Logo à entrada da Sala Grande do Franco-Moçambicano, uma campa. O relógio marca 20:16 e, com pouca luz, mesmo para corresponder ao cenário montado, o palco toma a imagem de um cemitério.
Como que arrepiados pelo que vêem, os espectadores vão entranhando, com algum cepticismo denunciado nos passos e nas conversas. Uns perguntam aos outros o que ali vai acontecer. Mas a resposta só começa a ganhar sentido nove minutos depois, quando a performance Mhamba, de Leco Nkululeco, revela-se a coisa mais importante naquele centro cultural.
Essencialmente, Mhamba – o céu também se alimenta de estrelas é uma performance multidisciplinar, em que a declamação, a representação, a música e a dança combinam elementos na composição de uma história feita de tantas outras histórias marginais.
Por um lado, a performance de Leco Nkululeco coloca no palco actores cuja responsabilidade é fazer o público imergir num mundo místico e absolutamente imprevisível. Nisso, há um bebé que é entregue aos deuses como mhamba, ou seja, como sacrifício no que corresponde a uma prática cultural tradicional.
A lembrar “Quenguelequêze”, de Rui de Noronha, a cena inicial e tenebrosa da performance mescla numa só imagem o terror, a morte, o suspense e a expectativa. E, a partir daí, Mhamba apresenta-se como uma proposta capaz de prender a audiência enquanto a conduz a certas práticas culturais que também definem parte do Moçambique é na sua diversidade.
No que à representação diz respeito, é preciso destacar Mathusse (Paulo Inácio), Jéssica (Érica Chongole), Marta (Dalila Figueiredo) ou Laura (Clarice Matsinhe). Estas são algumas personagens que conduzem a história de uma viúva que, mesmo depois de enterrar o marido, não tem a paz necessária para continuar a viver com alguma alegria e sossego.
Na verdade, o marido de Laura, Mathusse, das profundezas da morte, consegue voltar ao convívio dos vivos, atormentando quem, farta do luto, quer ver na vida outras cores. Segundo uma curandeira, o que Mathusse realmente reivindica é voltar a casa e à sua esposa. É mais ou menos a essa altura que, a campa improvisada no palco justifica estar ali montada. Numa originalidade contagiante, quando, de facto, fica claro que o mundo dos mortos interfere no destino dos vivos, eis que Mathusse vence a morte, a fronteira da campa e aparece para se envaidecer na companhia da esposa Laura. Quer dizer, mesmo morto, Mathusse recusa-se a deixar Laura disponível, mas, mesmo assim, há sempre um homem que a desperta interesse.
A história de Laura e de Mathusse é contada de forma intercalada. A dança, zoré, por outro lado, materializada por bailarinas como Néusia Magaia, Glória Moiane e Lúcia Machavele, introduz no universo do enredo uma das formas de expressão das várias comunidades moçambicanas, que dançam quando estão felizes ou quando se encontram tristes.
Zoré atravessa a performance, mas o que realmente impressiona na obra de Leco Nkululeco é a vibração sonora de Helena Rosa. Cantando como se fosse a última vez, a cantora convence e adiciona a Mhamba algo que, sem ela, não poderia ser a mesma coisa. Claro, as contribuições de Jorge Domingos (guitarra), Mauro Steinway (piano), Makoneny (percussão) e Mole Mussoco (baixo) tornam ainda o conceito de Leco Nkululeco muito válido e apropriado para quem se interessa em viajar pelo plano desconhecido, dos sonhos, dos mistérios e do estranho.
Não obstante deixar-se acompanhar pela música, ora cedendo espaço para dança ou para representação, na performance Mhamba cabe a Leco Nkululeco conduzir a narrativa com a palavra poética e sugerida. Bem dito, o poeta e performer é o centro do universo, o lugar incomum de uma criatividade diferente e ousada.
Ninguém pôde prever o que é Mhamba e o que o seu autor quis apresentar na Sala Grande do Franco ao longo de 90 minutos. Talvez, por isso também, o público deixou-se levar pela espectativa, reagindo fervorosamente com palmas a cada vez que um número da performance terminava.
Ao mesmo tempo que o texto ganha sentido com as intervenções dos artistas, a componente audiovisual e cenografia destaca-se por garantir que o palco seja, de facto, um mundo por redescobrir. Para o efeito, Alfredo Semo (cenografia), Dadinha da Graça (caracterização), Bhaka Yafole (vídeo), Itar Cachimbo (luz) e os contrarregras (ágeis na inserção e retirada dos objectos do palco) definiram os caminhos para o sucesso de um sacrifício que tem seu mérito.