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Assim não, senhor Presidente

Cada livro deve ser uma
pincelada num grande quadro.
-Jean Cocteau

 

O livro não tinha sido ainda apresentado ao público e muito menos decorava as estantes das livrarias, todavia, nas conversas de ocasião, já se cogitava sobre o seu conteúdo. Imaginavam-se parágrafos extensos, contundentes, atirando cocktais molotovis contra o actual presidente da “nossa república”. “Assim não, senhor Presidente”, propiciava esta expectativa, por vivermos momentos de alguma conturbação política, de algum desencanto, onde, com ou sem razão, vemos reeditados os murmúrios do povo, do cidadão moçambicano, quão povo de Israel no deserto, depois de liberto das masmorras do Faraó, no Egipto, à caminho de Canaã. Apesar de os murmúrios serem outros, em vez de se reclamar ao Moisés porque nunca mais se chega a Terra Prometida e estar-se cansados de comer manã, murmura-se porque no nosso Canaã, o leite e o mel que jorram não está a chegar para todos, enquanto alguns o desperdiçam outros apenas lhe sentem o cheiro ou, quando mais afortunados, lambem as bordas dos potes transbordantes dos que têm o domínio da manada e das colmeias. Murmura-se também porque o “Faraó” multiplicou-se, infiltrou-se, transformou-se em formigas e está a atacar o mel e o leite que jorram no chão do nosso Canaã.

Dizíamos que o livro não estava ainda nas estantes das livrarias e sobre ele existiam várias cogitações, facto bastante previsível se considerarmos a curiosidade que habitualmente antecede a apresentação duma obra deste autor, e neste caso uma curiosidade acentuada pela sugestibilidade do título: a que presidente o Ungulani se referia no seu livro? Estaria mesmo a falar do nosso Presidente da República? Porventura, estaria a dissertar sobre o Presidente duma Cooperativa de Consumo? Estaria o Ungulani a falar do Presidente de uma agremiação desportiva ou então duma Associação de Engraxadores? A expectativa manteve-se até ao lançamento do livro, até cada leitor adquirir o seu exemplar e começar a “devorá-lo”. Só depois da leitura é que se acendeu a luz e se descobriu que o livro revisitava a história deste nosso belo Moçambique que vai fazendo o seu percurso rumo a encontrar o seu melhor caminho, a encontrar o melhor de si mesmo.

O quadro narrativo que se oferece nesta obra resume o desmoronar duma expectativa e a aparente dificuldade de se construir uma outra. Ungulani deixa neste livro de se preocupar com as habilidades literárias modernaças, como diria o crítico literário Fernando Venâncio, para se assumir apenas como arauto de um tempo que ninguém deve se esquecer. Para a criação desse quadro narrativo quis a providência que se criasse uma cumplicidade entre o historiador que Ungulani é, e o escritor cujos méritos são por todos nós reconhecidos. Ambos sentiram esse apelo incontornável de revisitar a história, por um lado o escritor, com toda a largueza de voo e de ficcionar a realidade que lhe é permitido, por outro lado o historiador tentando estabelecer uma interpretação histórica que permitisse grafar uma época da nossa realidade. De modo que ambos, o escritor e o historiador, decidiram exilar-se nas terras de Marracuene, a comer o peixe grelhado do seu encantamento e a desfrutar a inefável frescura das águas do rio Incomáti enquanto preenchiam as páginas deste livro. E diga-se: não somente se inspiraram no sabor do peixe grelhado como o livro Assim não, senhor Presidente se viu abastado nas suas páginas de saborosas iguarias moçambicanas que prestáveis cozinheiros pretos colocavam à mesa nas casas do patrão colono.

“Assim não, senhor Presidente” é um livro perturbador, como aliás, se tornam perturbadoras as obras literárias que experimentam mergulhar nos meandros políticos. Ouso afirmar que no decorrer das quatro décadas que decorreram no nosso desafio de construção duma Nação, nunca uma obra foi tão contundente, tão corajosa, como esta recente obra do Ungulani. Diria, a propósito, o jornalista e escritor Daniel da Costa, que se trata de “um livro surpreendentemente cáustico, um autêntico manifesto. Livro premonitório, de um autor preocupadíssimo com o seu tempo, com o rumo dos acontecimentos em Moçambique”. Estamos, apesar dos temas controversos que aborda, perante um Ungulani mais sereno, a sua escrita deixou de ser tempestuosa, as ondas turbulentas que encontramos nos anteriores livros amainaram. Busca, agora, uma narrativa simples que se evidencia nas longas descrições como também nos significativos diálogos. Ungulani, neste seu livro, apenas se preocupa em deixar marcas dos lugares e pessoas que caracterizaram uma determinada época histórica, pois, como é sabido, a Literatura serve também a Memória, já que possui o poder de imortalizar os espaços, os tempos e as lembranças. Sentir-se-ão talvez desapontados os que esperavam encontrar neste livro de Ungulani Baka Khosa aquela narrativa fabulosa, surrealista a que nos remeteram algumas obras do autor, tais como “Orgia dos Loucos”,” Choriro” ou “Os Sobreviventes da Noite”. Creio que a escrita que agora o Ungulani nos oferece busca outros destinos, ensaia outros voos, e cada vez que o lemos fica-nos essa agradável sensação de que algo se moveu e algo sempre se transforma na sua escrita.

O livro começa descrevendo o início das coisas. A proclamação da República. A implantação do poder colectivo. A morte do eu e a criação do nós e cito: “Não havia pessoa. O nome, essa marca socialmente aceite como distintivo, como pertença, como exteriorização do ADN diferenciador, esvaziava-se no colectivo, nos grupos de vigilância, nas células de base”. Fim de citação. O que o autor pretende deixar ficar é que a partir de determinada altura as regras do jogo mudaram duma forma profunda, abalando aquilo que desde sempre vinha sendo o modus vivendi. Os discursos tornaram-se diferentes. Criaram-se novos ícones. As novas palavras de ordem tentavam fazer esquecer um passado que ainda teimava em fazer-se presente. Escreve aliás o Ungulani: “Ninguém se preocupava com o passado remoto, com os valores de antanho; a história faz-se do presente e com um passado a remontar ao tempo da vitoriosa luta de libertação nacional. Todos os bons exemplos foram colhidos nas zonas libertadas durante o tempo da guerra. Nada é valorizado fora dessas experiências. O sofrimento, a dor e a resistência dos presos políticos, a memória de centenas e centenas de patriotas que morreram e outros que resistiram às mãos dos algozes da polícia e da política do governo fascista português, foram deitados no caixote de lixo.” E aqui termina a citação.

Depois, ao longo da leitura, o desfile de acontecimentos que marcaram de forma indelével a nossa história, os nossos podres, o nosso lado mais censurável, a perseguição dos que olhavam de forma reticente o sistema político a seguir, aqueles que “a nação nascente não lhes devia pertencer”. Os campos de reeducação. Os fuzilamentos. As chicotadas. As tramas políticas onde alguns de nós, segundo Ungulani, comportavam-se como uma quizumba, animal oportunista, sempre à espreita, e que ao mínimo deslize aproveita-se do esforço alheio. Segundo o Ungulani, o país estava cheio de quizumbas, gente que não queria trabalhar, sempre à espera da melhor oportunidade para se sentir bem na vida. E ainda ao longo da leitura nos confrontamos com o início da debandada dos brancos apavorados com a proximidade do comunismo e o medo atroz do poder popular. E como não quisessem viver sob o governo de pretos, muitos começaram a emigrar para a Africa do Sul e para a Rodésia, territórios sob o domínio de governos minoritários brancos. As pontes aéreas entre Lourenço Marques e Lisboa aumentaram de número. O tráfego marítimo de retorno a pátria portuguesa aumentou. Apesar de tudo Moçambique perseguiu o caminho que havia traçado, um caminho cheio de espinhos, de derrotas e vitórias, de interrogações e incertezas. Lutava-se pela revolução.

O que também se desmoronou, segundo o autor do Assim Não, senhor Presidente, não foi somente o homem, a cidade também se deteriorou. Ungulani fala das “descoloridas varandas com ferros retorcidos, às margens da avenida, às lascas de tinta sem cor a descolarem-se das enormes paredes dos prédios precocemente envelhecidos, às grades de ferro de cor indistinta nas vivendas sem alegria, às acácias tristes e a desfalecerem, meio moribundas, nos passeios, sob o efeito mortífero da urina que os transeuntes, em total desafecto, despejavam nos troncos feitos urinóis.” O autor traz-nos, pois, uma imagem sombria dum lugar que perdeu o seu esplendor. A mensagem que se pretende deixar, penso, é que a cidade pode voltar a ser aquilo que se pretende que seja, isto é, recuperar o seu esplendor, a partir do momento que recuperemos essa maneira de ser que um dia se perdeu nos caminhos da vida. Precisamos de recuperar a nossa cidade. A sua beleza. A sua alma. A sua paisagem. Dizia, aliás, Fernando Pessoa, que “a paisagem é um estado de alma”.

Assim não, Senhor Presidente é um livro que nos remete a uma certa tristeza e amargura quando lemos, página a página, sobre os “infortúnios” que se abateram na Nação moçambicana durante uma governação que se pretendeu revolucionária. As duzentas e quatro páginas que Ungulani nos oferece quase que sufocam outras realizações de ordem social que a revolução marxista ofereceu ao seu povo. Em algum momento nos questionamos se terá sido boa a revolução e se os seus intentos terão sido alcançados. Esta é uma das linhas de debate que este livro pretende levantar e cuja resposta sairá, certamente, em cada um de nós. Mas convenhamos, o que marca os grandes momentos históricos são as coisas negativas, são elas que permanecem e se tornam marcantes. E perante esse facto nada se pode fazer. De resto, como muito bem o disse a escritora Lídia Jorge, autora do clássico livro A Costa dos Murmúrios, “não pensamos todos da mesma maneira os fenómenos sociais”. Ainda bem que é assim, porque isso possibilita que existam visões diferentes dum País ou processo histórico, afinal de contas uma moeda é necessariamente constituída pelas suas duas faces. Mas o que considero interessante neste livro é o exercício da memória, a retenção da história, exaltada por uns e negado por outros, como o filósofo alemão Hegel ao afirmar que “A História nos ensina que a História não nos ensina nada”. Ungulani, ao escrever este livro, tinha a dimensão das inúmeras questões que poderiam ser levantadas em torno do seu conteúdo, e é salutar que isso esteja a acontecer, principalmente quando essas questões giram em torno duma literatura nova, em crescendo, como a moçambicana.

Com esta obra, creio que teremos dois tipos de leitores, os que vão se sentir incomodados com a crueza desta abordagem, indignados por esta leitura despudorada sobre os ideais dum sistema que esta narrativa de Ungulani desconstrói; e, por outro lado, leitores que se sentirão recompensados e satisfeitos por as palavras e as histórias deste livro se prolongarem neles próprios e trazer duma forma singular a verdade dum tempo que também lhes pertenceu e os marcou duma forma profunda. Em suma, o “Assim não, senhor Presidente”, oferece-nos uma face da moeda sobre a nossa história na primeira governação depois da independência. Digamos que se trata de um exorcismo que traduz um acto de cidadania. Ungulani cobriu uma importante etapa da nossa história, cabe agora a todos nós termos a ousadia de incorporar no corpus literário moçambicano outras obras com reflexões capazes de traduzir os passos deste país ainda em construção.

Marcelo Panguana
Bilene, dezembro de 2023

 

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