Chivavice foi para a cidade grande em busca dos segredos do saber. Partiu com a cabeça cheia de sonhos. Quer voltar munido do engenho e da sabedoria necessária para ajudar a nossa aldeia a voar nas asas do tempo.
Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que ele seguiu a estrada com uma mochila às costas. Esmagou o meu peito contra o seu. Sorveu-me os lábios. Fiquei-me pelos bicos dos pés para entrelaçar os meus braços à altura dos seus ombros largos. Deixou a minha firme estrutura feminina a desmoronar-se. O abraço foi a confissão e expressão da minha entrega a um amor que, esculpido na aldeia, tinha de ser alimentado à distância.
«Eu volto para ti, meu amor. Eu volto para te amar, casar e fazer de ti a mulher mais feliz do mundo», como se o tal mundo começasse e terminasse apenas onde os nossos corações desaguam os seus enlaces de ardor e paixão.
E partiu!
Para trás fiquei. Fantasias alimentaram os meus sonhos em noites intermináveis de um luar sem brilho. Rios de lágrimas foram enxugados na almofada do meu canto.
Reservei-me para um encanto, um fulgor e uma paixão que só ele me podia dar. Cada minuto virou uma eternidade. Cada suspiro, um choro. Guardei-me só para ele.
E hoje chegou!
Veio de férias. Estranho em pleno mês de Março, mas isso lá ele saberá explicar. O que eu sei é que ele chegou.
A pressão que a minha mãe me impõe, nos afazeres domésticos, toma-me o dia por completo. Mas em cada prato que lavo, em cada pedaço de roupa que enxugo no pedregulho das traseiras da palhota, ou de cada vez que coloco a panela de barro por cima da lenha em labaredas, apenas sonho com o abraço envolvente do meu macho.
A noite é que logra desarmar a minha mãe. Não há mais tarefa alguma que me possa dar. A sua energia, vivacidade e vontade de querer ver tudo em ordem é vencida pelo sono e cansaço. As suas pálpebras rendem-se e ela tomba nos braços do meu pai. Amanhã também é dia, lá diz o velho adágio popular.
Eu é que não espero pelo amanhã. Quero desbravar as sombras da noite. Conheço bem os atalhos da aldeia e palmilho-os ao encontro do meu Chivavice. Atravesso o vento forte que me chicoteia a face e faz esvoaçar o meu vestido de seda. Chego à sua casa quando todos já dormem. Os cães não ladram. Conhecem o meu cheiro tal e qual eu conheço a palhota do meu homem.
Não preciso de bater a porta. Ele sente a minha presença. Entrego-me aos seus abraços. Esborracho os meus seios pontiagudos no seu peito. Os seus lábios colam-se aos meus e não me deixam dizer palavra. Caio no seu braço que me envolve e puxa-me para a berma da cama. A luz ténue da lamparina esculpe as nossas silhuetas transformadas numa sombra que se projecta na parede de argila.
«Eu te amo, filha.»
Não respondo. Fecho os olhos e a minha face simula um sorriso que não explode. Sinto as suas mãos percorrendo cada pedaço do meu corpo. Estremeço. Não sei o que fazer. Chivavice toca-me com ternura. É tudo o que sempre quis, mas o meu entusiasmo amaina quando confrontado com a coragem que agora se impõe. Mas eu quero ser mulher! Abro os olhos e falo para a penumbra:
«Vai com calma, amor. É a minha primeira vez.»
Mais do que acalmá-lo as minhas palavras espicaçam-no. Sinto a sua masculinidade a roçar-me a feminidade. Volto a fechar os olhos, cerro os dentes, contraio todos os meus músculos e peço a Deus que me dê toda a força de que preciso. Quero ser mulher.
Uma forte e inesperada rajada de vento levanta a cobertura da palhota pelos ares. A luz da lamparina apaga-se. Tudo o resto abana: a estrutura da casa, as roupas e os lençóis. Quem não abana é Chivavice que se agarra a mim com toda a sua força. Enterra-se no meu eu e entra em transe independente à chuva torrencial que derrama sobre os nossos corpos sacudidos pelo vento.
Já não sei o que sinto. Não sei se o que emito é grito de dor ou gemido de prazer. Ou são as duas coisas. A verdade é que não sei até que ponto resistiremos à força do vento. A chuva junta-se ao massacre. É torrencial. O fôlego pendular de Chivavice só cessa quando, pela primeira vez na vida, sinto um quente algo pastoso percorrendo-me as entranhas.
Esperei a vida inteira por este momento. Nunca imaginei que fosse ser à chuva e ao ritmo de um vendaval. Não sonhei com rosas a banhar a minha primeira cama, mas queria, para mim, algo menos tumultuoso. Deus quis que assim fosse e assim foi.
Chivavice está ofegante. Eu tapo a cara com as mãos enquanto as gotas de chuva desfazem-se por cima do meu corpo. Ambos levamos tempo para perceber que a água não só entra por cima como também por baixo, pelos lados e invade, por todos os lados, o que resta da palhota. As paredes maticadas cedem uma a uma.
Temos que fugir para um lugar mais seguro. Puxa por mim e tentamos correr de mãos dadas. Ele é mais forte, rápido e mais veloz. Eu arrasto-me como se as minhas pernas estivessem carregadas de chumbo.
Não sei se são vozes, mas ouço sons estranhos imiscuindo-se por entre o canto do vento forte e o resmungar dos céus. Olho para o lado para descortinar o ruído. Tropeço. A minha mão solta-se abruptamente da de Chivavice. Não sei se chego ao chão, mas sou colhida por um forte golpe na cabeça. As minhas mãos fraquejam. As pernas e o resto do corpo deixam de me obedecer. As pálpebras ficam pesadas e lutam contra a escuridão da noite e da vida que as forçam a vergar.
Ainda me lembro de sentir os braços de Chivavice me carregando e a voz dele a gritar em pânico. Depois tudo se apaga: a chuva deixa de existir; a trovoada deixa de ecoar; o vento deixa de cantarolar. Apenas o silêncio e o escuro dominam o meu ser.
***
Uma nuvem turva volta a encher-me os olhos. A muito custo consigo mexer as pálpebras. Os meus neurónios gravitam em torno do nada e tudo em minha volta circula. Curioso que estou rodeada de branco: o tecto, o chão, as paredes e até as pessoas que vejo são todas brancas e vestidas de branco. Será que cheguei ao reino dos céus?
Depois da visão fusca sinto que o meu corpo descansa num colo. Uma mão passa-me pela testa e depois escuto uma voz familiar:
«Ah acordou! Deus é grande!»
Ergo os olhos. Vejo um enorme vulto negro. Sempre me ensinaram que os anjos eram brancos. Estarei no inferno? Sim. No mesmo inferno de onde nunca parti. No inferno do vendaval, cheias e trovoada. No inferno da terra. A mão que me acaricia é de Chivavice. Duas gotas de lágrimas tombam sobre o meu corpo. São do meu homem, que volta a dizer:
«Deus é grande!»
E Deus é realmente grande. Protegeu-me. Insuflou as energias necessárias para que Chivavice aguentasse comigo no colo cruzando correntes de água, esquivando-se das árvores que tombavam e mantendo equilíbrio contra os duzentos quilómetros por hora eólicos. O rapaz desesperou-se, chorou e buscou, do além, todas as forças até desaguar nesta tenda-hospital de emergência.
Os meus olhos abrem-se completamente e brilham. Não gemo de dor. Não sorrio. Não lacrimejo. Apenas estendo o meu coração num manto branco para que Chivavice sonhe com o poema de uma vida.