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A marcha poética anti-violência em “Heroínas”

A palavra é uma bala: Não tem recuo.

Mia Couto

No dia 24 de Março, o jardim do CCMA acolheu um evento de Spoken Word, intitulado “Heroínas”, com acesso livre. Matilde Chabana foi a mestre de cerimónias do evento.  

“Heroínas” é um projecto poético que consiste nas poetas: Denise Fazenda, Jessica Cristina, Lorna Zita e Emma de Jesus. 

A expressão “Spoken Word”, em português poesia falada, é uma nova construção de poesia, que tem como objectivo principal expressar sentimentos, ideias sobre temas muitas vezes ignorados ou com uma percepção social limitada.

O nome “Heroínas”, provavelmente, deve-se à travessia caótica que as mulheres trilham no quotidiano moçambicano, são vários flagelos que assolam a mulher, desde assédios sexuais no trabalho, na faculdade, escola, aos estupros domésticos, raptos, desaparecimentos e estrangulamentos da mulher até à morte.

“Heroínas” decorreu sob a forte presença de mulheres e jovens que aderiram ao evento, a missão do público era manter o ouvido aberto e das poetisas era mandar as “balas” ao público.

Heroínas começou com declamações singulares e intercalares das poetisas, a miscelânia com a voz da cantora Dórcia Chanázia, que foi chamada a abrilhantar o evento.

“Heroínas” tinham uma missão clara: Mudar a percepção do público em relação à figura da mulher, transportar o público ao interior da alma feminina, exalar as dores e cicatrizes que a mulher carrega e, quiçá, emprestar a pele da mulher a ver se se percebem os seus tormentos.

Dórcia Chanázia, de voz suave, trocou simpatias com o público, sua voz contagiou a juventude a cada actuação no jardim do CCMA. Uma das surpresas do evento foi o mais recente livro da escritora Denise Fazenda, intitulado “Na lente delas”, que esteve à venda no local do evento.

A marcha poética de “Heroínas” teve várias abordagens sobre a mesma causa, interessa aqui destacar, três reflexões, suportadas por três poemas das “Heroínas”.

Poema 1 Filhas da mãe – 

Em “Filhas da mãe”, “Heroínas” apresentaram uma declamação colectiva, que aborda a frágil condição social da mulher, os versos seguintes ajudam a entender essa visão:

“Fui condenada antes mesmo de falar” 

Fui silenciada porque nasci mulher

E minha mãe, também filha da mãe chora um luto que o mundo ignora

Ela grita por mim como gritou por outras… enquanto o mundo segue, indiferente, cúmplice e conivente”

No poema, “Heroínas” denunciam uma condição diferente entre sexos, o silêncio e a violência reservada apenas à mulher, o grito de uma mãe não pode ser ouvido, mas pode ser ignorado, recebido com indiferença e cumplicidade.

Quantas vezes ignoramos o grito da mulher na nossa vizinhança? Quantas vezes alegamos ser briga de casal quando uma mulher é vítima de pancadaria? É sobre esta cumplicidade e indiferença que “Filhas da Mãe” exorta:

Poema 2 Uniões Prematuras

Em uniões prematuras, “Heroínas” apresentaram igualmente uma declamação colectiva e milimetricamente sequenciada. O poema convida-nos a um discurso vindo do imaginário de uma adolescente de 13 anos, que apela à consciência dos seus pais e da sociedade acerca das uniões prematuras. Um trecho do poema nos permitirá melhor análise.

Eu era só uma menina, 

Quando fui obrigada a mente fechar e as pernas abrir

quando senti o peso daquele corpo sufocando-me até não mais conseguir respirar

Fui obrigada a balões de rosa parar de soprar para ver minha barriga inchar

Eu só tenho 13 anos, como querem que tenha forças para um bebé de mim retirar?…

Rompeu-se, foi vítima da fístula obstétrica…

Não, fui vítima da vossa criminalidade, ambição, egocentrismo e falta de amor

Uniões prematuras são um flagelo que aumenta o ciclo da pobreza, devido ao abandono da rapariga na escola, e sua dependência ao homem a que foi entregue. Uniões prematuras matam sonhos, e depreciam a vida da mulher. A fístula obstétrica é uma doença que retira toda a dignidade e auto estima de uma mulher (sobretudo criança), a sociedade é chamada a parar e pensar nestes versos, uniões prematuras são intoleráveis, e destroem o futuro da família.

Poema 3 

Já podes comemorar mamã tua filha para tua casa não voltará

Lembras mamã quando eu disse que não queria casar?

Que do meu namorado já estava a desconfiar?

E tu me disseste que… não podia violar a tradição

Te contei que durante três meses tratei ITS 6 vezes

Aquela boca com pontos, não foi acidente de carro como ele te contou

Foi ele, agrediu-me violentamente, mamã

No poema “Heroínas”, há um culpado pelo sofrimento da mulher por vezes oculto, pois é, a própria mulher, a própria mãe, a própria tia, que olha para o casamento como uma fonte de renda para si, um fonte de status social, uma forma de manter a tradição dos antepassados, sem ter em conta os sentimentos e a opinião de quem efectivamente vai se casar.

No texto, um conjunto de sinais de que o casamento era tóxico foi dado à mãe, mas ela preferiu ignorar para manter o status, a tradição e pode dizer de boca cheia, que a sua filha casou.

A base do casamento é o amor, a felicidade do casal, e não a tradição, ou o status desejado pelos pais. No poema, a filha pede asilo em casa da mãe porque a sua vida está insuportável, mas é recomendada a aguentar, e aguentou tanto até perder a sua vida, num lar que nunca desejou estar.

“Já podes comemorar mamã tua filha para tua casa não voltará”, disse a filha depois de perder a sua vida.

“Heroínas” nos lembram que a vida de uma mulher deve ser cuidada desde que ela nasce, até à fase adulta, uma união prematura, ou um casamento feito às pressas pode destruir a própria vida da mulher e a sua família. Salve as “Heroínas”.

 

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