacional.
Na mesma intervenção, o general na reserva abordou a questão da atribuição de nacionalidade e documentos moçambicanos a cidadãos estrangeiros, classificando a situação como um risco sério para a segurança nacional. Defendeu maior rigor nos processos de identificação e verificação, sublinhando que falhas nesse domínio podem ter consequências de longo prazo para a soberania do Estado e para o funcionamento das próprias instituições de defesa e segurança.
O encontro, realizado no âmbito do Diálogo Nacional Inclusivo, teve como objectivo recolher contributos técnicos e experiências acumuladas para alimentar o debate sobre reformas estruturais no sector da defesa e segurança. As intervenções, como a de Bertolino Capetini, trouxeram para o centro da discussão temas sensíveis, muitas vezes ausentes do debate público, mas considerados fundamentais para a estabilidade do país.
Num contexto marcado por desafios internos e regionais complexos, a mensagem deixada pelo general na reserva foi clara: sem uma aposta consistente, estratégica e sustentada na defesa, Moçambique continuará vulnerável, independentemente da riqueza dos seus recursos naturais. Para Capetini, a segurança não é um custo, mas uma condição básica para o desenvolvimento, a confiança dos investidores e a própria sobrevivência do Estado enquanto entidade soberana.
