Por: Fernanda da Lena Hermano
Há casas que tremem sem que haja terramoto; famílias que apodrecem devagar, consumidas por mistérios que ninguém decifra; e mulheres que rezam, mas cujas orações se perdem nas vozes dos mortos. Nhandayeyo (do ronga, socorro), espectáculo do grupo Kutxuvuka, é um grito cénico que confronta o espectador com um dilema: tradição ou liberdade?
Apresentada a 15 de Julho, sob direcção de Expedito Araújo, a peça ocupou o auditório do Instituto Guimarães Rosa, Cidade de Maputo, e transformou o cenário em terreiro, altar e tribunal. O espaço foi explorado com precisão, numa encenação que transfigurou o ambiente e envolveu o público numa presença que ultrapassou o concreto do palco.
A trama expõe os conflitos espirituais impostos como herança familiar. Marta (Mércia Lurdes), a protagonista, é uma mulher empurrada para um destino que não escolheu: ser curandeira. Logo, a sua fé cristã, em oposição ao legado espiritual, é tratada como heresia.
Na peça, o antagonismo entre a fé e o legado evidencia a fragmentação interior da mulher moçambicana, entre o que sente e o que lhe ordenam ser. Na lógica da tradição, o desejo individual é insignificante. No entanto, como lembra Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra, “Cada geração deve, em relativa opacidade, descobrir a sua missão”.
A actriz Mércia Lurdes encarna Marta com domínio técnico e controlo físico notável. Os espasmos, os tremores e o torpor de quem é tomada por forças interiores são executados com precisão. Sem recorrer ao exagero dispensável, a dor da personagem é representada com firmeza, como quem resiste a um sistema que lhe nega até o direito de dizer “não”. Assim, o corpo de marta torna-se palco político – uma assembleia improvisada na qual as decisões não se tomam por consenso, mas por sobrevivência.
O marido de Marta, Eusébio (Samudja Muandule), é uma figura de uma masculinidade desgastada, que exige da mulher aquilo que ele próprio não tem para oferecer. O actor que o interpreta constrói essa fragilidade com sobriedade, ou seja, a sua postura impõe, entretanto não acolhe. Eusébio espera que Marta cure os escombros do seu ego.
Nhandayeyo expõe ainda outras fracturas no seio da família. O filho mais velho casal, Jorge (Olívio Muendane), atravessa “céus e mares” à procura de um futuro que nunca se concretiza. A cada currículo rejeitado, o desemprego torna-se o seu melhor aliado.
Por outro lado, Zezito (Virgílio Licoze) é um corpo jovem sem bússola, com o sangue a ferver pelas promessas fáceis que a cidade lança. Crescendo em torno dele uma rede de vozes de jovens, vai-se afogando nos bares, inclusive “O Bar da Kely”, trocando oportunidades por noites embriagadas, confundindo liberdade com diversão. Esse trajecto não se reduz a uma fraqueza pessoal, entretanto, evidencia as fissuras que ainda permeiam a edificação das novas gerações.
A peça instiga uma reflexão sobre a necessidade de cultivar nos jovens não apenas recursos materiais, como também uma consciência de sua identidade e responsabilidade. Sem esse alicerce, as possibilidades tornam-se miragens e a liberdade uma rota sem retorno.
No núcleo familiar, tio Fernando (Salvador Mbiza), que se apresenta como homem bem-sucedido, guarda segredos. A sua filha convulsiona como se a maldição da linhagem habitasse o seu corpo. E, como sempre, os dedos apontam para Marta.
Nhandayeyo apresenta o ardil perverso que recai sobre a mulher como receptáculo das mazelas sociais, enquanto o patriarcado se mantém resguardado, inviolável nos seus pactos velados.
No plano da fé, Marta é amparada por uma pastora interpretada por Maria Matusse, presença, que lhe oferece consolo e orientação. Mas, à noite, o corpo atrai o espírito: tremores inexplicáveis, sonhos como se batinas e búzios lutassem pela mesma alma. Em orações, o céu permanece mudo. A encenação sugere, ou talvez permita entrever, um terreno onde o sagrado se dilui em ambiguidade, e o silêncio divino deixa de ser espera para se tornar protesto.
Nietzsche disse que Deus está morto. Mas, em Nhandayeyo, talvez o mais trágico seja quando Ele parece vivo e ausente – como um pai que assiste, sem reacção, ao incêndio da casa. E ainda assim exige amor.
A encenação equilibra momentos de dor com leves toques de humor, que humanizam os personagens sem sarar as feridas.
Apesar da solidez dramatúrgica e do cuidado estético evidente, entretanto, por vezes a proposta teatral é hesitante na exploração do não-dito, ou seja, vazios entre cenas onde um gesto mínimo, um olhar suspenso, poderiam traduzir o que as palavras não alcançam.
Nhandayeyo, portanto, revela, na sua essência, as tensões que ainda marcam a sociedade moçambicana, projectando luz sobre os limites ténues entre a liberdade e tradição, convidando a questionar: quantas orações ainda são interrompidas pelos gritos dos que já morreram, mas continuam a mandar nos vivos? De que forma a liberdade individual é realmente reconhecida num contexto em que o corpo e o espírito da mulher são vistos como património colectivo?