O que inicia com o som dos sapatos, termina com um grito de medo. Em “Sinédoque do silêncio”, o realizador Gil Nota explora a complexidade de traumas e faz uma crítica ao sistema (conjunto de instituições e relações sociais) que falha em escutar as vítimas.
A curta-metragem, galardoada com um prémio KUGOMA, baseia-se na figura de linguagem sinédoque, onde uma parte de algo é usado para representar o todo e vice-versa. Essa figura de linguagem é o cerne da narrativa e da crítica presentes na obra.
A protagonista, Khaci, dialoga com a psicóloga que, mais do que uma personagem individual, representa o sistema. Fundamentalmente, a sinédoque manifesta-se nesse diálogo de forma directa, pois Khaci responde às questões considerando a sua própria condição, que, igualmente, reflecte a situação por que passam várias mulheres.
Como evidência, no início da curta, após a psicóloga perguntar se podiam começar a consulta, Khaci faz o seguinte resumo: “O meu pai matou a minha mãe… O meu irmão me estuprava todos os dias”. Nesse instante, a psicóloga sugere que a vítima comece a narração dos factos desde o início, o que evidencia a função da figura de linguagem e o quadro completo da dor da vítima.
A língua de sinais utilizada por Khaci surge, na verdade, como uma encenação inconsciente da psicóloga, actuando como uma metáfora poderosa para a sensação de não perceber e não como incapacidade de fala. Para reforçar a metáfora, é crucial considerar o contexto temporal da narrativa.
Após ter sido salva de uma tentativa de suicídio, pelo namorado, Khaci foi internada
durante quase um ano e, subsequentemente, foi viver com ele, sendo vítima de abusos sexuais diários. Khaci cometeu os assassinatos (o do namorado, em legítima defesa, e o da irmã dele, única testemunha ocular). Por conseguinte, começou a fazer as sessões de terapia.
Não existe, por isso, qualquer possibilidade de Khaci ter tido tempo ou condições psicológicas para aprender a língua de sinais. A sua comunicação, através de gestos, portanto, não é uma incapacidade real.
A psicóloga, que representa a sociedade e o sistema, não escuta a profundidade do trauma de Khaci, pois está ali para cumprir um trabalho superficial, uma função burocrática. A falta de empatia é evidente no modo mecânico como faz as questões e, até mesmo, ao interromper a Khaci (cena 06:18). A violência do pai (que era polícia), os abusos do irmão, do amigo do irmão e do namorado, e a apatia da madre e da psicóloga, representam um sistema que a deveria ter protegido, mas falhou tragicamente.
A falha de comunicação atinge o clímax quando a psicóloga finalmente dá atenção a Khaci, mas não enquanto vítima, e sim como criminosa, pois o momento em que ela escuta Khaci coincide com o relato dos assassinatos que ela cometeu.
Na curta, Nota revela que o sistema ignora a violência que a personagem sofreu, mas, imediatamente, presta atenção quando ela se torna uma ameaça.
A frase dita por Khaci: “Eu não tive culpa” ganha um significado ainda mais dramático. Não é apenas uma justificação, mas um indício claro de que a psicóloga a escuta, ainda que seja pelas piores razões. A psicóloga está a ouvir agora, mas a protagonista já está para além da terapia. A sua voz foi ignorada por tanto tempo que, quando finalmente é ouvida, já é tarde demais. Essa falha fundamental leva Khaci a cometer mais um acto de violência, porque percebe que o sistema não ajuda nem a entende.
Apesar da genialidade em abordar temas sensíveis, a curta-metragem apresenta alguns problemas técnicos e de actuação. Há um furo de roteiro no minuto 2:37, no qual Khaci diz: “O meu tio matou o meu pai com um tiro” e, depois, no minuto 4:12, quando a psicóloga diz: “Khaci, tu disseste que o teu tio deu dois tiros ao teu pai” e ela acena positivamente, o que não corresponde ao que foi dito. Além disso, a actuação da protagonista carece de naturalidade, com a tristeza a parecer forçada e falta de foco no olhar.
Em síntese, “Sinédoque do silêncio” é uma curta-metragem marcante pela abordagem crítica e criativa do silêncio sistémico, apesar de algumas falhas pontuais que não desvalorizam o mérito da obra.