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Agir, o devir do recomeço

Para enxugar as nódoas dos meus olhos, colectânea de poemas de Énia Lipanga tem 48 poemas divididos em três cadernos, nomeadamente: “Não amanhece enquanto canto”, “Para enxugar as nódoas dos meus olhos” e “Elo”.

A imprensa e as redes sociais deram mais ênfase ao segundo caderno. Deve ser por se tratar do que dá título ao livro, ou o que mais vende, não sei, mas dos três cadernos, o mais desafiador, para mim, por ser composto por imensas imagens estéticas e mensagens polissémicas foi o primeiro.

Não digo que esse seja o melhor, porque existem poemas que não seguem a modelos estético-simbólicos pré-estabelecidos sobre o que é que um poema deve ser, mas que são belos poemas para se ler e despertam emoções ou sensações. São líricos. Através da poesia lírica podemos não só cantar amores, mas também fazer crítica social. Um grande exemplo de um poeta lírico que fazia crítica social, em Moçambique, é Eduardo White. O que devo dizer é que, no seu todo, a obra de Énia Lipanga cumpre com a sua função estética e com a sua função social, enquanto objecto literário.

Esta mulher é conhecida pela sua dedicação à causa da arte, destacando-se como contestatária, através do rap, num grupo que se designa “Revolução Feminina” e pelo seu activismo na área da inclusão social. Resulta das várias actividades em que se integrou, na área do activismo para a inclusão, a publicação da sua obra Sonolência e alguns rabiscos (2019), que é o primeiro em Moçambique à tinta e em braille. E não é à toa que a Hamasa Magazine, um periódico tanzaniano a considerou das dez mulheres mais inspiradoras de Moçambique. Énia preocupa-se com a subalternidade da Mulher. Luta pela sua liberdade e faz tudo, através da arte, para espantar as muitas tristezas que assolam a Mulher.

 

Para enxugar as nódoas dos meus olhos

Os poemas de Énia Lipanga, podem ser analisados a partir das teorias de Viktor Chklovsky, escritor e crítico literário – que escreveu sobre a estética do Estranhamento; Hannan Arendt, filósofa que aborda a “Condição humana” e D’Onofrio (1995), teórico que fala sobre a poesia lírica.

A estética do Estranhamento é proeminente no primeiro caderno de Para enxugar as nódoas dos meus olhos, por, através dela, Énia Lipanga, ter obscurecido a compreensão de determinados objectos e fenómenos, tendo-os ainda desfamiliarizado relativamente ao que sabemos ser comum acerca deles. Sobre essa técnica inerente à poesia, Chklovsky afirma que:

A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização [ostraneine] dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ”tornou” não interessa mais a arte Chklvsky (1971: 82):

O poema que segue, da obra em apresentação, é dos que melhor espelha o processo de singularização. Aparentemente, todos conhecemos a chuva, suas características e seus efeitos, mas na obra de Énia, ela ganha outros contornos. É um poema muito bem elaborado, do ponto de vista da sua construção estética:

“Chuva”

As janelas estão acesas / Inspiras a barba molhada / Bebes as rosas que flutuam no ar / Em cada gota íntima / A presença é amada no tacto / Mas há um guarda-chuva na tua vida. Lipanga (2021:18).

Este poema pode sugerir, através do seu título a ideia de um fenómeno meteorológico. Entretanto, as imagens que apresenta, podem sugerir, entre outras coisas, um acto de amor, embora haja ausência de um corpo físico concreto. Há, ainda, a separação de corpos por um objecto, que tanto pode ser um guarda-chuva, tal como o texto refere ou pode ser um preservativo masculino ou feminino. São as imagens que se podem desenhar, enquanto se lê o poema. Ele está construído de tal forma que não se reconhece imediatamente o evento realizado. É a tal ideia de prolongamento da percepção do objecto, a que Chklovsky faz referência.

Ainda no grupo de poemas desse caderno quero destacar uma maneira canónica de fazer poesia, que pode ser colocada na óptica do exemplo anterior. Refiro-me à utilização de figuras de estilo ou de linguagem, nomeadamente, a metáfora em: “Sou o meu quarto” […] Lipanga (op.cit.:17) e “As janelas estão acesas”; a personificação em: “Os olhos de zinco”. (ibidem) e o paradoxo em “Há um brilho negro aceso” (ibidem:19); entre outras figuras.

A obra de Énia Lipanga aborda a condição humana. Explicada por Hannan Arendt (2007) como o conjunto de três aspecto: labor, trabalho e acção, sendo que o labor é o que a espécie humana realiza para sobreviver. O trabalho, o processo de transformação realizado pelo homem, por imposição do contexto social – não é intrínseco ao homem e acção, o que o homem realiza, para se integrar socialmente com os outros.

Relativamente à condição humana, o que constato, ao ler a obra de Énia Lipanga, é que a escrita da autora em si seria esse trabalho de transformação de uma matéria para sobreviver ou seja, transformação de emoções em poesia escrita, o que se reflecte no sujeito poético criado, que se impõe um modo de sobrevivência, para a sua integração numa suposta sociedade. Ou seja: há para sobreviver a determinada intempérie, a autora escreve. A escrita é um processo de transformação de emoções em papel, em algo material. E isso é aferível, a partir das manifestações do sujeito poético que fala nos poemas, por exemplo, no poema intitulado “[Eu não me teria cansado]”:

Eu não me teria cansado / Se não fosse ter o mundo sobre a espinha dorsal / Vomitei tempestades em manhãs de inverno // Pareço o mar, acumulo ondas nas pálpebras / Carrego o céu e banho-me no seu cinzento / Inundo sonhos – estourei // Os deuses também se cansam. Lipanga (op. cit.:31).

Há, também, na poesia de Énia Lipanga muita subjectividade, típica da poesia lírica, que segundo D’Onofrio (1995:1) expressa sentimentos, emoções, recordações ou previsões de futuro.

Esse sujeito poético na poesia de Lipanga, cansa-se, mas não estoura, não sucumbe. Pois, deixa réstias de esperança e isotopias de luz a iluminar novos caminhos, tal como se pode ler no poema intitulado “Recomeço”: “Dois passos desequilibrados / Não há bengala para apoio / As palmas têm o ar / O destino solto nos dedos / Um puxão // Repetes enquanto reaprendes.” Lipanga (op. cit.:56).

Deixa esperança no futuro, o que me remeteu à leitura do Apocalipse, 21:4, a saber: “Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou que se vislumbra a partir de pacto”. Isso pode ler-se no poema que leva o título de “Promessas” e diz: “Montanhas de incertezas / Degraus e sonhos / Volumosos anseios / Bebo dos teus beijos / Certezas de futuro / Fé permanente / Um amor presente / Amanhã.” Lipanga (op. cit.:58). Ou o outro poema, intitulado “Máscara”: “Vestida de repetida alegria / (O sorriso é uma pétala agrilhoada) / Estufas o peito e ergues a cabeça / Para encarara tua morte diária // O caminho é de feridas e sangue / E agora, mulher, és dor ou és / Amor? / Morres com um arco-íris no teu rosto”. Lipanga (op.cit.:55).

Não tenho como confirmar o que li pelos média, o facto de Para enxugar as nódoas dos meus olhos ser uma obra autobiográfica. Pelo que posso conferir, através da leitura desse livro, julgo tratar-se de uma obra que aborda a estética de sí, na qual o sujeito poético pode ser a própria autora ou um outro sujeito diferente dela. Chamam-se a esse tipo de escrita, em Filosofia baseada em Foucault, de cuidado de si, que integra aquilo que o autor do texto leu, viveu ouviu ou sentiu e regista; o que em última instância integra o seu eu e o eu dos outros, reflectindo-os num registo.

Em Lipanga (2021) lemos sentimentos ou estados d´alma comuns aos seres humanos. O salto que a autora faz é de os registar poeticamente. E a poesia, para além de cumprir a função estética que enunciei no início do presente texto, tem a função de registar o que é de âmbito social, no caso do que passo a apresentar, estados d´alma atormentados ou inquietados pelo amor, que parecem impossíveis de superar. Mas é preciso recordar que a autora deixa, no que enunciei antes, sempre uma possibilidade de se superar ou de se fazer um recomeço.

“Sou o meu quarto / […] E as janelas que não dormem / […] Vaza a incerteza do amanhecer / […] Os olhos do zinco.” Lipanga (2021:17); “[…] A presença é amada no tacto / mas há um guarda-chuva na tua vida.” (ibidem: 18); “[…] Nunca chove / Há um brilho negro acesso nos meus olhos.” (ibidem:19); “[…]Não existes / Resides em ninguém / E nos meus olhos e em meus dedos.”  (ibidem:34); “[…] Sorrio / Não de susto, / já não me surpreende / Encontrar-te em todos os caminhos.” (ibidem:35); […] “Dividimos a mesma sela de pecados e remorsos / Eu suplico: não tortures o amor,” (ibidem:37); “[…] Sou gata perdida farejando / Restos do seu dono.” (ibidem:65).

Para além da fruição estética do texto em si, o que aprendi da obra de Énia Lipanga é que a escrita pode ser libertadora. Lipanga mostrou que a poesia é um devir.

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

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