A realidade, muitas vezes, tende a converter-se em normalidade e pior ainda, a se nos apresentar como uma verdade inalterável. Por isso mesmo, Brecht nos recomenda a questioná-la sempre, a desconfiar do mais trivial, dito em palavras simples: a não confiar nas aparências. E é justamente esse o tema da parábola. A velhinha que mendiga compaixão na esquina, afinal é um lobo disfarçado, à caça de uma oportunidade para devorar a menina. E de repente o sapo ancorado no charco da rua, não é que é um príncipe amaldiçoado. Enfim, o nosso imaginário está repleto de exemplos do género. Entretanto falemos de A Noite das Hienas, uma parábola hiperbólica que resulta do cruzamento entre A noite dos Visitantes do dramaturgo alemão Peter Weiss e Babalaze das Hienas, do poeta moçambicano José Craveirinha.
Se de um lado estamos perante uma história de uma família camponesa – cujo único luxo é um laçarote cor-de-rosa – que numa noite se vê invadida por dois estranhos – cada um a seu tempo e com estratégias contraditórias, mas ambos decididos em pilhá-la e matar – doutro somos confrontados com poemas que põem a nu as mais bizarras tragédias decorrentes da guerra, a mãe das tragédias.
Enquanto Weiss recorre ao verso e à rima para, digamos, fugir do enguiço da psicologia doméstica e agrava mais ainda a trama pelo lado da objectividade de imagens e falas, os poemas de Craveirinha encontram no exagero o tom mais apropriado para denunciar a barbárie. O que, obviamente, resulta numa “complicação” interpretativa, pelos múltiplos sentidos que esse diálogo sugere. E as opções da encenação, em termos de jogo dos actores, escolha da cenografia e demais ingredientes necessários para confeccionar o espectáculo, acabam sendo um trabalho de descomplicar complicando doutra maneira, simplificando aliás.
É a esse exercício matemático que nos temos dedicado há três semanas, e cujo resultado, não sendo definitivo, porque o teatro não o permite, nos propomos partilhar com o público da cidade de Maputo nos dias 18 e 19 de Outubro, pelas 18 horas no palco do Centro Cultural Universitário da Universidade Eduardo Mondlane.
Com encenação de Fernando Mora Ramos, esse projecto teatral resulta da parceria entre o Teatro da Rainha, de Portugal e a Escola de Comunicação e Artes de Moçambique. Pela complexidade do trabalho e devido a escassez de tempo e recursos financeiros, assumimos essas apresentações como um exercício, uma primeira mostra, em bruto, do que almejamos, que queremos que, num futuro breve, se torne um espectáculo. Há neste processo, na apresentação da forma exercício antes do espectáculo, uma dimensão pedagógica sobre o fazer teatral que nos interessa partilhar, uma maneira de pôr à vista um work in progress.
Cruzar dois autores como Piter Weiss e José Craveirinha, assim como fazer interagir um encenador português com actores moçambicanos é, por si só, um grande pretexto para pensar o mundo e o teatro enquanto espaço de discussão sobre a arte e a vida.
Ficha técnica
Encenação: Fernando Mora Ramos
Assistente de encenação: Venâncio Calisto
Interpretação: Castigo dos Santos, Fernando Macamo, Josefina Massango, Maria Clotilde, Samuel Nhamatate e Venâncio Calisto.
Apoio a cenografia e figurinos: Sara Machado