O que actualmente vivemos é uma cultura do vazio, do efémero, do transitório, do descartável que leva, por um lado, à fragmentação das sociedades e seus valores intrínsecos e, por outro lado, a uma condição de cegueira intelectual que atirou o homem à incerteza do que ele próprio é e quer ser. A literatura, no contexto aqui descrito, passou a ocupar um lugar quase que de ausência, pois ainda se recusa a alimentar-se de efemeridades e mediocridades dissimuladas de arte e de grandeza daqueles que acreditam que, mesmo sem ler e sem se cultivar, podem escrever: ainda há, paradoxalmente, quem acredite que há-de ser [livre] sem ler e sem buscar conhecimento.
Estas palavras parecem-nos ter alguma razão de ser, pois, se cada vez mais se tem uma juventude que renunciou à leitura, principalmente de literatura, culpando-a de não se deixar compreender, a poesia continua a ser o arquétipo de um género sem leitores [comuns] e que, salvo miopia nossa, é o menos publicado em comparação com a prosa. Poderemos, deste modo, afirmar que a poesia não é para qualquer leitor?
A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no livro Asas da Água, de Nelson Lineu. Divido em três partes, nomeadamente “Os sinais do rio”, “Poema folha” e “A ave no canto”, neste livro, explora o poeta elementos da natureza, flagrantes no título e nalguns poemas. São alguns desses elementos as aves, a água [do rio], a folha. Explora ainda a questão do ser e da natureza da liberdade que radica, em particular, na referência às aves, às asas e à leveza da folha e, finalmente, a questão da relação fenomenológica entre a consciência e os fenómenos, tal como se pode observar no seguinte poema:
“aproximar os ouvidos à terra
ouvir a folha
como criança
riscar o chão com a dúvida
é o que procuro no relógio” (Lineu, 2019: 52)
Neste poema, temos um sujeito poético que realiza a epoché segundo Edmund Husserl, ao reconhecer, na inocência e na dúvida, o esvaziamento da consciência para “ouvir a terra e a folha”.
Ora, enquanto a prosa é a continuidade da realidade, a poesia é a construção de uma realidade. A respeito, Sartre (2004: 13) afirma que a prosa é o império dos signos. Assim, se, de um modo geral, signo é algo que substitui ou representa algo, então, a posição de Sartre significa que, na linguagem prosaica, os signos remetem para realidades exteriores ao próprio signo. A linguagem constitui um meio ou instrumento voltado para as coisas do mundo, a serviço das acções do homem. Portanto, “a prosa é utilitária por essência; o prosador é um homem que se serve das palavras (…) Na prosa, as palavras não são, de início, objectos, mas designações de objectos” (SARTRE, ibid: 18).
A poesia, por sua vez, imbuída de um intuito de construir realidades que remetem a si próprias, tem um carácter mais abstracto e mais conceptual. Sartre (ibid: 13) defende que, na poesia, o poeta não se serve das palavras (como na prosa), mas serve as palavras. Disto percebemos que a “palavra poética” (no sentido de ser referente à poesia) não se situa no plano utilitário, ou seja, o poeta serve as palavras com referentes intratextuais.
Esta visão de Jean-Paul Sartre explica a razão de, na linguagem poética, os signos, não sendo instrumentos, estarem virados para si próprios, porquanto se manifestam como coisas. Assim, “o poeta afastou-se por completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não signos” (SARTRE, idem).
Em Asas da Água, de Nelson Lineu, o que fundamenta a ideia de uma grande tendência para o abstracto nos poemas começa no título. Há, neste título, e inclusivamente nos poemas de todo o livro, metáforas que enformam um discurso referencial de segundo grau que, segundo Ricoeur (2000: 13), consiste na suspensão da realidade, transitando-se para um discurso centrado em si mesmo e para a construção de uma “dupla referencialidade”, e não “duplo sentido”. Assim, na estrutura “asas da água”, “asas”, entendidas como partes das aves, parecem remeter para uma básica ideia de passagem do domínio da necessidade para o domínio da liberdade, e o voo que, de um modo geral, tais asas permitem é que conduz à liberdade. “Água” (do rio, elemento que atravessa a quase totalidade dos poemas do livro) remete, por sua vez, à ideia de transformação, de mudança do mundo e dos fenómenos, ancorada no carácter de fluidez que caracteriza um rio. Então, que sentidos resultam de “águas da asa”? Não será este um exemplo de que as palavras, neste livro, são em si coisas ou referentes e não remetem a coisas ou realidades exteriores a si?
Vejamos alguns exemplos:
“as casas na cidade
são cópias das casas no rio
aprendemos a decorá-las
com os peixes” (Lineu, 2019: 21)
“abro as palavras
limpo o silêncio
acabo com a dor da água” (ibid: 25)
“a ave está certa
a sombra no chão
é a respiração da folha” (ibid: 44)
“o sal adorna as ondas
e anuncia à ave
a chegada da concha” (ibid: 63)
Encontramos, nestes e noutros exemplos, metáforas que transpõem o comum, o banal, o ordinário, o trivial.
Ainda no contexto do abstracto a que nos temos vindo a referir neste texto, em Asas da Água, o sentido dos poemas inscreve-se nos espaços em branco do papel, associados aos espaços em branco dos próprios poemas, vistos enquanto estrutura potencial a ser preenchida pelos leitores. Por meio desta estratégia, as palavras também se tornam signos de si próprios, ou seja, são “palavras-coisas” que instituem realidades próprias. Em cada uma das páginas deste livro, os poemas estão postos no centro, jogando com o imagético e o conteudístico; omitem-se as vírgulas, subverte-se a sintaxe, desarrumando-se, por vezes, a ordem dos constituintes frásicos. Estas características, como dizem Campos, Pignatari & Campos, 1975:34), ao analisarem a poesia concreta, põem os significados à margem ou em segundo plano.
Como ilustração, tomemos em consideração os seguintes poemas:
“intercepto a brisa
antes de afagar
as árvores de outra margem
acrescento uma palavra
em seu corpo
como quem escolhe
o sonho para a noite” (Lineu, 2019: 27)
“a folha caiu no rio
conhecia a água
a conversa das aves” (ibid: 45)
“adormeço a voz
levo o verde à folha
o lenço branco a flor” (ibid: 48)
A brevidade dos poemas, a subversão das regras sintácticas e a exploração dos espaços vazios da folha (em que os poemas mais se inscrevem do que se escrevem) tornam as palavras gestos, objectos e ideias ou uma espécie de linossigno ou ideograma, segundo Bosi (2007: 477). Por isso, as palavras ou signos mantêm-se abstractos até na sua forma externa, combinando sentidos, por vezes dissonantes – veja-se o título do livro, “asas da água” –, contrários, contraditórios, imprevisíveis e inimagináveis. Ademais, o mundo instituído por e nos poemas desta obra rompe com os fundamentos e com a lógica fenomenológica de um mundo apreendido por uma consciência e, por conseguinte, sugerem um mundo ou mundos em certa medida inalcançáveis, cuja configuração ontológica devolve à poesia a nobre condição de ser em si.
Para terminar, queremos afirmar que uma poesia como esta (e como outras de cariz intimista e menos engajado) e de exploração de universos imateriais, em que as palavras são coisas e os signos têm em si mesmos os significados, constitui um constante desafio para uma sociedade – sobretudo para a juventude – vazia, oca, ociosa, que não percebe e não compreende o mundo hipermoderno onde se encontra e que espera, de forma absoluta, ver-se livre e salva pelas crenças emergentes que, no fundo, são consequência do neoliberalismo que governa o que Lipovetsky e Serroy (2011) chamam de cultura-mundo.
Bibliografia
BOSI, Alfredo (2007) História Concisa da Literatura Brasileira. 44.ª ed. São Paulo: Editora Cultrix.
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de (1975) Teoria da Poesia Concreta. Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. 2ª ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades.
LINEU, Nelson. (2019). Asas da Água. Maputo: Tipografia Prelo Clássico.
LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. (2011). A cultura-mundo: Resposta a uma sociedade desorientada. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras.
RICOEUR, Paul. (2000). A Metáfora Viva. Tradução de Dion David Macedo. São Paulo: Edições Loyola.
SARTRE, Jean-Paul. (2004). Que é a Literatura? 3.ª ed. Tradução de Carlos Filipe Moisés. São Paulo: Editora Ática.
Texto de apresentação do livro Asas da Água, de Nelson Lineu, no Centro Cultural Brasil-Moçambique.
Esta posição de Sartre é discutível se a considerarmos para uma poesia de pendor mais engajado que dominou um determinado período da Literatura moçambicana. Admitimos, porém, que esta ideia se aplique à poesia de Armando Artur e de outros poetas tendencialmente menos engajados, que cultivam a palavra em si.