a revolta
“amada
a revolta é um poema escangalhado
alojado na boca do medo”.
[MBATE, 2009: 44]
“No Fundo dos Olhos” é o título do segundo livro da poetisa Águida Tumbo Alexandre. Lembre-se que esta poetisa se estreou com “Mar de Sentimentos”, em Junho de 2022.
Este livro tem 46 poemas. A temática predominante é a de intervenção social. Mas também, trabalha outros temas como, por exemplo, os que abordam o valor da mulher; textos que salientam a sua beleza física, as suas alegrias, a sua simplicidade, SENHORA NATURAL: “Muito bem cedo/ Exibe o seu sorriso de mulala [ênfase acrescentada]/ lábios vermelhos pintados com mulala [idem]// A tornam especial e única […]”. A mulala é uma raiz que é usada para a higienização oral. Pinta os lábios, deixando-os purpúreos. A mulher africana, particularmente, a mulher moçambicana, encontra um lugar de relevo na poesia de Águida Tumbo Alexandre. A sua beleza, a sua originalidade: “[…] com seus cabelos crespos/ Faz tranças de xindlandlalatani/ Sua pele natural e macia/ Inspira olhares da natureza”. Na terceira estância deste poema, a autora introduz novos elementos de carácter e de axiologia: simplicidade, auto-estima: “Com seus pés nas sabrinas/ Sente-se grande rainha/ Com seu corpo sem alterações/ Alegra-se pelo seu ser natural”. A autora seleciona, cuidadosamente, as palavras; sabe dar-lhes o seu sentido real: natural que combina, perfeitamente, com a expressão corpo sem alterações; estas duas expressões soam como um elogio, por um lado e, como uma crítica – por outro – à própria mulher que, vezes sem conta, desvaloriza-se; deita abaixo a sua beleza natural, em detrimento de aplicação de diversos produtos cosméticos para alterar a sua pele, estranhamente. E a palavra sabrinas, nome de calçado feminino, geralmente, de material de napa fina, todavia, é este calçado que o nosso sujeito poético – feminino – calça. Atenta a este verso: “Sente-se grande rainha”. É, exactamente, neste verso em que o sujeito poético exalta a auto-estima da mulher. Não se rebaixa perante a sua condição social. As sabrinas podem ser uma marca de carência. Mas também, de simplicidade. Esta desigualdade social é visível, em AMOR RARO, em que se descreve a situação de uma senhorita nascida numa família rica, entretanto, esta apaixona-se por um rapaz pobre e analfabeto: “[…] sou uma senhorita distinta/ a minha vida está no tapete vermelho/ não tenho identidade fora da passarela/ Fui concebida no ouro puro/ gerada no berço de ouro/ amo desesperadamente um analfabeto/ o empregado da casa/ é o amor da minha vida”. Nos dois poemas, nota-se: menina que calça as sabrinas [versus] senhorita concebida no ouro; sou senhorita distinta [versus] ele é uma poeira no meu salto; e é impressionante o seguinte verso: sou igual a um peixe/ que fora da água não vive; é uma metáfora, aqui, a autora faz alusão à riqueza – uma vida abastada – e à pobreza – uma vida de extrema carência.
Outras temáticas desenvolvidas, na poesia de Tumbo, são: sofrimento que traduz a dor, angústia, visível, também, em LÁGRIMA SECA, aliás, neste poema, a autora continua com o uso de contrastes, vistos nos poemas anteriores: frio e sol agressivos: “Na tarde de muita chuva/ O frio agredia as pernas/ O sol agressivo em meio a chuva/ O chão quente rachava as pernas// Meu corpo inchado pela dor/ A pele soltando fumaça de dor/ Alma minha desfalecida pela dor/ Coxeando nos cantos sem suor// No rosto da lágrima seca/ Ouvia-se grito sem voz/ Um som desafinado/ Sem voz”.
Neste texto, a autora pretende evidenciar o sofrimento. O desemprego. A ausência de suor, simbolizando a falta de emprego, (a partir de uma prática coloquial comum). E, recorrendo ao contraste: “Ouvia-se grito sem voz […]”, para trazer a grande contestação e aborrecimento, senão mesmo a manifestação da revolta, mas também, pode revelar-se uma agonia; o cansaço, não um cansaço físico, mas psicológico; a desesperança. Há, neste verso, a criação de uma imagem que se vai vislumbrar, na imaginação do leitor, de uma forma subtil.
O sujeito poético, na poesia de Águida Tumbo Alexandre, é um sujeito activo, que observa, que questiona, que clama pela justiça; uma justiça que – existindo – tal como ele a anseia, projectá-lo-á para a felicidade plena: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […] por que atropelam o meu futuro? […]// deixem-me sonhar com um castelo!” Aqui, o sujeito poético indaga, aflito, preocupado; e faz um apelo, na esperança de que seja ouvido. É condenação aos casamentos prematuros. No verso: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […]”. A palavra crescer revela, exactamente, uma roptura abrupta da sua idade pueril para assumir – entre aspas – uma responsabilidade de uma mãe. Responsável pelo lar. Ele começa, tão cedo e, forçosamente, a cuidar dos seus filhos. A palavra castelo trazida, no verso acima, não será nada mais que uma metáfora; não se trata dessas construções fortificadas e muito grande da Idade Média e que serviam de residência real ou feudal. Os castelos serviam de protecção e não de um lugar glamoroso como os palácios. Ora, o castelo a que se refere o nosso sujeito poético é, sem dúvida, a escola, o crescer com saúde, a sua formação; a formação é a chave de tudo. É este castelo que alvitra que não se lhe destrua.
Este poema tem alguma relação de significado com os seguintes: SONO INTERROMPIDO (pág.: 12) e MINHA INFÂNCIA (pág.: 35). Os versos como: “[…] o seu sexo tesouro/ Deus guardou como seguro”. Também se fala da formação e da protecção. Na verdade, a autora trabalha nesta perspectiva, cruzando os versos, fazendo o paralelismo, quer temático, quer estrutural, quer semântico. Um outro exemplo que o posso trazer, aqui, é o dos poemas SOU MOÇAMBICANA: “[…] Dizem que sou moçambicana/ nem sequer conheço o meu país/ também não conheço a História do meu país/ confundo sempre os meus líderes […]”, e estes versos do poema A ESTRANGEIRA: “[…] Sou turista/ da minha terra/ terra que me viu nascer/ a mesma viu-me a crescer […]”.
Nos dois poemas, a autora levanta uma questão ligada à falta da educação patriótica, a perda de valores; a autora não procura o culpado; ela, simplesmente, levanta o problema, cabendo a outras entidades a sua consideração/ponderação.
Em MINHA INFÂNCIA: “[…] roubada/ agredida/ sequestrada […]// queria muito saber ler/ e tinha que buscar água no poço// Muita roupa para as mãozinhas […]”; aborda a temática da intervenção social: a denúncia e o trabalho infantil. Aliás, esta temática é continuada em DENTRO DE MIM, em que retrata casos de violência, agressão, solidão, fome.
Se a poesia é considerada, também, um instrumento de luta, de revendição, de revolta, como é a poesia de José Craveirinha, de Noémia de Sousa, de Rui de Noronha, os textos de João Dias, entre outros que retratavam o que a dominação colonial portuguesa fazia aos negros; sim, a poesia de Águida Tumbo Alexandre resgata essa intencionalidade poética desse período histórico, para gritar, lutar, revindicar pelo bem-estar das raparigas e das crianças órfãs. É esta a temática tónica que marca a poesia, claro, não deixar de lado a do amor; um amor demonstrado pela mãe para um filho, poema QUERO SER CRIANÇA.
“No Fundo dos Olhos” projecta-nos para uma temática diversificada, isto, já, tinha sido dito. De entre ela, a que está ligada à família, a família como centro onde se adquire os valores, como se lê em A FAMÍLIA: “É a nossa identidade/ É a nossa originalidade/ É a nossa tradição […]// […] é o amor com o próximo/ É convívio e união/ É um grande propósito de Deus// […]”.
Estes valores são os que constroem uma sociedade sã e educada.
Em poemas, MÃE, a autora faz uma homenagem à mãe, o que José Craveirinha chamá-la-ia de Hino às mães,
– a descrição da dor:
[…] nesta vida
das entranhas em que se move
um embrião de gritos
nascem-te os filhos com renúncias
sangue e dor a mistura
Mãe! […]
(CRAVEIRINHA, 1974: 134)
– e, nestes versos, a descrição física de uma mulher em estado de gravidez e, por entre linhas, a irmandade:
[…] Ah!
mas desde o idílio
ao gâmetas fecundo
e da seiva plasma do mesmo sangue
ao primeiro beijo na face da menina que nasceu
salve-mulher da ternura que se não vende
o arfar do teu inchado ventre liso
curva inestética de beleza única
ao ângulo inobsceno das coxas
na invenção do nono mês
que ficou da primeira vida
na fêmea transformada
na técnica de nos fazer vivos. […]
(idem)
Águida Tumbo Alexandre explora versos livres. Os seus textos não apresentam vocábulos rebuscados. É o seu estilo. A sua poesia é incisiva na temática. Aborda a temática que tem que ver com a dor, morte, agressão, violência, amor: “[…] Despertou sorriso resplandecente/ com o seu olhar fascinante/ sempre despia e beijava mesmo distante”; mas também, ciúme: “[…] é veneno da alma/ sangra e chora sem motivo/ grita e briga por nenhum motivo// é uma arma fatal/ é uma poeira que entupe os ouvidos/ cega os olhos com tolice […]”; guerra: “[…] nesse derramamento de sangue/ no coração de Moça e Mbique/ terrível e violenta maldade/ ensanguentou Cabo Delgado, eternamente”.
Este livro que tem nas suas mãos, depois de tanto sofrimento, a autora abraça-nos com a alguma esperança, como que para fazer jus à temática de crença em Deus, a religiosidade, também, trabalhadas pela autora nesta obra. A esperança alivia a dor, o sofrimento. Dá-nos a confiança para enfrentarmos novos horizontes. Encararmos a vida com fé de que tudo muda.
Em FLORES, parece patente esta belíssima visão da poetisa “[…] Transmitem confiança/ Alimentam esperança/ Produzem a paciência/ desenvolvem a tolerância// O dia é lindo sempre com as flores […]”.
À guisa de conclusão:
“No Fundo dos Olhos” é um apelo ao leitor para fazer um exercício de (re)buscar a verdade, a honestidade, a sinceridade, a certeza, etc., etc., etc., nos olhos de cada um de nós. Os olhos são espelho do nosso interior.
Tudo isto vai resumir-se a uma única palavra: amor com o próximo.
Ferroviário, 8 de Julho de 2023
**ensaísta literário e escritor.
*Prefácio ao livro da Aguda Tumbo Alexandre; o livro foi publicado, no dia 8 de Agosto de 2024, na sala nobre da Associação do Escritores Moçambicanos, AEMO, e apresentada por Natércia Manhenje, ensaísta, docente universitária e linguista.