A escrita é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma recordação.
Roland Barthes
A palavra cantiga, na literatura, é muita antiga. Provém do latim e daí passou a significar canto ou melodia em português. Durante a Idade Média (séc. V – XV), designava-se cantiga a uma forma poética que conciliava a letra e o som, ou seja, o verso destinava-se ao canto e à instrumentação. Naquela época destacaram-se quatro principais cantigas: a de amigo, que exprimia a mágoa da moça do povo; a de amor, quando houvesse um trovador a lamuriar-se por uma paixão não correspondida; a satírica, se no texto predominasse um ataque por via da ironia e do escárnio; e de maldizer, se a tónica da troça fosse atirada directamente e de modo agressivo.
Massaud Moisés, estudioso brasileiro que se ocupou destas questões, repara que, a partir do séc. XV, com a separação entre o poema e a música, a cantiga passa referir toda peça lírica em versos curtos.
Considerando-se este pequeno princípio conceptual, pode-se facilmente enquadrar a poesia de Ivone Soares no que o termo cantiga etimologicamente sugere, isto é, a escrita desta autora, quer do ponto de vista estrutural quer do ponto de vista temático estabelece um regresso ao passado, captando no tempo o estilo e a estética peculiares a estes Salpicos de águas e sóis – meu eu poético, recentemente publicado.
Os poemas do livro de estreia de Ivone Soares são feitos de versos curtos, sincopados, os quais, bem à imagem das cantigas de amigo e de amor emprestam a este exercício uma dimensão telúrica no acto da enunciação.
Esta colocação ganha relevo nos textos, pois, dando voz a tantos sujeitos entristecidos, piegas muitas vezes, Ivone Soares é egocêntrica, no sentido de que o universo textual circunscreve-se apenas à medida dos anseios de um certo “meu eu poético”. Na verdade, até nessa parte do título a autora vinca essa demonstração possessiva, dominadora e demiúrgica. O eu poético de Salpicos de águas e sóis pertence a alguém. Logo, essa entidade faz dessa pertença o que a convém, por exemplo, um subterfúgio para expor a dor, como lamúria e como terapia: “Dói-me essa dor funda/ Que te pressinto/ Essa tristeza triste/ Que te leio nos olhos” (p. 11).
A origem da dor tácita e expressa em Salpicos de águas e sóis – sinceramente, Ivone Soares poderia ter encontrado um título melhor, mais poético, menos feio – é o vazio gerado pela distância entre quem ama e é amado. Neste pormenor, de facto, há no livro um carácter iniciático da poesia, a explorar outros elementos afins, como a saudade e a ternura, a desaguarem num surrealismo óbvio. A saudade imprime condições no poema: “Posso esquecer a saudade/ Se imaginar querer bem” (p. 15).
Irredutivelmente, a saudade é a condição primária destes Salpicos com lineamentos mais ou menos ao estilo medieval e/ou romântico. É a força motriz do poema, geradora da angústia, do desejo impossível de satisfazer. Aqui Ivone Soares encontra na ausência um requisito para tornar a satisfação da carne e anímica algo ainda superior. Também por aí transparece determinados hábitos, sobretudo esse de os Homens valorizarem quem está distante em detrimento dos que se encontram próximos. Estará a autora a sugerir que a saudade é essencial para o triunfo das relações? Talvez o poema “Tua dor, dói-me” ajude: “Dói-me a tua dor, meu Amor,/ Mas ainda o que mais me dói/ é a distância que fica,/ é esse vazio distante criado na saudade,/ mas que quero preencher de ternura e/ de amor para te voltar a ter” (p. 63).
Em suma, a distância, a saudade e a dor daí correspondem a elementar trindade de Ivone Soares, o ponto de luz que a aproxima às cantigas de outros tempos.
Título: Salpicos de águas e sóis – meu eu poético
Autor: Ivone Soares
Editora: Minerva
Classificação: 12