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Bantu – um ensaio sobre a lucidez da loucura

Foto: Mariano Silva

A vida é apenas a soma bruta das nossas escolhas.
in Sina de Aruanda, Virgília Ferrão

A dança, muitas vezes, é um exercício inefável. Por isso mesmo, só sentir as linguagens manifestadas pelo corpo, portanto, em silêncio, já constitui uma espécie de confronto à razão das coisas que forçamos explicar. Talvez, por isso, os movimentos do corpo, nesse sentido performativo, são geralmente anteriores ao verbo, porque antes dos predicados que as palavras imprimem na sua ressignificação, há um objecto humano que se configura na sua imensidão.

Na noite desta quarta-feira, durante a apresentação na Sala Grande do Franco-Moçambicano, o espectáculo de dança Bantu, de Victor Hugo Pontes, foi, aparentemente, mais ou menos esse vector gerador do inexplicável, o palco onde coabitam a tentativa e a acção com as devidas reticências.

Com 70 minutos de duração, o espectáculo “desvaloriza” a inteligibilidade do discurso oral, até porque o corpo é a base (mais) comum à humanidade. Embora os universais linguísticos afirmem que em todas as línguas do mundo o Homem encontra o que necessita para exprimir emoções, sentimentos e ideias, com o corpo do Bantu, entrelaçando sete bailarinos, parece que não nos sujeitamos a precisar de dicionários ou de traduções. Pelo contrário, o espectáculo é um desafio à capacidade de o espectador construir narrativas sem recorrer às prescrições gramaticais.

Logo no início da peça, a apresentação do suspense é um investimento que silencia o auditório. Entre os efeitos sonoros e cénicos, com efeito, as feições dos intérpretes/bailarinos levam-nos a adivinhar o que se projecta no horizonte das personagens por si interpretadas, simultaneamente expectantes, intrigadas e com receio de algo a aproximar-se. Com Dinis Abudo, Dinis Duarte, João Costa, José Jalane, Maria Emília Ferreira, Marta Cardoso, Osvaldo Passirivo, os olhares insinuam desconforto e os movimentos comprovam a tímida reacção ao desconhecido. Nesse registo, todos são humanos. No entanto, quase em câmara lenta, as figuras antropomórficas, no palco, vão-se transformando num pouco de tudo, inclusive nesse insecto gigante tão bem retratado em A metamorfose, de Kafka. Desse ponto de vista, Bantu é um texto sobre as diferentes formas que o corpo humano pode adoptar diante de situações adversas e complexas. Entretanto, ao contrário de Gregor Samsa, a metamorfose gerada neste espectáculo é voluntária e colectiva.

Bantu não é uma peça com muitos adereços no palco. Geralmente, o palco é um campo aberto, a sugerir um lugar recôndito no qual o contacto com o tempo faz sentido quando se olha o passado. Assim, os bailarinos podem correr, dar acrobacias e multiplicarem-se nos seus gestos sem comprometerem a coerência das interpretações possíveis e imaginadas. Ainda assim, os poucos adereços utilizados ficam reservados no backstage, aparecendo para quebrar alguns momentos de monotonia cénica.

No expectáculo, o que não se faz com os objectos, é preenchido com o jogo de luz. A iluminação muda a perspectiva sobre o espaço e a percepção sobre as personagens. Também por isso, questionamo-nos sobre o que somos e o que poderemos ser, enquanto espécie, sem a língua que nos pode separar e unir. Quer dizer, no plano real e da peça, a língua é um elemento fundamental. Evidentemente, não do ponto de vista fonético ou fonológico, mas do ponto de vista do significante. Logo, em várias partes da peça, os artistas exibem o máximo da elasticidade da língua que possuem. Com isso ou viram bichos ou pelo menos libertam o instinto selvagem que as convenções sociais ajudam a conter.

Finalmente, mais do que lembrar uma família de línguas faladas na África subsariana ou um mecanismo cultural, Bantu parece um reflexo do Homem despido de artefactos. Trata-se aqui de um ensaio sobre a lucidez da loucura, uma antítese, claro está, que nos retira do registo sensato da nossa personalidade para ousarmos ser alternativa à nossa própria humanidade. Só com uma dose de loucura e devaneio da direcção, produção, dos artistas, do espectador e etc., o espectáculo ganha linguagens particulares, capazes de impressionar o público sem que a interpretação lógica seja uma obrigatoriedade. É também disso o que precisamos para ultrapassar as fronteiras do nosso universo, afinal, conforme nos escreve Virgília Ferrão, “A vida é apenas a soma bruta das nossas escolhas”.

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