Por Mauro Brito
É sempre gratificante e igualmente agradável regressar a esta casa, depois de ter através dela, editado dois títulos, um de poesia e outro de conto. O tempo passou demasiado depressa, e num piscar de olhos, estou aqui diante de vocês, para falar-vos desta obra e do seu proponente, o carismático Nelson Lineu, poeta de sorriso fácil, entre os mais chegados conhecido por chorão, com quem, de forma muito despretensiosa, comecei as lides literárias, junto com o Eduardo Quive, Amosse Mucavele, Madeira, Rosa, Amélia Matavel, Álvaro Taruma, Japone Arijuane, Jaime Munguambe, Mickson Zucula, Heráclito Mucache, entre outros. Nesse longínquo ano de 2010, contávamos as moedas e aguçávamos as estratégias de sobrevivência através da palavra, apesar de tudo, preparávamos o melhor mata-bicho de Maputo, salada de tomate companhada de pão assado em lenha, na cozinha do então, Centro de Estudos Brasileiros, actual Instituto Guimarães Rosa, sob a batuta do Professor, jornalista e poeta Calane da Silva, a quem devemos muito, pela nossa trajectória.
Lineu é um autor com quem se lida muito facilmente, logo me dei conta disso quando o conheci. Nunca vi-o ou senti-o azedo nos seus modos para com os outros, fosse quem fosse, sequer nunca precisou de motivos para sorrir e ser feliz, talvez por isso, habituou-nos a uma certa leveza. Essa leveza, seu notável traço, ultrapassa a dimensão no seu labor literário, é também uma leveza na sua expressão e no modo de ser. Lineu, é um poeta que não só escreve mas também vive poesia, na sua plenitude, a sua poesia é fina, refinada, e suave. Basta-lhe um belo poema para que ponha logo com um largo sorriso e lágrimas no canto do olho.
A sua faina iniciou com a publicação, em estreia, de “ Cada Um em Mim ”, género poesia, depois de um hiato publicou “ Asas da Água ”, também no género de poesia, como se estivesse à procura de si, ou de salto magnânimo, à procura de uma certa postura num mundo desequilibrado. Depois seguiu-se o livro de crónicas, “ O Passo Certo no Caminho Errado ”, durante a vigência da COVID 19, livro este, em formato digital, que levantou alguma poeira no tráfego literário nacional, pano para outra veste. “ Sopro ”, seu primeiro livro de contos, que teve carimbo exclusivo da sua Mãe, foi um regresso à sua província, à sua distinta cidade, Quelimane. Nelson Lineu, que segue as pegadas do biólogo e pai da taxonomia Carlos Lineu, traz-nos uma nova forma de olhar o mundo à nossa volta, com possibilidades de podermos encontrar no nosso meio uma forma de viver a infância e a relação com os nossos avós, longe das telas e das artificialidades.
Bom, deixemos de lado a cidade de Quelimane e essa viagem na boleia da bicicleta, pois essa matéria é para outro texto. Hoje, vou levar-vos um pouco para dentro desta estória proposta pelo Lineu e pelo mestre Idasse Malendza. O texto, “ Quem ensinou a avó a contar estórias ”, começa logo com um título ambíguo, dado que o autor não define se trata-se de uma pergunta ou de uma afirmação, essa escolha, estratégica, impele-nos à um determinado sentido, dependendo do timbre e ritmo da nossa leitura. Por um lado, como se revelássemos um segredo, por outro, como se não quiséssemos assumir que sabemos do segredo. A nossa voz tudo dirá, se assim quisermos. A estória, que muito bem conhece os cantos do baú onde esteve a apanhar tempo, visto que, segundo o próprio autor, já tinha a base feita, faltando-lhe a cereja no topo, feito que conseguiu depois de um hiato de 3 anos. Nem o tempo conseguiu desvirtuar as belas imagens sugeridas, tanto pelo autor, assim como, as belíssimas ilustrações do mestre Idasse, que muito bem acompanham. Ou melhor, foi o Lineu quem pegou por empréstimo a paleta do mestre e foi construindo o seu texto com muita suavidade.
Este mesmo texto, representa aos olhos do narrador, uma criança fascinada pela palavra, encantada pelo prazer que a narração transmite, representa um regresso ao lugar seguro, que a infância é, dele e de todos nós. Conforme observa “ (Eliane Debus, 2017, p28) o texto literário, sua feitura por meio da linguagem, carrega consigo uma força humanizadora, considerando que, como observa Cândido, “ satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo ”.
Através da voz e dos olhos da Olga, por meio de uma linguagem simples e ritmo suave, vamos sendo guiados por vários momentos de transição, com um desenrolar da estória com muita intensidade e leveza ao mesmo tempo, pode-se destacar alguns, como tais: a morte do avô, o momento de decisão quando a avó decide começar a contar estórias, muito a contra gosto, sob o risco de decepcionar-se e decepcionar os seus netos, como forma também de reconciliar-se com a morte, por outro lado, proporcionar um momento de delícia com os netos.
O que a Olga, exímia narradora desta estória, na primeira pessoa, nos quer ensinar em parte, é que através da partilha genuína e espontânea das palavras, ou mais particularmente do conto, estabelece-se uma relação de proximidade, mais humana e com duração garantida. O acto de contar e ouvir, são muito especiais e essenciais à vida humana, e exigem uma postura diferente.
Outra marca do texto, começa por reflectir sobre o significado de ser avó, que, em parte, deve-se ao facto de, saber traduzir o mundo em forma de narrativa e ensinar a ver e ouvir o mundo envolvente. Esse posicionamento da personagem influencia como a estória é conduzida, sem haver espaço para escolhas, pois o texto inicia já com a trama instalada, colocando-nos também em estado de ansiedade e apreensão, e certa empatia também.
O texto traz à tona os valores humanos como a empatia, que envolve toda a família de forma mútua. Essa relação neta-avó, ultrapassa a co-sanguínea, ao ponto de a neta sentir a dor da avó, conforme atesta o trecho: “ Essa incapacidade roubava-lhe a alegria e sorrriso que a caracterizavam, a ponto de sentir-se um pouco menos avó. Dentre os netos, só eu sentia a sua dor, e não era por eu ser a primeira neta ou por morar com ela e o avô Angorete ”.
Este conto, é sobre sentimentos que despertam em nós ao ler este texto, que causam uma certa comoção, ao tratar com tamanha sensibilidade e cuidado, de temas profundos da humanidade, o porquê da avó não saber contar estórias. É essencialmente uma obra sobre o amor, através do qual possamos restaurar o bom hábito nas famílias, o de encontrar sempre espaço para a convivência e partilha de momentos.
Ao distinguir avô Angorete como melhor narrador que conheceu, a neta, não só redefine essa figura de avô, como humana, sensível, mas também, reconhece o valor simbólico e o significado que tem nas suas vidas, com o devido respeito e consideração, hoje muito atiradas à sarjeta, senão vejamos o que se ouve através das histórias que desfilam pelos canais de televisão. É tão evidente, que a relação até certo ponto, determina a qualidade de sono do personagem, não fosse a narradora ter uma qualidade de sono sujeita ao fecho com chave de ouro, dado pelo avô Angorete.
Quem ensinou a avó a contar estórias não é um livro difícil, basta que nos coloquemos na situação da personagem, pela qual desenvolvemos desde as primeiras linhas uma tamanha simpatia pelo avós, onde a palavra assume um significado de alimento, de guião e ferramenta.
O narrador, como se pode ver, ignora as motivações que levaram a avó a não saber contar estórias, mas diz-nos quando, com o nascimento da neta que mais tarde vai ser peça-chave no desfecho da estória. O momento de contar história, assume um significado muito maior, na medida em que recria-se aí, um momento de afecto, mágico, durante o qual são passados ensinamentos, estreita-se relações e cultiva-se o amor sem medo.
O acto de narrar uma estória é um acto que vai além do momento em si, que impacta directamente o leitor e o ouvinte, como podermos aferir no trecho seguinte “ Naquele momento percebi que, mais do que nós, os netos, a avó sentia a falta das estórias.”
Estamos perante uma narrativa fluida, com recurso a uma certa dose de metalinguagem, sem ser muito complexo. O Lineu, não se desvia em cenários, como quem capricha num enchido pronto a defumar, ele sabe o norte para onde a sua mão deve-se dirigir. O seu foco é o diálogo, sem bengalas, e propositadamente deixa a missão ser encetada por uma menina, que assume um significado de recomeço, de inclusão, numa abordagem completamente oposta aos padrões clássicos, onde a criança não tinha direito a opinião.
O texto já vai longo, e nesse passo, não vai sobrar nada ao leitor, que certamente quererá explorar ao seu belo prazer os contornos desta belíssima estória. Então, termino dizendo que, este livro, mais do que proporcionar uma viagem à minha infância, levou-me a revisitar os deliciosos momentos que passei com os meus avós, em Nampula, espero que para vocês também funcione como uma chave, para abrir novos caminhos, nessa viagem, que a vida é.
Boa viagem!