Uma nota de “leitura” por Agnaldo Bata
Em um ano em que a prestação das autoridades policiais tem estado no centro de vários debates formais e informais, particularmente pelos casos « Matalane » e « 10 de Novembro », apraz-nos recordar de um exemplo flagrante em que a arte, concretamente a cinematografia, trouxe para cima da mesa de debate insumos que nos permitissem, com antecedência (ou não), reflectir profundamente e buscar soluções sobre alguns temas transversais aos tempos actuais, tais como « assédio », « poder », « consentimento » e « respeito pelos direitos humanos ».
Em alusão, é o filme moçambicano «A virgem Margarida », publicado em 2012, sob a égide do cineasta Licínio Azevedo. A longa-metragem retrata um episódio da história moçambicana aparentemente relegado para o passado pela memória colectiva, porém, cujos contornos (tomando o exemplo da prestação das autoridades policiais) podem ser bem contemporâneos. Historicamente situada logo após a independência (1975) «A virgem Margarida » traz-nos a estória de um grupo de mulheres, oriundas de várias regiões do país, que é enviado, à força, para um campo de reeducação, algures, distante de tudo e de todos, com objectivo de transformá-las em « mulheres novas », livres dos « vícios coloniais », neste caso particular, a prostituição. Dentre as mulheres encontra-se a Margarida, uma virgem de 16 anos que estava de visita a cidade de Maputo para comprar roupa do seu casamento, mas, devido a falta de documentos acabou sendo,também, presa e enviada ao campo de reeducação.
Em 86 minutos, assegurados por excelentes representações de actores da nossa praça tais como : Iva Mugalela, Sumeia Maculuva, Ermelinda Cimela, Rosa Mário, Ana Maria Albino, Ilda Gonzales e Eliot Alex (sem esquecer uma passagem icónica, porém, sempre salutar, de Mario Mabjaia), o filme faz-nos viajar sobre um Moçambique recém independente, com as feridas da guerra colonial ainda por sarar, transpirando fome, desemprego, falta de transporte, meios e vias de comunicação, entre outros.
Sob torturas, privações e maus tratos, com alguma humilhação a mistura, decorre o processo de reeducação das «mulheres de má vida», que são incitadas a enxovalhar o seu passado num baú e atirá-lo à corrente do rio. No enredo temos a figura da comandante Maria João (Hermelina Cimela) que acredita nos ideais da formação do «homem novo» como parte fundamental do processo de construção de Moçambique livre e próspero. A comandante não mede esforços para que, em nome da jovem nação, este objectivo seja alcançado (inclusive chega a adiar o seu tão aguardado casamento). Ela encarna vários moçambicanos, seja da polícia, do exército ou de outras instituições, que acreditam num Moçambique feito de cidadãos íntegros que agem dentro da lei, movidos pela boa vontade e da solidariedade com o outro, acreditando que só assim pode-se pensar em melhorar a sociedade onde vivemos. Do outro lado, temos o comandante Felisberto (Eliot Alex) que aproveita-se da fragilidade emocional e física de algumas das «mulheres de má vida » para obter benefícios sexuais. O ponto mais petrificante desta figura (desculpa o spoiler gritante) é quando ele viola sexualmente a Margarida, sob pretexto de estar a comprovar a autenticidade da sua virgindidade.
Percebemos, durante o filme, um constante diálogo emocional entre os que acreditam na integridade dos agentes da lei e lutam para que a lei seja sempre suprema, e aqueles que usam-na como escudo para obter benefícios pessoais, destruindo sonhos, plantando medo, angústia e ansiedade entre os moçambicanos, sendo este um dos grandes méritos do filme. Mas a questão não se fica por aí. O filme faz-nos experimentar a sensação de que não existem verdades simples e universais (reducionistas) sobre um determinado fenómeno. Vemos isso quando Ancha (Ilda Gonzales, que empresta a sua experiência a esta longa) uma das mulheres «presas» no campo de reeducação, seduz o comandante para obter ganhos pessoais, ou ainda quando Rosa (exemplarmente representada pela professora Iva Magulela), igualmente no campo de reeducação, resiste ao assédio por parte do comandante e mostra como é complicado denunciar o assédio perpetrado por alguém que se encontra em uma situação de poder hierárquico. Nada poderia ser mais interessante nesta longa-metragem se não estas reviravoltas que culminam com uma rebelião das mulheres, num final emocionante em que, coadjuvadas pela comandante Maria João, igualmente agastada com os abusos de poder, todas as mulheres fogem com as suas feridas emocionais e físicas, e destinos certamente mudados, do campo de reeducação.
Rever «A virgem Margarida » em pleno 2020, foi como assistir uma história do passado que, por ter sido mal resolvida, volta a assombrar os tempos presentes e, se mais uma vez, não for resolvida por intermédio de um debate aberto, sincero e inclusivo, voltará a assombrar-nos dentro de algum tempo com consequências mais drásticas em relação as que temos vivido por estes dias, que já não deixam de ser lamentáveis.
Em suma, a arte moçambicana desempenhou, mais uma vez, o seu papel para a construção de uma sociedade melhor, forneceu-nos insumos, a partir de uma reflexão sobre a nossa história, para debatermos e buscarmos soluções dos problemas que temos vivido nos tempos presentes. Talvez devêssemos dar mais atenção e investir mais nela, pois, comprova-se a partir deste exemplo, que jamais tratou-se apenas de diversão ou lazer, mas sim, também, de um meio de exposição ou denúncia do que ocorre no nosso dia-a-dia.
Sobre o Filme:
Titulo – Avirgem Margarida ; Ano – 2012 ; Categoria: Ficção ; Duração: 86 minAno: 2012 ; País: Moçambique ; Realizador: Licínio Azevedo
Prémios : Melhor Longa-metragem – Selecção Internacional Ficção – 29o Festival Internacional de Cinema Vues D’Afrique (Montreal) ; (entre outros, no mínimo 11) ;