Por José P. Castiano & Ricardo Santos
Esta foi uma excelente ocasião proporcionada por Almeida Cumbane para poder pensar na relação entre literatura e filosofia. O pretexto para este pensar é esta oportunidade de ter sido intimado pelo autor para apresentar o livro A Distante Proximidade do jovem escritor Almeida Cumbane. O meu próprio interesse por esta matéria foi aguçado pelo facto de estar a acompanhar um rápido desenvolvimento de uma literatura moçambicana muito jovem, talvez já não refém das temáticas da Geração Charrua que a antecedeu.
O importante a reter na relação entre a filosofia e a literatura é que esta é muito íntima, de uma amizade muito profunda. É uma amizade em que cada um está atento ao outro, vive com o outro, no entanto não se mistura. Albino Chavale acha que existem “fronteiras porosas” entre a filosofia e a literatura[1]. Até podíamos aventurar dizer que é uma relação de “desconstrução” mútua:
O defeito (será que devo dizer o perfeito?) da filosofia é construir um pensamento crítico. A crítica, em termos de pensamento, encontra-se no ponto de inflexão que leva à reflexão sobre fenómenos naturais, sociais, políticos e outros. De uma crítica resulta uma outra forma alternativa de interpretar uma certa realidade.
Todavia, a crítica filosófica se diferencia ou afasta da opinião porque nesta não precisamos necessariamente de nos dar conta ou citar o que o Outro ou os outros pensam sobre o mesmo assunto. Também, para emitirmos a nossa opinião sobre as coisas não precisamos de cogitar muito.
Já para uma crítica filosófica, entretanto, temos a obrigação de nos envolver com o objecto do debate (fenómeno ou processo) e, o mais importante, com as diferentes interpretações existentes, disponíveis no passado e na sociedade que vivemos. Quase que diria, temos que passear pelo mundo das interpretações diferentes primeiro – e isso se faz, por exemplo, por via de citações de outros autores – para depois emitirmos o nosso ponto-de-vista ou juízo de valor sobre o mesmo fenómeno. Assim, o pressuposto para uma boa crítica, é também uma boa interpretação prévia. Olhar para o que os outros já disseram ou escreveram sobre um mesmo fenómeno ou processo é a condição necessária e imprescindível para uma boa crítica filosófica. É por isso que somente por via de uma profunda reflexão sobre as coisas se chega a uma boa crítica. É também por isso que uma boa crítica pressupõe diálogo e não monólogo. Quem monologa está em seus devaneios.
Uma das formas através das quais a filosofia exerce o seu dever crítico é propor categorias novas ou recriar das velhas categorias do “entendimento humano”, para falarmos com base em Kant. São categorias que ajudam o homem a entender o seu mundo natural, social e espiritual.
A filosofia cria estas categorias não somente para entender esse mundo fora de si, como também e sobretudo para que os homens se entendam universalmente e possam falar entre si. Na verdade, para que se compreendam mutuamente.
Neste seu papel crítico, a filosofia em Moçambique, enquanto uma das formas de pensamento sobre Moçambique no Mundo, deve estar atenta ao que se produz na machamba da literatura moçambicana, sobretudo aquela que é escrita pelos mais jovens. A Filosofia ocupa-se do futuro, das utopias; concomitantemente, não é possível ocupar-se “do” sem saber o que ocupa as almas das pessoas mais jovens. À questão, qual é o tempo que nos espera no futuro, os jovens escritores respondem provavelmente com uma maior propriedade do que os mais velhos.
Desta forma, como sabemos desde Hegel, a filosofia ocupa-se em resumir o tempo vivido no pensamento e a Literatura a umas das “pistas” que auxiliam a filosofia a construir as tais categorias de entendimento.
Na verdade, a literatura é uma das fontes mais antigas para a filosofia viver. Foi graças à literatura que a filosofia sobreviveu em seus momentos menos gloriosos, porque muitos filósofos recorriam à literatura como refúgio para esconderem as suas ideias. Nós podemos denunciar um golpe de estado por via de uma escrita crítica directa ou por via de um conto.
Já os românticos alemães do movimento Sturm und Drang reconheciam na literatura um campo de saber mais sublime, acima da filosofia porque nas artes, segundo eles, se podem juntar o belo, o justo ao pensamento. Este movimento privilegiava sobretudo as emoções, a subjectividade e o individualismo. No fundo era uma criação burguesa que cultivava o sublime, como uma reacção contra o iluminismo e o racionalismo exacerbados. Nos romances, vencia o carácter subjectivo.
A este movimento literário romântico se seguiu um outro denominado realismo. Enquanto aquele era mais elitista com o seu subjectivismo, o realismo inclinava-se a descrever as pessoas, os lugares as circunstâncias e condições dos pobres tais como elas são.
Podemos, para já, concluir que as narrativas contidas em livros literários nos levam, a nós almas que se ocupam da filosofia, ao conceito do tempo em que vivemos ou ao tempo no conceito.
Como disse atrás, estas estórias contadas pelos jovens da literatura moçambicana são, na verdade, as pistas que construímos para compreender o nosso tempo. E, por sua parte, a filosofia olha para estes contos como momentos de concretização do seu tempo. As estórias contidas num livro de contos são as marcas das “circunstâncias” (Ortega & Gasset) que cada época nos oferece para serem objectos da nossa escrita. Se, por um lado, as circunstâncias constituem as marcas do tempo, por outro, o homem somente é entendível por via das circunstâncias do teu tempo.
Por isso, um filósofo que não se dedica à leitura dos livros de literatura do seu tempo torna-se empobrecido. E ele não terá se dado conta do quão o seu tempo é rico em sugestões para o seu conceito de tempo vivido.
Almeida Cumbane divide o livro em 17 contos ou narrativas. Cada uma delas diz-nos muito sobre o tempo vivido no Moçambique actual, apesar de concentradas na região do Sul do Save. O autor vive no Distrito de Guijá e trabalha em Lionde (Gaza). Ele usa muito o conhecimento que tem sobre a natureza, a sociedade e sobretudo as culturas que atravessam esta região.
O que faz do livro A Distante Proximidade africano? Este pode ser considerado pertencente à literatura jovem africana devido à continuidade que faz da ancestralidade (pelos seus temas), da oralidade (pelo seu método escolhido para a narrativa), e dos provérbios (pelo carácter por vezes axiomático e axiológico da sua escrita).
No que diz respeito à ancestralidade, a inclusão da voz de antepassados – os que o filósofo queniano John Mbiti chama “mortos-vivos”, aqueles antepassados que nos deixaram há pouco tempo e cujos espíritos ainda chamamos ora para a protecção, ora para providenciar alguma sorte na vida – é uma característica permanente em quase todos os contos contidos no livro de Cumbane. Em Traídos pelo Sono, a intervenção activa na cama adúltera do defunto marido é evidente. No caso particular do conto Os Filhos Gémeos o autor até introduz uma inovação, dado que os protectores da riqueza são filhos já mortos, mas que “vivem” debaixo da cama dos progenitores.
Do mesmo modo que a oralidade, que eu chamei algures por oratura, é a forma de escrita que encontramos em todos os contos. Assim também o recurso a uma linguagem axiomática, baseada em provérbios africanos, encontramos transversalmente presente, em especial no conto Carta de um Invisível.
Sendo estas histórias africanas e muito moçambicanas pelas razões atrás aduzidas, o livro de Almeida Cumbane torna-se verdadeiramente universal na senda dos escritores que aprofundam o conhecimento e o pensar dos lugares mais recônditos, mostrando assim a sua universalidade.
Ao ler estas crónicas e contos apetece sentar à volta da fogueira e ouvir o seu eco nas vozes dos mais velhos porque escrever ficção é, afinal, saber contar bem uma história, na esteira da melhor tradição africana.
Na preparação para esta apresentação fiz um breve exercício que consistiu em dar títulos alternativos a cada um dos contos. E assim ficaram os meus:
- Um Infortúnio Bem-Aventurado o título alternativo seria “O Despenho do Embraer 190 na Namíbia”. Inharrime, Macia e Marracuene são balizas ou marcos a caminho de Mavalane, no chapa que precede o avião;
- Dona Pérola seria apenas “Moçambique” e conta a história de uma mulher que nasceu no dia 25 de Junho de 1975;
- Traídos pelo Sono ficaria simplesmente “Adultério”. Ela no Jonasse, ele no Chamanculo e um terceiro também no Jonasse, não se sabendo se o de Chamanculo chamaria como seu qualquer cabrito nascido no Jonasse;
- De A Matreca da Festa mudaria para “A Recarga”, onde se fala dos sistemas de recargas virtuais muito em uso no país para compra de serviços;
- O Vinho da Discórdia seria transformado em “O Drama das Cheias em Chókwè”. As cheias são iguais em toda a parte. E o Chókwè é toda a parte;
- O Actor que não sabe fingir recebeu o título alternativo de “Violência Doméstica”, ou quando a ficção teatral e a realidade se misturam no Dia da Mulher Moçambicana;
- Carta de um Invisível recebeu, por sua vez, “Coronavírus com Vida”, referindo aquele que tirou as maiores alegrias dos pobres: o abraço, o beijo e o convívio;
- Os Filhos Gémeos transformei em “Tradição e Riqueza” porque conta a história de um homem que mantinha duas cobras debaixo da cama, representando os seus dois gémeos mortos, para manter a riqueza;
- O conto Uma Casa de Alvenaria denominei por “O Paradoxo da Morte na Tradição” (eu teria gostado chamar simplesmente ZéDú para mostrar como as honras são prestada depois de alguém morrer. Na estória do livro trata-se de um velho cujos filhos só lhe fizeram as honras e festa faustuosa no seu funeral, depois de ter vivido miseravelmente. Os filhos o visitam e o reconhecem na urna, ZéDú somente teve as honras de Estado depois de morto, numa urna);
- Guest House transformei em “A Traição da Amiga”.;
- Njunju foi mudado para “A Força de um falso Amuleto de Futebol”. O que conta são as crenças e a verdade é embrulho biodegradável;
- O (Extra)Ordinário Condutor passou para “Alcoolismo e suas Consequências”. É a estória de um jovem que, alucinado pela bebedeira, atropelou um homem no meio da noite, confundindo-o com um animal;
- O Tradutor de Línguas seria “O Escorpião de Mapai”. Ngonhamo, professor cuja língua materna era o português e tinha dificuldade em aprender changana, soltou um berro em changana na hora da verdade.
- Um Ladrão Misterioso foi trocado por “As Manifestações das Tradições na Mulher”.
- O Pé de Ruca troca por “Corrupção na Polícia de Trânsito” é um conto sobre um polícia que reconhecia viaturas susceptíveis de serem irregulares na estrada por via da erecção do seu pénis, sinal que lhe foi dado por um curandeiro;
- A Distante Proximidade mudei para “A Facebook Society no Chapa”; por sinal, este conto dá título ao livro e tem o tom filosófico da formação do autor por retratar uma aporia típica da era digital e neoliberal: dois jovens que estavam no mesmo chapa, próximos, mas falando entre si como se estivessem distantes um do outro;
- (In)Voluntários Assassinos mudaria para “O Jardim Zoológico do Jardim”.
Como notamos, é no cruzamento entre uma literatura moçambicana jovem como esta e a sua compreensão teórico-filosófica que se descobrem as intersecções do engajamento dos intelectuais moçambicanos com os desafios que o seu tempo lhes impõe.
E isto é ainda mais importante precisamente hoje, quando a credibilidade da função da teorização e dos estudos científicos dos fenómenos como o terrorismo, subdesenvolvimento, etc. estão sendo postos em causa, particularmente por parte de um número cada vez maior de políticos moçambicanos e pela geração pós-independência.
Texto de apresentação de A Distante Proximidade, de Almeida Cumbane.
[1] Cfr. Chavale, A. (2015): Filosofia e Literatura: Fronteira Porosa? In: Ngoenha, S.E. & Castiano, J.P. (Coord.): Filosofia: Fronteiras ou Pontes. Editora Educar. Universidade Pedagógica, Maputo. Pp.61-77