“… o que é que diferencia um romance escrito por
um africano de um romance […] produzido por um
europeu?” Brunel & Chevrel (2004)
“… se deve exigir do escritor, antes de tudo, certo
sentimento íntimo que o torne homem do seu
tempo e do seu país.” Carvalhal (1991)
Literaturas africanas e emergentes
Como ponto de partida, Noa (2008) esclarece-nos, referindo-se às literaturas africanas, que elas não escapam àquele que parece ser facto transversal da arte em África e que as mesmas vivem uma profunda interacção e contaminação do meio em que emergem. Diz, ainda, o autor supracitado, que as literaturas africanas têm conformidade conquistada e alargando os seus universo de recepção, levam, em parte, uma tradição estética assimilada do outro, traduzindo elementos de ordem linguística, estética, cultural e vivencial decorrentes da pertença de escritores a um espaço físico determinado.
Dizem Brunel & Chevrel (2004), que as literaturas emergentes africanas têm uma espécie de missão simbólica para com o seu povo. Consideram os autores, olhando para a relação entre a literatura e a sociedade, que nos interroguemos com benefício sobre a própria noção de literatura, sobre a relação que esta mantém com o envasamento da tradição, ou ainda sobre o estatuto do escritor, todavia, Carvalhal (1991) diz que se deve exigir do escritor, antes de tudo, certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país.
Para Matussse (1998), Chevrier concebe-se as literaturas africanas como um campo privilegiado para o estudo das relações entre a literatura e a sociedade. Diz o autor que o estatuto do escritor vem frequentemente ligado à ideologia de descolonização, investe de uma missão simbólica perante o seu povo.
Para Noa (2008), tratando-se de literaturas surgidas no contexto colonial em situação de dominação há mais de cem anos, elas acabaram por incorporar a preocupação com a delimitação de um território estético próprio que, naturalmente impõe o recuso a estratégias de afirmação identitária que questionavam e se distanciavam da ordem cultural e política dominante. Trigo (1992) diz que as literaturas africanas assumem-se contra outras, no momento em que desejam ganhar distância e afirmar-se como diferencial da literatura colonial. Frisa o autor a ideia de que nascendo de um recurso e alternativa a literatura colonial, as literaturas africanas têm de se olhar como uma negatividade, como um momento da dialéctica busca de identidade que lhes está subjacente.
Ainda para Noa (2008), o processo de criação é sempre uma reinvenção de estruturas, temas, perspectivas, linguagens e que garante sempre a legitimidade de uma obra, o que nos remete a ideia de Brunel & Chevrel (2004), que dizem que a emergência das literaturas africanas apresenta uma ambiguidade, quer na sua génese quer na sua recepção, dizem ainda que certos críticos insistem no carácter revolucionário desta literatura, na qual se vêem expressões de um despertar de uma tomada de consciência , no entanto, dizem os autores que há os que sublinham os laços de filiação que unem as literaturas africanas nascentes com a corrente da literatura colonial. Os autores laçam um apelo dizendo que é necessário definir as características susceptíveis de separar as literaturas africanas da tutela ocidental e, portanto, conferir-lhes uma real autonomia.
Se para Brunel & Chevrel (2004), as literaturas escritas em línguas europeias colocam-se evidentemente em problemas de identificação, sob ponto de vista de que “o que é que diferencia um romance escrito por um africano de um romance colonial produzido por um europeu?”, Trigo (1992) diz que as literaturas africanas de expressão portuguesa buscavam justamente a africanidade, esta que a semelhança da brasilidade, resultaria de um longo processo de maturação cultural.
No entanto, considera Matusse (1998) que as reflexões apresentadas insistem na complexibilidade do contexto em que emergem as novas literaturas, de diversas práticas semióticas, de diferentes domínios de práticas sociais.
Diz o autor imediatamente supracitado, que a emergência de literaturas geradas de situações coloniais nas línguas da colonização, coloca a necessidade de suprimir a condição que implica a fronteira linguística e cultural das mesmas.
No diz respeito à emergência da literatura moçambicana escrita, Matusse (1998), diz que tal facto só se deve a introdução da escrita e com a formação de uma civilização urbana a que a escrita está sempre associada. A assimilação dos valores civilizacionais, a educação orientada segundo os modelos europeus foi o que impulsionou o aparecimento dos primeiros escritores moçambicanos.
No que diz respeito à literatura ligada ao urbanismo, Trigo (1992) diz que as literaturas africanas modernas, as que se exprimem na língua do colonizador, emergem ligadas ao urbanismo enquanto fenómeno semiótico, que se liga a questões de organização social do espaço e que introduz uma forma da realidade característica da África pré-colonial. No entanto, diz o autor que a cidade passa a ser a meta a atingir por aqueles que vêm nela a possibilidade de melhorar o seu estatuto social económico, o que, portanto, provoca o êxodo rural. De forma categórica. O autor afirma que as literaturas emergentes africanas são, de facto, um fenómeno do urbanismo colonial, quer no aspecto temático quer, sobretudo, no aspecto formal, por estas terem surgido de um conflito humano e cultural, que termina com as independências.
Segundo Trigo (1992), as literaturas africanas modernas emergem duma situação de alteridade, todavia, diz o autor que nas literaturas africanas escritas na língua do colonizador, a alteridade é mais do que um simples processo discursivo, é o resultado duma situação conflituante do ponto de vista histórico e antropológico. Em concordância como o autor imediatamente supracitado está Magnolo (1991), que diz que a situação colonial contribuiu para a definição e pluralidade das tradições e que da relação entre colonizador e colonizado emergiu transculturalização, os membros de culturas diferentes participaram de uma interacção semiótica.
O desafio ao cânone
Para Noa (2008), um dos factores que faz com que as literaturas emergentes tenham um desafio ao cânone é a língua portuguesa, por ser a língua de comunicação e língua literária. O autor diz que o hibridismo linguístico que as obras dos autores emergentes, como por exemplo, os que usam a língua bantu e a língua portuguesa nas suas produções literárias, projecta-os ao hibridismo cultural que caracteriza um espaço existencial.
Diz o autor imediatamente supracitado, que autores que escrevem em línguas bantu como língua literária, mais do que pretender atingir um determinado público, praticam um acto performativo, que carrega uma visão do mundo, um imaginário colectivo, e, portanto, um sentido de vida que só a língua nativa pode traduzir.
O autor vê como desafio ao cânone, a problemática dos jovens criadores nos países africanos, que têm a língua portuguesa como língua oficial, vendo-se obrigados a escreverem como mandam as regras gramaticais da língua portuguesa, nisto tudo, considera ao autor que alguns jovens criadores têm seus textos rejeitados pelas editoras e pelos júris dos concursos literários, sob pretexto de salvaguardar o critério da correcção linguística, ou por outras, salvaguardar a língua portuguesa.
Portanto, entende-se que um dos elementos que constitui um dos desafios para que as literaturas africanas de língua portuguesa, emergentes, ascendam ao cânone é a língua portuguesa, no entanto, as editoras também têm um papel importante, pois são elas que catapultam a imagem de um determinado autor e sua obra literária. Se houvesse uma ruptura com os modelos de validação de obras literárias sob ponto de vista ocidental, visto que há ainda a problemática de que as literaturas africanas descendem dos colonizadores, haveria uma margem maior de obras literárias que entrariam no cânone universal.
Ainda na linha das literaturas africanas e o desafio ao cânone, Brunel & Chevrel (2004) dizem que a África literária, que a adjectivam como sendo azarada, não tem um melhor acolhimento nos quadros da instituição universitária clássica onde faz ainda muitas vezes a figura de uma intrusa, os mesmos autores voltam a dizer que a bibliografia crítica consagrada as literaturas africanas não pára de crescer, e que a integração das novas literaturas no sistema crítico foi inicialmente caracterizada por universitários e intelectuais ocidentais, no entanto, há o problema da identidade própria das literaturas africanas. Referente a esse problema de identidade, Carvalhal (1991), diz que é preciso “ser” para afirmar-se no conjunto, que é o cânone.
A ideia de “ser” está ligada a naturalidade necessária de expressão nacional, para ser integrada na literatura universal, a autora defende que deve haver uma conquista progressiva que parte de uma consciência de identidade própria. Dá-nos a entender que para se chegar ao cânone universal, primeiro tem de se chegar ao cânone nacional.
Pare se chegar ao cânone universal, tem se passar pelo cânone nacional, de novo, precisa-se do papel das editoras, para venderem a imagem dos autores. Nisto tudo, as universidades também têm uma tarefa no que diz respeito à elevação, numa primeira fase, de uma obra ao cânone nacional, e posteriormente ao cânone universal, porém, o maior desafio dessas literaturas é a língua herdada do colonizador.
Para Carvalhal (1991), as manifestações de inspiração nacional são uma marca das literaturas em sua formação, o que, ao seu entender, sinaliza o processo de afirmação e busca de autonomia.
Se para Brunel & Chevrel (2004), as literaturas africanas podem chegar ao cânone através do valor que lhes é dado no ensino, nas publicações de trabalhos universitários, pela literatura comparada, que designa tal acto de “processo de reconhecimento das literaturas africanas”, para Carvalhal (1991), o conflito entre tendências locais e influências externas, além de transparecerem em obras literárias, também modelam os primeiros textos historiográficos, determinam as escolhas de obras para a fixação do cânone. Magnolo (1991) diz que o cânone literário que constitui o campo dos estudos literários e comparativos é uma produção cultural regional dentro do corpus universal das práticas semióticas.
Bibliografia
Brunel, Pierre & Chevrel, Yves. (2004). Compêndio da literatura Comparada. Lisboa: Colouste Grulbenkian.
Carvalhal, Tânia Franco. (1991). Dedalus. Revista portuguesa de literatura comparada, n.1, pp. 49-61.
Matusse, Gilberto. (1998). A construção da imagem da moçambicanidade em José Craveirinha Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: UEM.
Magnolo, Walter D. (1991). Dedalus. Revista portuguesa de literatura comparada, n.1.pp. 219-244.
Noa, Francisco. (2008). Perto do fragmento a totalidade olhares sobre a literatura e o mundo. Maputo: Ndjira.
Trigo, Salvato. (1992). Ensaios da literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Veja.