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Afinal, Quem é a Onça?! – O Processo Criativo de “Uma Onça na Cidade”

A noite descia vagarosamente sobre a terra e precipitava o seu amadurecimento. O Wimbe chamava por mim na voz que abria a janela do Hotel Raphaels. Vestida de um robe de chambre branco, se me espreitavam a alma, os meninos de Faulkner no lodo, e das águas do mar soprava o Som e a Fúria. Haviam muralhas entre a morte e o medo e o mar fruía as feições de uma onça.

Pelos corredores de Nautilis, outro paraíso que detém a minha alma, cruzei-me com um ferido dentre tantos outros militares sul-africanos, sangrava pelo braço direito e com todo o seu corpo gigante apoiava-se com seu peso sobre os ombros de um outro coitado. Para Sartre (2004, p.19) “a prosa é antes de mais nada uma atitude do espírito…há prosa quando nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. E ainda hoje, o meu olhar atravessa o homem ferido no braço direito que continua passando pelo corredor das minhas lentes de longo alcance e o seu sangue que goteja pelo braço tinge ininterruptamente a capulana que cobre a terra que move tantos outros coitados.

Num mapa conceptual criei os meus personagens. Pessoas do quotidiano, com quem me cruzei amiúde na terra e no céu e outras imaginárias.

Steiner (1994, p.36) diz o seguinte: nunca me ha parecido que existan diferencias entre poesía y filosofía, entre música y matemáticas. Move-me este pensamento porque em mim nunca encontrei a fronteira entre os números e a literatura. A paixão que me move enquanto contabilista é a mesma que me move intensamente como escritora. Escrevo como analiso os números. A literatura é um conjunto de equações solúveis e insolúveis e nessas equações busco por via de caminhos individuais diversificados, uma resolução que me conduza à solução conjunta ou mesmo à epistemologia de enigmas que são os imbróglios que assombram o quotidino. A alteridade caracteriza o mistério com que se resolve uma função matemática.

Em “uma onça na cidade”, quebro o paradigma de se pensar a contemporaneidade como sacrossanta, e busco a hodiernidade, porque o passado cheira à mofo e a minha rinite não mais me aquiesce fuçar as narinas no pó, quero embrenhar os fluxos de consciência, os monólogos interiores e diálogos no contentor depositado agora, porque este é o meu tempo e tenho os meus olhos fixos na tela do tempo presente.

Penso na batata-reno que açoita a sociedade que procura por mesas para nelas pousar suas moscas, mesmo quando o seu preço tem função linear de assímptota vertical.
Uma calcinha que tira o sono de um homem de 1.90m é o plano estratégico de uma nação que pensa em morar eternamente dentro duma calcinha. Exercita-se a constuição de memórias dos tempos de autocarros que rasgavam as estradas das cidades até ao interior e hoje essas estradas rasgam o interior das paredes das cidades forradas de raptos e mortes.
Neste livro, escrevo sobre o polícia-ladrão, as leis de silêncio e silenciamento e os jornais fodidos pelas perseguições no exercício de suas funções de comunicar. Confesso-vos, que hoje tenho muito mais medo de polícia fardado que qualquer outro cidadão. Escrevo sobre a fuga da meritocracia nos ambientes de trabalho, o assédio sexual e nepotismo, que tornam a sociedade indigente.
Escrevo sobre mulheres fodidas pelo desemprego que desesperadas submetem seu curriculum e manifestam pedido de emprego depositando a sua candidatura na cama de um chefe em Matalane e Munguine, no serviço militar obrigatório, e o chefe despacha todos os pedidos dentro dos lençóis das camas adentro, ele defende a pátria, defende as mulheres desprotegidas engravidando-as e dando-as HIV, ele assegura a nação para que as mulheres tenham tranquilidade, emprego e amor, entram em Matalane e Munguine desempregadas e saem ocupando o posto de amantes do chefe e assim reduz a taxa de desemprego no país.

Todas as lágrimas que não cabem nos Homens cabem no Wimbe. Analiso a minha escrita como produção da consciência autoral que reside na terra: um idioma, uma etnia, uma religião e uma cultura.

E a Joaneta?

Joaneta, somos todos nós a quem apenas resta um orificio e não nos restam membros. Todos somos Joanetas, corpo decapitado, corpo de errante que vaga sem membros. Resta-nos apenas um orifício para que sejamos homens e mulheres. Todos nós somos Joaneta. A violência contra os homens, as mulheres e crianças, torna-se uma arte em escolas, igrejas e outras infra-estruturas públicas esfaceladas pelos al-shabaabs.

Entre a descrença e as imprecisões, há ainda serpentes que sobrevivem comutadas em humanos que alimentam-se de outros humanos. Ah, esses são Homens desta época, mitos da contemporaneidade.

O país não tem mais cabeça. Como se pensa sem cabeça? O país não tem mais olhos para contemplar a sua miopia. Tem uma sexualidade indefinida. Ao fim todo orificio serve para o alívio de quem está no aperto.

Na perspectiva de Guillermo Cabrera Infante (2012, pag. 232), “a única literatura possível estava escrita nos muros’’. Nesta reflexão reverberam-se sentimentos contrastivos que norteam a sociedade redefinida entre novíssimos muros edificados entre a ética e anti-ética, entre os ricos que fazem fronteira com os pobres e ainda que perfaçam diferentes estruturas sociais, continuam a respirar o mesmo ar que escreve a literatura nas paredes do quotidiano descrito em “uma onça na cidade”.

A arte é comunhão. O escritor entrega quando se dá à sua sociedade. Dá-se gratuitamente porque o verdadeiro amor não está no Mercado do Peixe e nem sequer no Zimpeto.

Na translineação estrutural do texto, em “uma onça na cidade” deparamo-nos com as rondas de negociação da paz, no Centro de Conferências Joaquim Chissano. A paz negociada em mesas e poltronas, um bem tão sonhado que habitou nossas casas em telas televisivas e jornais por via das pessoas que a negociavam. Destarte, ainda que durmamos em travesseiros de catanas e cubramos lencóis de medo, continuamos expectantes em ver os paletós sorrirem abraçando o corpo de dois homens de extremos diferentes, mesmo sabendo que hoje somos apenas beatas, dum cigarro que fora um mero projecto de um fumante.

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