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Alberto da Barca: Todos os lares deviam ter uma minibiblioteca  

Na Beira, cidade cortada pelo rio Chiveve e marcada pela vida frenética das suas rotundas, nasceu há 71 anos Alberto da Barca. Geógrafo de formação (pela Universidade Eduardo Mondlane), trilhou os caminhos do ensino e da gestão pública, mas foi entre as páginas que encontrou a sua verdadeira morada. De 1988 a 2003, período em que o Estado detinha o monopólio da produção do livro escolar, Barca esteve totalmente ligado à Editora Escolar e à Distribuidora Nacional de Material Escolar (DINAME), com uma missão singular: levar o saber a cada canto do país. Ainda, por um ano, foi director interino do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (INDE).

Entre 1989 e 2003, Alberto da Barca escreveu cerca de 30 livros, ilustrando a maioria com a mesma paixão com que escrevia, o que o coloca no panteão dos autores mais prolíficos de Moçambique, ombreando com a Angelina Neves e o mágico Mia Couto. A partir da década de 90, Barca tornou-se uma figura central no vibrante “renascimento” (no boom) da literatura infanto-juvenil moçambicana. Considerado, com justiça, um dos seus pioneiros, ao lado de luminares como Orlando Mendes, Angelina Neves e Machado da Graça, abriu picadas narrativas que encantaram gerações de crianças.

Os seus títulos ressoam na memória afectiva de muitos: o olhar curioso de “Um Cão em Maputo”, a simplicidade lúdica de “Bola Azul”, as lições de crescimento em “Crescer Mais”, as aventuras de “O Capitão Zhua”, a eloquência inusitada de “O discurso do Sr. Lápis”, o despertar para o mundo em “As Nossas Profissões” e a descoberta da riqueza natural em “Flora e Fauna de Moçambique”. Sob o pseudónimo Mambo Djóngwé, assinou a divertida sátira “Um Mosquito no Tribunal”, enquanto João Kuimba nos convidava a ler “Chico Ndaenda e Outros Contos”. A maioria dos livros ganhou vida nas colecções emblemáticas “Ler Mais” e “Conhecer Moçambique”.

Com o seu traço seguro e sensível, Alberto da Barca também ilustrou inúmeros manuais escolares, fixando na nossa memória colectiva imagens icónicas como a do poema “Fábula”, do mestre José Craveirinha, um casamento perfeito entre a força da palavra e a expressividade do desenho.

Surpreendentemente, Alberto da Barca silenciou a sua pena há mais de duas décadas, tornando-se um nome talvez distante para o cenário literário moçambicano contemporâneo. No entanto, a sua contribuição permanece indelével, um legado de livros que iniciaram crianças no fascinante mundo da escrita, que lhes ofereceram a liberdade de pintar e desenhar os seus próprios universos, que lhes contaram histórias que embalaram sonhos e despertaram a imaginação.

Esta conversa — há muito adiada pelos tempos incertos que a pandemia da Covid-19 teimou em nos impor —, desabrocha a propósito do Dia Mundial do Livro; e sendo o Alberto da Barca um fervoroso defensor do livro, um guardião da importância da leitura como janela para o mundo e alimento para a alma, eis que ela finalmente aconteceu.

 

Pedro Pereira Lopes [PPL]: O seu livro inaugural, “Um Cão em Maputo”, se distancia da literatura infanto-juvenil que subsequentemente marcou a sua produção. Quando e quais foram os factores determinantes nesta transição?

Alberto da Barca [AB]: Não considero que tenha havido alguma transição porque não deixei de escrever para a faixa etária que imaginei para “Um cão em Maputo”. Houve um processo de coabitação saudável, mas com prioridades claras.

PPL: No decurso das décadas de 1980 e 1990, num contexto de acesso ainda limitado ao universo do livro em Moçambique, quais foram as obras literárias infanto-juvenis que particularmente influenciaram a sua formação como leitor e, possivelmente, como futuro autor?

AB: Bom, começando pelas obras infanto-juvenis que influenciaram a minha formação como leitor, vale dizer que remontam do período colonial quando por influência de professores e amigos frequentávamos as bibliotecas escolares e a municipal e lia uma grande diversidade de títulos. Também trocávamos livros diversos entre amigos, colegas e vizinhos.

No contexto das décadas de 80 e 90, como bem disse, o acesso ao livro em geral era tão limitado que para além dos livros amarelados do tempo colonial, por vezes apareciam, nas livrarias do Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD), alguns poucos títulos de infanto- juvenis oriundos da União Soviética (sobretudo). Não vou aqui particularizar esta ou aquela obra (cujos títulos e autores já não me lembro), pois não faço hoje a mínima ideia. Na verdade, eu não diria que me influenciaram, mas sim que me inspiraram para escrever textos ajustados ao nosso contexto, textos moçambicanos.

PPL: A tessitura narrativa de “Um Cão em Maputo” (1990) evoca ressonâncias estilísticas com obras como “Os Molwenes”, de Isaac Zita, ou “O Regresso do Morto”, de Suleiman Cassamo. Pode comentar sobre possíveis diálogos estéticos conscientes ou inconscientes entre estas obras, ou se tais similitudes seriam meramente um reflexo do contexto social e cultural da época?

AB: “Um Cão em Maputo” foi sim publicado em 1990, mas foi escrito em 1986, se a memória não me trai. Quanto a possíveis diálogos estéticos, não é de espantar, num contexto em que nessa época, o mercado livreiro era extremamente escasso, e por via disso, as possibilidades de se ler e de se deixar influenciar pelo pouco que havia sido publicado era significativa. No caso do “Cão em Maputo”, apesar do livro ter sido publicado em 1990, o cenário fictício do enredo é o da segunda metade da década de 70 e início da década de 80.

PPL: Afinal, depois, não mais escreveu para os adultos. O que foi que aconteceu?

AB: Em termos literários escrevi o “Chico Ndaenda”, o qual é um livro de contos que vai ser reeditado este ano. O que aconteceu foi o seguinte: fora do contexto literário, escrevi dois livros de autoajuda na área de criação de pequenos negócios e vários títulos de livros de bolso na área da saúde, nutrição, dentre outras. Nos últimos 5 anos tenho escrito letras para músicas infanto-juvenis e para adultos. Algumas músicas para adultos já foram lançadas e as infanto-juvenis estão em processo de preparação.

PPL: A sua produção literária para crianças e jovens manifesta-se tanto na prosa quanto na poesia. Esta fluidez entre géneros representou uma progressão natural e intuitiva no seu processo criativo, ou integrou um projecto pessoal deliberado de explorar as diversas potencialidades da linguagem literária?

AB: Creio que foi uma progressão natural e intuitiva, mas enquadrada na percepção que eu tinha na época como profissional do livro escolar. As primeiras publicações ocorrem quando estávamos no sétimo ano (creio) da publicação do livro escolar do Sistema Nacional de Educação, caracterizado por ser de um único título de cada disciplina. Estava na hora de oferecer ao mercado, às escolas em particular, livros lúdicos de leitura complementar ao livro escolar. Portanto, para ser sincero, mais do que explorar as diversas potencialidades da linguagem literária no sentido lato da expressão, foi para atender a uma necessidade objectiva das bibliotecas escolares, a maioria delas até se resumiam em caixas simples que ficavam depositadas nas salas dos professores ou nos gabinetes também precários dos directores das escolas primárias sobretudo as do meio rural.

PPL: Os seus livros de poesia, como “As Profissões” e “Flora e Fauna de Moçambique”, ostentam uma clara vocação didáctica, em contraste com a natureza mais lúdica de “Crescer Mais”. Esta distinção reflectiu uma avaliação das necessidades pedagógicas e emocionais do público infantil moçambicano da época?

AB: Sim reflectiu, porque a ideia subjacente foi, em primeiro lugar, contribuir para a formação literária dos estudantes recorrendo a estratégias diferentes, mas, no fundo, complementares. Considerando que os livros de texto eram e são escritos sobretudo em prosa, achei que o recurso à poesia, para passar informação que normalmente é passada em prosa/texto corrido, poderia estimular um interesse extra pela leitura de textos concisos e quiçá mais divertidos.

PPL: E sobre o poema “Boneca de Pano”, cuja familiaridade poderia induzir à sua classificação como pertencente ao cancioneiro popular, revela-se, contudo, uma criação da sua autoria. Pode falar um pouco sobre este texto?

AB: O poema “Boneca de Pano” é contemporâneo do livro “Um Cão em Maputo”. Vivíamos na década de 80 um período de escassez de quase tudo, desde alimentos, roupas, livros e por aí vai. Tanto os meninos como as meninas inventavam os seus brinquedos, como ainda hoje o fazem; no caso das meninas, dentre os poucos materiais disponíveis, os que estavam mais à mão eram os panos velhos ou novos que se encontravam perdidos em casa ou no chão de uma costureira ou de um alfaiate, bons para se fabricar uma boneca de pano. Mas a ideia subjacente não foi somente a de se estimular a confecção de bonecas de pano. Foi, sobretudo, usar a boneca para passar uma mensagem sobre a importância do asseio e da diversão por via da dança. Procurei escrever um texto simples para ser facilmente memorizado, com suporte de uma música. Foi assim que depois musiquei essa letra. Notei recentemente que alguns versos foram alterados por iniciativa dos professores ou das próprias crianças, deturpando o sentido. Para a letra continuar a ser fiel ao original, decidi gravar a música para maior e melhor divulgação da mesma.

PPL: Para além da sua actividade como escritor, também ilustrou muitas das suas obras. A sua experiência sugere que existe uma facilidade inerente em transpor visualmente as narrativas concebidas pela própria pena? Quais as vantagens e desafios deste processo autoral integral? 

AB: Na verdade, a ilustração de textos começou com os livros escolares. Apesar de não ter sido ilustrador profissional, na falta deles, para além de escrever textos didácticos, tive que os ilustrar. Foi nesse contexto que a ilustração das minhas obras acabou entrando nessa mesma linha de produção. Portanto, sem dúvida que como autor do texto, a grande vantagem é que fica bem mais fácil ilustrar de forma fiel ao sentido prático e objectivo dos mesmos.

PPL: A Editora Escolar alcançava tiragens expressivas, chegando a atingir dez mil exemplares por título. Contrariamente, a realidade contemporânea frequentemente regista tiragens modestas. Na sua perspectiva, a ausência de uma editora com a abrangência e o alcance da “Escolar” representa uma lacuna significativa no panorama editorial moçambicano actual?

AB: Sem dúvida! Na época as nossas tiragens eram significativas como resultado da convergência de dois factores fundamentais: o primeiro tinha a ver com o facto de contarmos com uma parceria muito bem-sucedida com a ASDI (organização sueca), que desde o primeiro momento esteve ao lado da componente editorial do livro escolar e do livro

complementar para-didáctico, que subsidiava a sua produção por via do fornecimento de papel, insumos e equipamento gráfico. Por outro lado, algumas ONGs se destacaram na compra e distribuição do livro infanto-juvenil pelas escolas primárias nalgumas províncias.

Hoje, não faço ideia se essa experiência muito positiva que tivemos ainda perdura ou não, pois estou desligado do livro escolar há mais de 20 anos.

PPL: Há anos que o AB não publica. A literatura deixou de ser interessante?

AB: É verdade, passei muitos anos sem escrever, ou melhor, sem publicar. Mas saiu, na semana passada, o meu livro mais recente, “Vamos Mudar de Conversa”, um livro de contos e crónicas que já se encontra nas principais livrarias de Maputo e certamente que também estará disponível em breve nas províncias. Outro livro de contos já está escrito e poderá ser publicado ainda este ano. Também existem novos textos infanto-juvenis em prosa e poesia para serem publicados logo que surjam editoras interessadas.

PPL: Quanto aos pseudónimos… Esses alter egos representavam uma faceta distinta da sua identidade autoral, explorando territórios temáticos ou estilísticos diversos da sua voz principal?

AB: Sim, usei pseudónimos nos textos infanto-juvenis por duas, a saber: a primeira porque procurei associar os nomes às temáticas dos textos, a segunda porque pretendia incentivar outros autores a escrever para esse público, livros que a editora iria publicar. Infelizmente não tivemos muito sucesso.

PPL: E o que pensa da actual Política do Livro do país? Quais os seus pontos fortes e as suas áreas de potencial melhoria?

AB: A única política do livro que sei que existe é a do livro escolar. Em relação ao livro literário não creio que exista. Se existe, não faço ideia da sua pertinência enquanto não tiver acesso à mesma.

 

PPL: Finalmente, considerando a presença simbólica do livro na bandeira e no brasão de armas de Moçambique, e na sua dupla condição de professor e escritor, acredita que o livro tem recebido a valorização condizente com a sua representação simbólica no contexto social e político actual do país?

AB: O livro, tanto o escolar como o de literatura em geral, constituem um grande desafio para o país, considerando os vários factores que interferem para cada um dos casos. O livro

escolar não cobre as necessidades actuais do país na sua plenitude em termos de quantidade e distribuição geográfica atempada. Em termos de qualidade, os erros detectados acabaram por pôr em causa a credibilidade dos livros escolares na totalidade. Vai ser necessário um profundo trabalho para se recuperar a confiança que foi, em grande medida, beliscada pelo que aconteceu.

No caso dos livros literários, vivemos momentos contraditórios. Se por um lado há um boom de publicações, por outro lado, não se assiste a um processo proporcional de compra e leitura.

Há necessidade urgente de se reverter este cenário, que deverá contar com o envolvimento conjunto directo das entidades que, de uma forma directa ou indirecta, trabalham (ou deviam) com o livro quer como instrumento de aprendizagem, quer como de cultura geral. Um papel crucial têm os professores, que deverão exigir e controlar as leituras recomendadas, e os pais ou encarregados de educação, que deverão acompanhar de perto os livros recomendados pela escola, por um lado, e outros recomendados no contexto familiar. Todos os lares deviam ter uma minibiblioteca. Faltam iniciativas de estímulo à leitura (por via de concursos vários começando por redacções, escrita e declamação de poemas com prémios a ser atribuídos aos melhores). Conheço duas organizações, uma na Beira e outra em Quelimane, com iniciativas muito positivas de promoção e divulgação do livro e da leitura. O ideal seria que tais iniciativas fossem replicadas à escala nacional. Não sei se haverá outras organizações similares, que eu não tenha conhecimento. Neste contexto, fica a pergunta: por que os municípios não têm um sector vocacionado para a temática do livro como um todo? Não seria nada de inédito, pois se há mais de 50 anos havia tal boa prática, por que será que não somos capazes de a manter e perpetuar? Quanto ao livro na nossa bandeira, creio que a intenção prioritária foi na perspectiva de se priorizar a educação e combater o analfabetismo. Para que esse desiderato seja alcançado, precisamos de redobrar esforços para dignificar esse símbolo, responsabilizando a todos os moçambicanos, mas deixando bem claro de quem é a responsabilidade primeira.

 

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