Escrevemos-te deste nosso anónimo recanto. Queríamos publicar esta missiva na mesma noite quente de Dezembro passado quando, tomados pela angústia existencial e quase em prantos, escrevemos. Sabemos que as palavras teriam mais comoção naquela altura, sobretudo quando cuspidas na língua que também foi dos nossos antepassados. Mas, infelizmente, a antiguidade dos nossos vocábulos ainda não cortou a fita na pista da corrida de velocidade das línguas do mundo. É uma pena não podermos te escrever no idioma que melhor expressaria a reciprocidade das nossas emoções. Tu sabes melhor o que isto significa.
Para compensar o infortúnio das nossas limitações, de não podermos te escrever na língua que corre na alma do nosso sangue e dos nossos antepassados, tentaremos usar as convenções que a maioria dos escribas usa nos seus actos. E como suporte, usaremos de empréstimo a língua que Gama e seus confrades de piratagem nos deram de herança.
Já estamos em Janeiro de 2025. E, do outro lado do hemisfério, ainda carregamos as lembranças do frio, durante anos de sobrevivência na diáspora. O frio que nos trouxe a infância perdida nas memórias do vasto e serpenteante leito do Limpopo, quando ainda podíamos contar com a estação do inverno. Lembra-se, era de fazer desenterrar todo o tipo de agasalho, de secar os dedos e os beiços, de reacender com vivacidade o afecto das nossas fogueiras.
Nos tempos que correm, a antítese das coisas baralha a natureza! Qualquer ambientalista diria que são os carpos do aquecimento global. Os cristãos mais devotos diriam, seguramente, que Deus há muito tempo anda zangado! Nas aldeias da nossa terra, a mesma que te viu nascer, nas vastas planícies outrora esverdeadas de Mandlakazi, os anciãos diriam que os antepassados esgotaram a paciência de serem esquecidos. É cada qual com os seus argumentos e sua razão. A verdade é que se aluiu a harmonia entre os homens e a mãe natureza. Enquanto reflectimos, chega-nos a voz da Alice, a protagonista em Na Mão de Deus, que diz, perentória: “as pessoas vivem infelizes porque quebraram o pacto de harmonia com a vida”.
2024 mal terminou, os dias do primeiro mês do novo ano esvaem-se a galope, num ritmo sem lógica. Não vemos o tempo passar! É como dizia a vó Ximeli, o ritmo dos novos tempos é outro. Ela, com quase 90 anos, tinha visto tudo nesta vida, e sabe o que diz. Para vó Ximeli, os sinais dos novos tempos não se traduzem apenas pelo ritmo acelerado, mas também pela insolência de realidades cada vez mais surpreendentes, insuportáveis, de crescente estupidez humana – desabafava em tom de tédio.
A verdade é que o ano começou com novos ciclos. Mas o novo, infelizmente, não traz a esperança de um novo começo. Gestado nos escombros da violência, o ano novo começa e corre sob o manto de incerteza, de uma paz incompreensível e de tensão latente, apesar do sol ir recuperando o domínio das tardes de Maputo, no lugar do cinzento de gás lacrimogênio e do barulho da pólvora. O brilho do alcatrão ressurge timidamente ante o preto das cinzas do pneu queimado e restos de cápsulas. Os “donos da pátria” aperaltam-se em posses e poses de ocasião. Dos púlpitos simulam discursos ufanos e emotivos, como sempre. O povo e a paz são jargões mais ouvidos. Que tipo de paz é essa, tecida à medida da gana de um bolso?
Paulina, como se pode falar de paz, desgarrados à reconciliação genuína e profunda? Como falar de paz, no meio de desaparecimentos forçados à luz do dia e da noite, mortes e enterros em valas comuns, mesmo depois de tudo… Como estar em paz, se as sequelas da pólvora jazem em membros mutilados, rostos desfigurados, no trauma e na ansiedade insanável de quem espera o retorno do filho que não voltou da “revolução”, e o Estado continua madrasta! A justiça cega. Ainda assim, e depois de tudo, a máscara ainda não caiu!
Paulina, perdoa-nos por não ter o hábito de aprumar devidamente os pensamentos. As circunstâncias desorganizam as coisas. Há tempo para organizar pensamentos enquanto a pátria afunda em oceanos de lágrimas? Desde que aniquilaram a vontade do povo, esvaíram-se alguns dos mitos mais ufanos e ilusórios que anestesiaram o imaginário social. A passividade, a paz e harmonia social…
Esgotaram toda a nossa paciência, confundiram-na com a apatia, que jamais nos foi intrínseca. E dá nisto, quando se semeiam histórias ao vento e se espera que elas mesmas protejam o sonho do universo e a nossa própria estabilidade, diria Erving Goffman.
E agora, Paulina? E agora?
O caos virou o nosso normal. Negam-nos a liberdade como nos tempos dos nossos ancestrais vendidos a preço de um espelho. Negam-nos as nossas areias. O nosso ouro. Nosso gás. Nossa terra para erguer nossos esconderijos e produzir nossa sobrevivência. Negam-nos a nação inteira. Negam-nos tudo! E o barulho das armas é o eco da força de batuques que não param de estuprar nossas vidas miseráveis e únicas, como se tivéssemos outras de reserva. A morte deixou de ser temida pelos homens da farda e morremos como insectos. Craveirinha diria, se calhar menos alegórico do que naquele tempo, de forma espectaculosa “Feras matam velhos, mulheres e crianças/e não são feras, são homens/e os velhos, as mulheres e as crianças/são os nossos pais/nossas irmãs e nossos filhos, Maria!”.
A pergunta que nos arrebenta os miolos é sobre o que é pior hoje, Paulina. A violência policial em si ou sua normalização?
Quando a polícia exibe o desprezo da vida e sequestra? Quando os dedos no gatilho se erigem com o sangue de jovens (de)armados apenas com a voz e um dístico na rua? Quando seus dedos hirtos disparam a esmo o maldito gás nas residências, mutilam inocentes, semeiam luto e orfandade, espalhando terror, luto e a semente do ódio; e no lugar da vergonha, vinga a ultrajante disputa de narrativas, como se a morte fosse um simples arranjo discursivo?
Quando os run-flat de veículos blindados transformam corpos humanos em suas pistas de predilecção nas Avenidas da nossa desgraça? E no fim se fala de inquéritos cujo fim sabemos… Triste ópio de consolação colectiva.
O que é pior, nos dias de hoje, Paulina?
No fim são champanhes às costas e custas do povo de que tanto falam, tripudiando do mesmo. Brindarão às ocultas pela divisão das tetas do Estado, depois de zombarem das nossas lágrimas. Vão negociar mordomias, vão discutir subsídios, vão comer, vão beber e depois arrotar o desprezo de sempre. Com o cinismo de sempre, virão de sorrisos postiços para apertar as mãos, celebrando a façanha em nome daquilo que entendem dar nome de paz.
E o povo?
O povo, esse, continuará minguando de fome e sede. Continuará na esperança de que um dia um elefante ainda pode se sentar numa poltrona e segurar uma xícara de café para depois dançar mapiko, mandowa, marrabenta ou kizomba. Continuará a servir de isca para pescar mais “donativos” do Banco Mundial e companhia FMI. Continuará a andar com o rabo fora. Continuará a estudar embaixo de árvores, em pleno século XXI. Continuará a (in)suportar todo o tipo de humilhação que lhes dá prazer!
Os jovens continuarão afogando-se nos “xivotsongos”, sentindo-se presidentes e reis das suas vidas, por estarem a ingerir bebidas de quinta, de marca Presidente e Lord Gin. Nossas mães continuarão a pensar que têm toda a culpa da desgraça da vida dos seus filhos, enquanto são vítimas das “mentiras da verdade”. E assim tem que seguir a vida, neste festival sádico, para quem tem o vírus de que nasceu para ser dono de todos os moçambicanos a vida inteira, nem que seja necessário derramar centenas de litros de sangue.
Ah, Paulina, há muito que perdemos o verdadeiro sentido da vida nestes trópicos! Desde que a sede pelo poder nos desumanizou. Há muito que os académicos que pululam as nossas televisões trocaram o pensamento crítico-reflexivo por um copo de vinho e cerveja, o lenitivo da nossa geração. Faz tempo que substituíram a vocação académica por migalhas de sobrevivência. Não é de hoje que a educação virou o cúmulo do ridículo nacional. Faz tempo que nos nossos hospitais fede a morte, e os médicos, cansados, simplesmente assistem…
A nossa soberania virou moeda de troca. Nossas Forças de Segurança transformaram-se em actores de circo, internacionalmente, ao alugarmos militares de um país que nem cabe na palma de Niassa para cuidarem de Cabo Delgado e dos recursos da nossa desgraça. Não seremos o novo Congo, mas não aquele sonhado por Patrice Lumumba? Não seremos o futuro Delta do Níger?
No fundo, há muito que se perdeu o leme desta pátria! Desde que a nudez da gana se expôs em Cabo-Delgado, a consciência dos pés dos nossos irmãos já não adormece! Sarnau, em Balada de Amor ao Vento, diria, subscrevendo nossos vagos pensamentos: “Há muito que a luz adormecera no silêncio”.
Paulina, tu sabias que, a uma velocidade supersônica, correm poços de petróleo a germinar, mais que cisternas de água, em cada esquina do país? Sabias que nas Avenidas Marginal e Julius Nyerere há mansões a florir mais do que um prato de milho no bojo da grei? Sabias que há muitos segredos escondidos no meio de toda esta confusão?
Nós temos os nossos olhos cansados de derramar a falta de esperança. Temos o nosso gás a entornar-se no Rovuma e a servir de combustível para tudo assar. Assam-se os pés que não param de gritar e saltitam como pistões no interior dos cilindros. Torra-se a esperança de um povo. Arde a prosperidade de uma nação inteira. Temos Pande e Temane na míngua do nosso optimismo. Temos Moatize a parir, há muito, deslocações involuntárias. Temos Montepuez na raiva do passado e do presente. Temos tudo e nada ao mesmo tempo! É triste, Paulina. Tu sabes o significado de tudo isto.
Tu, como poucos, cedo percebeste os jugos contemporâneos, porque tens alertado para os perigos de uma nação que se ergue sem o (re)conhecimento de si mesma, da sua memória e cultura. Por isso, em O Canto dos escravos, seus versos ecoam como som agudo das trombetas: “desperta do sono que te pode conduzir a novos abismos/escuta-me: sem passado e sem memória não há história/ninguém é ninguém se não souber quem na essência é”.
Paulina, queríamos ter rabiscado algo que expressasse a grandeza da tua obra e de mais de duas dezenas de estrada. Mas, o facto de estarmos com as tripas a ferver na angústia do desespero não permitiu. Talvez não fosse para ser nesta encarnação. E nada mais nos resta a não ser um amplexo cordial!
Em colaboração com Isaías Mate